A luta pela ordenação feminina é uma frente importante na luta pela democratização do poder eclesiástico e pela concretização da Reforma Protestante
Em 2017, refletindo sobre o que estava acontecendo na Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) mundial e celebrando os 500 anos da Reforma Protestante, o renomado historiador adventista George R. Knight lançou uma de suas obras mais provocativas: o livro Adventist Authority Wars, Ordination, and the Roman Catholic Temptation [“Guerras de autoridade adventistas, ordenação, e a tentação católica romana”, em português]. Na introdução à coletânea de ensaios, artigos e palestras, o historiador dá a tônica do livro numa breve análise de conjuntura que se prova acertada até hoje:
A verdadeira questão no adventismo hoje não é a ordenação de pastoras, mas a questão da autoridade. Nesse sentido, ele encontra um paralelo na Reforma Protestante do século 16, um movimento que em última instância não era sobre indulgências ou justificação pela fé, mas sobre autoridade eclesiástica. Na atual situação, a ordenação de mulheres é meramente o tópico que deu força à luta pela autoridade.1
Naquela época, a IASD ainda enfrentava as consequências desastrosas da conturbada Assembleia Geral de 2015, realizada em San Antonio. Durante a votação para permitir que cada Divisão decidisse individualmente pela ordenação feminina, a ênfase geral dos relatórios da Comissão de Estudo de Teologia da Ordenação (TOSC), favorável à medida, foi omitida da discussão pela Associação Geral (AG). Igualmente omitido foi o relatório demonstrando que a maioria das Divisões era favorável à medida. Como resultado, a moção perdeu por uma margem estreita: 42% a favor X 58% contra.2
Em seu livro, além de discutir brevemente a ordenação pastoral do ponto de vista teológico — e demonstrar que não há base bíblica para restringi-la a homens —, Knight enfatiza a importância histórica das Uniões-Associações para a democratização da IASD, e relata diversas “guerras de autoridade” na breve história de nossa denominação. O historiador conclui que o drama de repercussões internacionais sobre a questão da ordenação feminina é mais uma dessas guerras de autoridade, e que a IASD se encontra mais uma vez em uma encruzilhada: sucumbiremos à tentação de Roma e nos hierarquizaremos como a Igreja Católica?
Por mais acertadas que sejam as análises de Knight, no entanto, é impossível para um adventista brasileiro ler este livro sem certa dose de cinismo. O texto é escrito com o otimismo de um intelectual adventista do Primeiro Mundo, um acadêmico da metrópole que há pelo menos 60 anos convive com veículos de imprensa independente e uma diversidade de práticas litúrgicas e congregacionais. No Sul global, nos territórios que ontem foram colônias e hoje são os quintais da Besta que sai da terra (Ap 13), Roma já venceu há muitos anos.
Para que a vitória de Roma fique clara, basta olhar para o nosso próprio território. A Divisão Sul-Americana, comandada desde sua fundação por líderes estadunidenses e brasileiros sulistas que descendem de imigrantes europeus em um continente de maioria negra e indígena, mantém seu território a rédeas curtas: de 16 Uniões, apenas 4 são Uniões-Associações, isto é, detêm autonomia administrativa. Esta mesma liderança bajulou e legitimou nossas sanguinárias ditaduras militares, como já documentamos para o Brasil e para o Chile. Mas enquanto a IASD alemã, que apoiou Hitler na Segunda Guerra Mundial, hoje emite pedidos oficiais de desculpas, nossas lideranças coloniais foram formadas como apoiadoras de militares fascistas, se orgulham disso, e hoje apoiam os mesmos militares golpistas que seus avós abraçaram. No fim, mesmo nossa existência é prova viva do que dizemos: enquanto os Estados Unidos viram a Spectrum Magazine, seu primeiro veículo adventista de imprensa independente, surgir em 1969, com diversos obreiros e acadêmicos da instituição compondo abertamente suas fileiras, a revista Zelota só surgiu 50 anos depois, composta majoritariamente por membros leigos e funcionários que precisam esconder sua identidade.
E o que isso tem a ver com a ordenação de mulheres pastoras? Tudo. A igualdade ministerial entre mulheres e homens, assim como a afirmação LGBTQIAPN+ e a luta antirracista, promove e radicaliza o sacerdócio universal de todos os santos, levando a Reforma Protestante aos próximos passos que deveriam ter sido traçados naturalmente. Nossas lideranças reacionárias entendem isso muito bem, como demonstra sua firme crença em teorias conspiratórias como a do “marxismo cultural”: qualquer avanço na democratização do poder adventista é uma ameaça aos privilégios de nossos burocratas e sua teologia fundamentalista antibíblica, e o marxismo, por de fato defender todas estas pautas populares, é visto como a grande mente maligna por trás de cada movimento. Se assim exigem as circunstâncias,
Declara-se como socialista o liberalismo burguês, o Iluminismo burguês e até a reforma financeira burguesa. Era considerado um ato socialista construir uma ferrovia onde já havia um canal, e era um ato socialista defender-se com um bastão ao ser atacado com uma espada. E não se trata aqui de mera forma de falar, de moda, de tática de partido. A burguesia tinha a noção correta de que todas as armas que ela havia forjado contra o feudalismo começavam a ser apontadas contra ela própria, […] que todas as assim chamadas liberdades civis e todos os órgãos progressistas atacavam e ameaçavam a sua dominação classista a um só tempo na base social e no topo político, ou seja, que haviam se tornado “socialistas”.3
Essa luta naturalmente se apresenta de forma mais crua e brutal nas colônias. Nos Estados Unidos e na Europa, metrópoles decadentes que há décadas têm enfrentado estagnação na conversão de novos crentes, a discussão costuma ser feita à mesa, com o uso de talheres e regras de etiqueta, sofisticação institucional e teológica. Já no Sul global, última fronteira de crescimento da Igreja e do capital mundial, o fundamentalismo e o medo do “marxismo cultural” têm força de lei: qualquer comunidade que pretenda abraçar minimamente grupos excluídos, seja empregando pastoras ou dando espaço a homossexuais, é imediatamente sujeita a toda a força da violência institucional, sem qualquer respeito à legalidade votada por estes mesmos líderes que tanto se apegam à letra da lei.
Sendo assim, quando George R. Knight lamenta a tentação romana a que sucumbem os líderes da AG, só está presenciando o retorno do filho pródigo; teologia e práxis institucionais alimentadas e fortalecidas no Sul global voltam para a metrópole e reivindicam seu lugar no trono. Seus líderes compreenderam corretamente que qualquer avanço popular da membresia diminui seu poder; agora compreendem também corretamente que são as colônias, onde estão a esmagadora maioria de nossos membros e a última fronteira de crescimento eclesiástico, que definirão a identidade e o futuro da IASD. Somos a periferia do mundo, a vanguarda do Apocalipse, a planície do Armagedom. Compreendamos nossa importância histórica: a revolução será brasileira ou não será, dentro da igreja e fora dela.
Notas:
1.↑ KNIGHT, George R. Adventist Authority Wars, Ordination, and the Roman Catholic Temptation, p. 6. Westlake Village: Oak and Acorn Publishing, 2017.
2.↑ Ibid., p. 3.
3.↑ MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte, p. 80. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.