A luta por mudança nas igrejas faz parte da dinâmica natural das instituições, e deve incorporar a luta por mudanças nas instituições que determinam o funcionamento da sociedade para que seja realmente efetiva


Contraste entre igrejas (Montagem: Jayder Roger)

Hoje, em qualquer denominação de qualquer lugar do mundo, existem grupos de pessoas críticas aos modos de organização das comunidades religiosas e seus conteúdos teológicos. Ao mesmo tempo, há pessoas descontentes com as críticas e denúncias levantadas e reagindo de alguma forma em defesa da ordem ou do conteúdo vigente. Isso é exatamente o que sempre aconteceu em qualquer instituição, em qualquer movimento, em qualquer período e território da história. O conflito é uma condição da realidade humana, independentemente de valores, crenças, preferências, intenções ou vontades. A cada necessidade de se tomar uma decisão, há diferentes posições diante de nossos problemas.

Isso não é uma falha de caráter das pessoas ou uma imperfeição da nossa espécie. É nossa realidade: somos seres comunitários, gregários, que se reproduzem, desenvolvem e organizam coletivamente para se manterem vivos. A imagem da “sociedade perfeita” como um espaço sem confrontos, disputas ou diferenças é extremamente recente, moderna, e está errada desde seu ponto de partida, pois considera a diferença como o problema causador do conflito, identificando uma divergência como manifestação do “mal”. Na expressão cunhada por Kant, seria a realização da “paz perpétua” — que, como destacou o filósofo Emmanuel Lévinas, trata-se na verdade da “paz dos cemitérios”.

Há conflitos porque há vida e há a necessidade de permanecermos em vida. Uma situação de emergência inesperada que afeta toda uma comunidade requer uma tomada de decisão para a manutenção de sua vida. As diferentes projeções que surgem diante desse contexto implicam em um uso diferente dos recursos escassos e finitos disponíveis e, no limite, na manutenção ou não da vida desse determinado grupo humano. Nesse caso, o conflito não foi causado por maldades ou pela “corrupção” no coração das pessoas. A finitude dos recursos, nossa condição mortal e a necessidade de garantir a reprodução da vida da comunidade são a causa, e os projetos diferentes que buscam solucionar o problema incorrem em uma decisão incerta que afeta a todas as pessoas, colocando a comunidade em risco.

Para garantir que a vida prossiga, as comunidades criam meios para a realização dos projetos escolhidos (não nos esqueçamos: nunca fomos e nem somos indivíduos isolados, sempre nascemos da barriga de alguém, fomos alimentados por outras pessoas, nos ensinaram uma língua, hábitos e etc.). Esses meios precisam ser mantidos por um tempo. São as “instituições”. A disciplina de não comer todo o estoque de alimentos disponível em um único dia, mas provisionar para que este dure todo um período, é uma dinâmica institucionalizada. Ter horário para o trabalho e para encerrar o trabalho, estabelecer dias de descanso, lideranças, funções de trabalho e responsabilidades diversificadas dentro da comunidade, papéis familiares, etc. — tudo isso diz respeito ao processo de institucionalização.1 Criar e estabelecer instituições é um movimento necessário para a manutenção de todo grupo humano.2

As instituições, contudo, são limitadas. Não são perpétuas em suas dinâmicas: precisam ser alteradas, não pela preferência ou vontade de indivíduos isolados, mas de acordo com a transformação do meio, de novas situações não planejadas, diante dos efeitos imprevistos e não planejados das ações da própria comunidade, e mesmo diante de situações de crise provocadas por novas condições ou impostas por alguma catástrofe. Com novos contextos, instituições antes úteis podem se tornar inúteis ou ainda obstáculos para a manutenção da vida da comunidade — perdendo seu propósito, portanto.

Mas isso não acontece apenas em situações excepcionais. As dinâmicas da própria instituição podem ser destrutivas em um novo contexto sem que ninguém perceba ou se atente aos problemas que já estavam ali desde o início, sem que houvessem se manifestado. É curioso, por exemplo, a história de José, que nos é apresentada a partir do capítulo 37 de Gênesis e nos acompanha até o final do livro (com uma janela especial para outra personagem fantástica, Tamar).

Como é amplamente sabido, José se torna governador do Egito e institui o provisionamento de alimentos no período de abundância para garantir que haja comida para todos durante o período de escassez. No tempo de vacas magras, os povos vizinhos (que não realizaram o mesmo planejamento e projeto de estocagem de alimentos para que toda a comunidade permanecesse viva) vão para o Egito em busca de grãos. Quando acabam as possibilidades de trocas comerciais, José propõe um novo tipo de troca: que as comunidades em busca de alimento realizem trabalhos no território egípcio em troca da garantia de alimento para que a própria comunidade não se destrua, mas se reproduza. A própria família de José entra nessa dinâmica e há paz entre os povos durante o período de crise, sendo garantidas as condições de manutenção da vida de todos.

O livro de Êxodo, porém, indica a falência da instituição da servidão construída por José: toda a geração que vivenciou aquele período morre e, tempos depois, “subiu ao trono do Egito um novo rei, que nada sabia sobre José” (Êx 1.8). Não sabia as razões pelas quais foram instituídas aquelas relações de trabalho — não mais necessárias, passado o período da escassez. Na dinâmica histórica, contudo, ao invés de garantirem a vida da comunidade, essas relações instituídas se converteram em seu oposto, garantindo agora as condições para a destruição da vida dos grupos humanos e, no limite, a instauração da escravidão.

Essa conversão no interior de uma instituição ocorre a todo momento: construções que em um determinado contexto histórico garantem a manutenção da vida humana, no seguinte a destroem. Por isso a constante necessidade de planejamento, discussões, espaços de mediação e debates. Trata-se de entender a necessidade dos conflitos, que se dão independentemente das vontades individuais, mas fazem parte de nosso modo de vida. Aprender e entender isso nos ajuda a nos mobilizarmos e também convertermos nossas instituições.

Na tradição semita e nas igrejas, esse sempre foi o papel da profecia:3 denunciar o mal e anunciar o bem para que haja reorganização da vida da comunidade. A denúncia é contra ordens estabelecidas e a conversão requerida é comunitária ou coletiva. Entretanto, como é normal e como deve ser, a instituição percebe uma crítica ou denúncia como uma ameaça à ordem que tem garantido a vida de todos.4

Na verdade, “a instituição” é composta de pessoas que executam o poder por meio dos cargos institucionalizados e de grupos que, mesmo não sendo parte integrante do corpo dirigente, temem pelo fim das condições até então necessárias. Essas posições independem de suas preferências ou vontades individuais em um primeiro momento. São posições condizentes com os papéis e funções desempenhados dentro da ordem vigente. Há, desse modo, o que podemos chamar de dialética histórica da institucionalização: a ação crítica e a resposta institucional necessárias e que determinarão o futuro de um determinado grupo humano.

Compreender esses processos possibilita que criemos meios, mecanismos e mediações de conflitos entre quem executa o poder e quem questiona a ordem vigente. Nesse ponto de nossa discussão, já deve estar claro que “poder” e “execução do poder” não são entendidos aqui de modo negativo. Sem nossos projetos e meios que tornem realizáveis esses projetos, é impossível que acordemos no dia seguinte. Está posto em questão, então, como conduziremos os conflitos institucionais. Isso é determinante para que consigamos nos organizar e mobilizar, transformar ordens vigentes e manter mobilizados os mecanismos institucionais necessários para a manutenção das nossas vidas, dos nossos grupos e, o que nos interessa aqui, de nossas igrejas.

Nas dinâmicas de conflito, portanto, quem critica uma ordem não pode cair na ingenuidade de imaginar ser possível abrir mão de toda ordem e, no limite, de condenar uma instituição por executar o poder — por ser instituição. Do mesmo modo, quem defende a ordem não pode se limitar a reduzir qualquer crítica à condição de “ameaça” que precisa ser eliminada ou um risco de destruição da instituição. Os espaços e mecanismos de mediação dos conflitos devem servir para isso: não para garantir o “fim do conflito”, mas sua condução, para que seu fruto seja a reconstrução de uma ordem (talvez nova) diante das atuais condições. O critério que acompanha essa decisão é a manutenção, reprodução e permanência da vida da comunidade.

Nesse sentido, para quê se exige a mudança nas igrejas? Bem, que seja para a garantia de vida das pessoas e renovação da vida da própria comunidade. A instituição precisa ser revista — e é nesse sentido que grupos contestatórios da ordem hegemonizada pautam a inclusão de grupos humanos, alteração de costumes, hábitos e mesmo outros conteúdos. Essas reivindicações precisam ser consideradas e a discussão aberta. Compomos esses grupos contestatórios, inclusive. Entretanto, quando entendemos que a instituição “igreja” desempenha um papel dentro de uma outra instituição mais ampla chamada “reprodução social” (o modo como nos organizamos socialmente para que todos e todas prossigamos em vida), esse novo aspecto amplia e aprofunda nosso problema: somos parte de uma instituição que organiza a vida de uma comunidade, mas não é a determinante para a vida de todos e todas as pessoas — inclusive dos grupos humanos que queremos que sejam incluídos em nossas comunidades.

Estamos no interior de um conflito diário mais amplo, que diz respeito à manutenção ou não de uma ordem que, independentemente de nossas vontades individuais, orienta como reproduzimos a vida de todas as pessoas, incluindo nossos irmãos e irmãs de nossas igrejas, as lideranças e os rejeitados. Esse conflito não é “externo” à igreja, portanto, mas a constitui. Sua própria ordem funciona e se mantém inserida nessa ordem maior. Se a igreja enquanto instituição entra em conflito direto com a instituição da reprodução social, ela será percebida como ameaça e combatida. Em termos gerais, enquanto a igreja ajuda a manter a reprodução social brasileira (que é burguesa e capitalista), ela será aceita como instituição, independentemente de sua vertente (se progressista, reacionária conservadora, liberal etc.).

No interior das muitas disputas sociais, a manutenção ou não da instituição “igreja” tem na reprodução social seu conteúdo fundamental. Se com ela a ordem produtiva pode ser mantida, ela é funcional e não será perseguida enquanto igreja. Mas se bater de frente com esse fundamento de toda relação social, não poderá ser tolerada, pois este é o risco de colocar grupos humanos contra o que rege a reprodução da vida desses mesmos grupos humanos (no nosso caso, um modo de produção baseado na exploração do trabalho e destruição da natureza). Enfim, a luta de classes também constitui a igreja — ela está no meio dela e acompanha sua manutenção, reprodução ou transformação.

Perguntemos mais uma vez: mudar a igreja para quê? Quais os nossos critérios e quão dispostos estamos a levar adiante nossos projetos para a vida humana, para a vida de nossos irmãos e nossas irmãs? Queremos um espaço que altere internamente a ordem para incluir novos sujeitos, mas que os mantenha sob as condições de exploração e violência que orientam a reprodução de nossas vidas? Quais os horizontes que colocamos em nossas pautas? Por que não as chamamos de “lutas”? Qual o conteúdo da nossa mensagem? E do nosso testemunho?

Hoje, o fim da reprodução social capitalista é a garantia de vida para nossas filhas e nossos filhos. Hoje, uma igreja que não compactue com essa reprodução social e nem com mecanismos de opressão contra grupos humanos é a garantia de que haja possibilidade de vida digna e de gente que encontre a mensagem de Jesus. Hoje, mais do que nunca, nossa luta não é contra “carne ou sangue”, mas contra esses exercícios de poder e modos de governo do mal. Essa luta, na verdade, não é “para a igreja” ou “na igreja”, mas “por meio da igreja” para que a vida (presente de Deus) seja possível.

Notas:

1. Para uma discussão aprofundada do tema, recomendamos a leitura de Franz Hinkelammert, especialmente o livro Ideologías del desarrollo y dialéctica de la história, publicado pela Nueva Universidad em 1970 (livro digital disponível gratuiatamente aqui: https://coleccion.uca.edu.sv/s/franz-hinkelammert/media/3021), Ética da libertação, publicado em português pela Editora Vozes em 2000, e 20 teses de política, publicado em português pela Expressão Popular em 2007 (ambos podem ser baixados gratuitamente aqui: https://enriquedussel.com/novedades/libros/ ).

2. Trabalhamos cuidadosamente o problema das instituições em Fetichização do poder como fundamento da corrupção, publicado pela Editora Fi em 2018. É possível acessar gratuitamente o livro digital aqui: https://www.editorafi.org/293bruno

3. É curioso como Paulo faz uma ardente defesa do dom da “profecia” na carta aos coríntios por sua função de edificadora na igreja.

4. Vale ler o capítulo “O falso jejum e a guerra entre deuses”, publicado em Fascismo como religião, em 2022, pela Editora Pajeú. O livro digital pode ser baixado gratuitamente aqui: https://drive.google.com/file/d/1JnbNz-OLPAlqTo2rIRQN4sG_fIxQ-0tk/view