Ao negar espaço para as mulheres no ministério pastoral, a Igreja Adventista se afasta do caráter revolucionário do evangelho, comprometendo sua relevância e sua missão ao mundo


O problema da ordenação feminina (parte 3)

Por Hannele Ottschofski | finlandesa, serve à igreja adventista como escritora, educadora, editora, palestrante e tradutora. Texto traduzido e adaptado por André Kanasiro do original em inglês para a revista Zelota.

Ordenação feminina de Renee Stepp, na Associação Potomac, 3 de março (Fonte: Potomac Conference of Seventh-day Adventists Facebook)

Quando o concílio anual de 1984 votou que as Divisões deveriam poder decidir se ordenariam mulheres como anciãs, algumas pessoas temiam que a IASD se dividiria. Esse não foi o caso. Isso também não teria acontecido em 2015 na Assembleia Geral, caso as Divisões tivessem sido autorizadas a prosseguir com a ordenação em áreas onde ela é apropriada. O esforço limitado para coagir a uniformidade neste assunto é um risco muito maior para a unidade da igreja.

Qual é realmente a questão da ordenação de mulheres ao ministério? Trata-se simplesmente do reconhecimento da igreja de que o Espírito Santo chama as mulheres para o ministério. Quando Deus chama, como nós, humanos, devemos lutar contra isso?

Como eu gostaria que os líderes da IASD mundial tivessem ouvido o sábio conselho de Gamaliel: “Neste caso de agora, digo a vocês: Não façam nada contra esses homens. Deixem que vão embora, porque, se este plano ou esta obra vem de homens, será destruído; mas, se vem de Deus, vocês não poderão destruí-los e correm o risco de estar lutando contra Deus” (At 5.38-39, NAA).

Nos tempos bíblicos, as mulheres estavam na cozinha ou junto à lareira preparando a comida e servindo os homens que se sentavam à mesa. As mulheres e as crianças comiam o que sobrava depois da refeição. Elas não tinham negócios à mesa com os convidados. Sara, na tenda da cozinha, ouviu o que o convidado disse ao marido Abraão na tenda principal. Mas mesmo uma “princesa” como Sara não pôde se sentar com os homens. Ainda hoje existem países onde esta cultura prevalece. As mulheres vivem suas vidas separadas, como servas bem-vindas. Mesmo hoje, elas não pensariam em simplesmente sentar-se com os homens.

Também conhecemos a história de Marta e Maria. Marta lutava para entreter os convidados, enquanto Maria se sentava com os homens para compartilhar os ensinamentos de Jesus. Maria ouvia atentamente. Ela não se contentava em ouvir apenas uma palavra aqui e ali enquanto arrumava a mesa ou carregava comida de um lado para o outro. Ela queria um lugar à mesa para poder acompanhar a conversa corretamente. Marta respondeu com irritação. Você simplesmente não pode fazer isso!

Quando Marta reclamou com Jesus, ele respondeu afetuosamente: “Marta, Marta”, respondeu o Senhor, “você anda inquieta e se preocupa com muitas coisas, mas apenas uma é necessária. Maria escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada” (Lc 10.41-42). Como fez tantas vezes, Jesus não correspondeu às expectativas. Marta tinha certeza de que ele mandaria Maria de volta para a cozinha. Mas não, Maria foi autorizada a ficar com os discípulos e a saciar sua sede espiritual, em vez de colocar água para os homens.

Se Jesus naquela época permitiu que uma mulher se sentasse a seus pés à mesa, quem somos nós hoje para questionar seu comportamento? Ele considerou se a sociedade religiosa de sua época estava pronta para tal atitude revolucionária? Os professores de direito de sua época prestavam muita atenção ao cumprimento de todos os regulamentos e certamente não concordavam. Mas Jesus abriu espaço para as mulheres em sua vida e em sua mesa.

Jesus deve ter conhecido a história bíblica das cinco irmãs, filhas de Zelofeade — Macla, Noa, Hogla, Milca e Tirza — que já exigiam justiça. Elas se aproximaram e se colocaram diante de Moisés, do sacerdote Eleazar, dos líderes e de toda a assembleia à entrada da tenda da congregação, e disseram: “Nosso pai morreu no deserto e não estava entre os que se ajuntaram contra o Senhor no grupo de Corá; mas morreu por causa do seu próprio pecado e não teve nenhum filho homem. Por que se tiraria o nome de nosso pai do meio da sua família, só porque não teve filhos? Dê-nos uma herança entre os parentes de nosso pai” (Nm 27.3-4). Então Moisés apresentou o caso perante o Senhor, e o Senhor lhe disse: “As filhas de Zelofeade estão pedindo o que é justo. Certamente você deve dar-lhes propriedade como herança entre os parentes do pai delas e deverá transferir a elas a herança do pai. E diga aos filhos de Israel: Se alguém morrer e não tiver filho, passem a herança dele para a sua filha […] Isto será prescrição de direito aos filhos de Israel, como o Senhor ordenou a Moisés” (Nm 27.7-11).

Respeitosamente, mas assertivamente, essas mulheres exigiram ser tratadas de forma justa e em pé de igualdade. Foi preciso muita coragem delas para desafiar a cultura e a jurisprudência prevalecentes. Moisés poderia ter dito: “Sempre fizemos assim. Somente os homens têm o direito de herdar a terra. Contente-se com isso.” Mas não, ele disse: “vou perguntar ao Senhor”. E o Senhor respondeu a favor das mulheres. As regras e ordens de toda a nação foram alteradas, para que as mulheres tivessem direito a herdar, se necessário.

Curiosamente, quando a questão surgiu no Concílio Anual de 2019, onde os regulamentos estipulam a ordenação obrigatória para pastores homens, o presidente da Associação Geral (AG) respondeu: “Este é o nosso entendimento histórico: o ministério foi construído sobre ministros ordenados. Ele pode não dizer especificamente que os ministros devem ser ordenados. Certamente está implícito.” Está implícito. É assim que sempre foi feito. E assim a tradição adventista torna-se a base para ações disciplinares.

No dia 2 de março de 2019, o presidente da Associação Geral, Ted Wilson, disse em uma sessão de perguntas e respostas na Universidade Andrews: “Nossa igreja decidiu que a ordenação é apenas para homens.” Ele se referia à votação de San Antonio em 2015. Mas, como as filhas de Zelofeade, havia muitos que esperavam que os líderes da igreja perguntassem ao Senhor por sua vontade, em vez de se esconderem atrás de uma decisão feita pelo homem para defender a velha ordem. Moisés estava pronto para mudar regras e regulamentos. Se nós, como igreja, estivéssemos dispostos, poderíamos encontrar a unidade necessária na diversidade de nossa igreja.

A geração jovem valoriza o diálogo honesto e a transparência. Eles querem ser levados a sério. As perguntas feitas a Wilson foram bem redigidas e agrupadas em categorias. No entanto, as respostas não abordaram realmente as perguntas. Wilson enfatizou em geral como os cristãos podem desenvolver um relacionamento com Deus e se engajar na missão sem responder às perguntas.

É triste que a liderança da IASD não esteja interessada em uma conversa honesta e aberta. Nos relatórios da Adventist Review após a eleição de Wilson em 2010, ele disse que “a liderança espiritual envolve muita escuta”. As perguntas e respostas mencionadas acima provam o contrário. Ele aparentemente não escuta nem entende as perguntas que estão incomodando os membros da igreja. Talvez seja porque alguém que passou várias décadas nos níveis administrativos superiores da IASD perdeu de vista a realidade da igreja. Os membros da IASD sofrem com o estilo de liderança atual. As pastoras não se sentem totalmente aceitas e estão sofrendo. Wilson poderia pelo menos ter demonstrado empatia nessa conversa. Não houve nenhuma palavra de apreço pelo pastorado feminino.

As diretrizes administrativas da igreja afirmam que ninguém deve ser discriminado com base em raça ou gênero, exceto quando se trata da questão da ordenação. Lá, a discriminação é expressamente exigida.

Devemos ficar satisfeitas com o status quo? O desenvolvimento em nossa igreja mostra que no início as mulheres eram vistas como parceiras iguais no ministério. Como poderia ser diferente em uma igreja onde uma mulher é considerada cofundadora e mensageira de Deus? Nos primeiros tempos de nossa igreja, muitas mulheres receberam licenças ministeriais, embora não tenhamos menção a ordenações. Elas foram tratadas como seus homólogos masculinos. Houve um tempo na história de nossa igreja em que os regulamentos não proibiam as mulheres de servirem como presidentas ou de serem ordenadas.

Após a morte de Ellen G. White, em 1915, as mulheres foram lentamente destituídas de cargos de liderança. Essa regressão foi reforçada por políticas que vinculavam as responsabilidades de liderança à ordenação. Muitos oponentes da ordenação feminina hoje olham para o tempo entre as guerras mundiais como o tempo do “adventismo histórico” ao qual devemos retornar hoje. Foi nessa época e até 1960 que uma mudança rumo ao fundamentalismo mudou significativamente a posição original da igreja. Agora a liderança da Associação Geral vê como sua tarefa defender esse retrocesso.

Deus deu à mulher e ao homem  a mesma tarefa: eles deveriam dominar a terra e dominar os animais. Não houve distribuição de papéis. Eles deveriam fazer isso juntos. E foi tudo muito bom. A degradação do papel da mulher veio pelos efeitos do pecado. A maldição descrevia o resultado do pecado.

Como adventistas do sétimo dia, valorizamos a restauração das instituições estabelecidas na criação, como o sábado e o casamento. A libertação das mulheres da opressão também faz parte da restauração. A salvação quer apertar o botão de reset e restaurar a beleza providenciada por Deus. Mas não parece acontecer por conta própria, não importa quanto avivamento e reforma sejam pregados.

Enquanto a ordenação for prescrita como pré-requisito para a liderança, o nível administrativo da igreja continuará a consistir principalmente de velhos em ternos escuros. Devemos respeitar os homens que defendem a igualdade de tratamento para as mulheres. Estes incluem os líderes corajosos de muitas Divisões e Uniões no mundo ocidental e na Austrália.

Obreiros aposentados de longa data da IASD, como William G. Johnsson e George Knight, declararam em seus últimos livros1 que a igreja que eles serviram por muito tempo está se movendo em uma direção que os deixa muito preocupados. Esta é realmente a igreja que eles serviram por toda a vida? A mesma pergunta é feita por muitos adventistas que estão preocupados com a direção que a IASD está tomando atualmente.

A juventude de hoje é acusada de ser muito bem-comportada e adaptada. Talvez algo esteja mudando lentamente. A estudante sueca Greta Thunberg lançou um movimento de protesto mundial com sua greve escolar Fridays for Future. Muitos adultos se juntaram ao seu protesto. 11.000 cientistas alertam sobre uma crise climática. Ela é homenageada pela Anistia Internacional como uma “embaixadora da consciência”. Ela foi agraciada com o Prêmio Nobel alternativo. Se o mundo deve ser salvo de uma catástrofe climática, já é hora de os governos agirem; caso contrário, a geração jovem não tem futuro. Não existe Plano B para a Terra. Este movimento de protesto quer mostrar aos governantes que eles ignoraram os sinais dos tempos e agora têm que responder. Os políticos deveriam levar isso a sério.

Os resultados das eleições europeias de 2019 mostraram aos partidos políticos tradicionais que eles também estão arriscando seu futuro se os eleitores mais jovens se afastarem deles. Se a liderança não entende mais a base e ignora os sinais dos tempos, algo está errado. Isso se aplica a mais do que política.

Os sinais dos tempos em nossa igreja não se referem apenas a datas proféticas. Qualquer um que observe o desenvolvimento demográfico da IASD perceberá que a maioria das congregações no mundo ocidental está envelhecendo. Muitas igrejas locais mal existirão em 20 anos. Os jovens já votaram com os pés, porque não veem mais a IASD como relevante para suas vidas. A liderança da igreja deve entender que o futuro da IASD também está em perigo. A resposta não é ameaçar organizações não conformes com sanções. A Associação Geral está se tornando irrelevante para as pessoas.

E mesmo assim eles estão lá, os jovens que não desistiram da igreja. Os estudantes da Universidade Andrews, que fizeram fila em um microfone de plenária no dia 2 de março de 2019, protestando silenciosamente, lutaram para serem ouvidos. Eles queriam respostas reais para perguntas urgentes. Embora o orador não tenha prestado atenção a elas, Andrea Luxton, presidenta da Universidade Andrews, que mediou a conversa, disse que elas foram percebidas. Esses jovens querem lutar por sua igreja e ainda esperam que a liderança não apenas exerça poder para impor um modelo ultrapassado, mas seja movida pelo Espírito de Deus para desafiar tradições há muito ultrapassadas. Devemos estar contentes por eles ainda não terem desistido da luta. Eles são um incentivo para nós também.

Muitas vezes penso no que aconteceria se as mulheres adventistas participassem de uma greve na igreja e deixassem seus cargos honorários vagos. As mulheres católicas ousaram fazê-lo. Um pequeno grupo de mulheres em Münster, Alemanha, falou sobre o estado atual da igreja e especialmente sobre discriminação contra mulheres, abuso e moralidade sexual. Sem mulheres, nada acontece na Igreja Católica. Mas as mulheres não têm voz dentro das estruturas da igreja. “Temos que fazer alguma coisa”, disseram elas, “mais do que apenas falar sobre isso”. Elas são ativas nos conselhos paroquiais e na pastoral, supervisionam a preparação da ceia e planejam os cultos familiares. Mas elas não estão autorizadas a batizar ou a receber confissão. Somente homens que vivem em celibato podem fazê-lo. Assim nasceu a iniciativa de protesto “Maria 2.0”, que pede uma mudança nas estruturas da Igreja Católica – uma greve da igreja de 11 a 18 de maio de 2019. A notícia correu rapidamente, e isso se tornou uma ação nacional na Alemanha em que as mulheres nas igrejas mostraram seu protesto. As mulheres não entraram em uma igreja durante este tempo. Elas organizaram cultos em frente às igrejas onde mulheres oficiavam. A participação foi muito maior do que o esperado. A mídia fez notícias sobre a ação. A ação não parece ter tido muito efeito sobre a igreja.

Por pelo menos 140 anos, a Igreja Adventista do Sétimo Dia vem discutindo a questão da ordenação de pastoras. Várias vezes a decisão foi adiada apesar de um estudo completo, com a desculpa: “A Igreja ainda não está pronta para isso.” Há pessoas na IASD que insistem que todos os regulamentos eclesiástico-administrativos sejam rigorosamente seguidos quando se trata da questão das mulheres. As mulheres devem ser pacientes com os irmãos que lutam para abrir espaço para as mulheres. Mas por quanto tempo?

Nós, mulheres do mundo ocidental, podemos sentar à mesma mesa que os homens. Temos o direito de opinar e tomar decisões. Alcançamos uma apreciação e liberdade sem precedentes na sociedade e na política. Os tempos em que as mulheres deveriam cuidar apenas dos filhos, cozinhar e ir à igreja finalmente acabaram. Mas e a igreja? O que as mulheres podem fazer na igreja? As mulheres na igreja têm que preencher silenciosamente os bancos e permanecer em silêncio?

O apóstolo Paulo escreveu muitos textos que são usados ​​contra as mulheres. No entanto, estou convencida de que ele não era misógino. Ele valorizava a cooperação delas e não via problema em chamar Febe de diaconisa porque ela ocupava esse cargo na igreja de Cencreia. As mulheres tinham permissão para orar e profetizar em público. E ele escreveu aos gálatas: “Assim sendo, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vocês são um em Cristo Jesus” (Gl 3.28). Até mesmo Paulo abriu espaço na mesa para as mulheres. Acho que é hora da nossa igreja fazer o mesmo.

Notas:

1. William G. Johnsson: Where Are We Headed? Adventism after San Antonio. George R. Knight: Adventist Authority Wars. 2017 by CreateSpace Independent Publishing Platform.