Deus pode negociar até seus princípios ao escutar o protesto dos homens


Texto original do Pete Enns, de Jared Byas. Tradução e adaptação para a revista Zelota.

Há uma interessante história em Gênesis que apresenta Deus como alguém “sem princípios”. E eu gosto disso. 

Em Gênesis 18, Deus aparece a Abraão para anunciar-lhe que ele terá um filho. Um parêntese: fica incerto se é Deus quem aparece a Abraão ou se YHWH simplesmente envia três seres angélicos para representá-lo, já que o texto diz “YHWH apareceu a Abraão” e depois “Abrão ergueu os olhos e viu três homens, de pé na frente dele”. O Talmude chega a ser ainda mais específico ao dizer que os três homens eram os anjos Rafael, Miguel, e Gabriel (Bava Metzia 86b). Não apenas isso, mas a mesma seção do Talmude nos diz que a refeição que Abraão prepara foi um prato de três línguas de novilhos com mostarda: “uma iguaria única”. 

Perdão, digressão de nerd. 

O ponto é: Deus vem a Abraão, e, quando se prepara para sair, resolve deixar com ele um segredinho: o Todo-Poderoso está indo em direção à Sodoma para ver se as coisas lá estão tão ruins quanto os comunicados da imprensa afirmam estar. E então (eu amo este verso): “Os homens partiram dali e foram para Sodoma, mas Abraão permaneceu diante do Senhor”.

E as negociações começam:

Abraão: “Você vai poupar a cidade se ali houver 50 pessoas boas?”

Deus: “Claro, por que não?!”

Abraão: “Eu tive a coragem de falar com Deus e nem fui atingido por um raio… Então, Deus, 

e se tiver menos que 50? Destruiria a cidade toda por um detalhe técnico de 5 pessoas a menos?” 

Deus: “Tá, se eu encontrar 45 pessoas, não destruirei a cidade”.

Abraão: “Eu ouvi 40?”

Deus: “Tá bem.”

Abraão: “Você ficaria nervoso se eu pedir por 30?”

Deus: “Okay, okay, se eu encontrar 30 não explodo a cidade.”

Abraão: “20?”

Deus: “Pelos 20, não destruirei a cidade.”

Abraão: “Não fica nervoso, mas e se tiver só 10?”

Deus: “Por amor aos 10, não destruirei a cidade.”

Vamos esquecer por um minuto que conhecemos o que acontece no próximo capítulo. Alerta de Spoiler: Não tinha as tais 10 pessoas, e as coisas não acabaram bem para o pessoal.

Eu quero focar por um minuto nesse diálogo que acontece logo no primeiro livro da Bíblia. Aqueles que dizem que o Deus do Antigo Testamento é um Deus de regras e leis rígidas não leram Gênesis 18 (ou então, voltem para Êxodo 32, onde Moisés faz algo semelhante a Abraão). 

Aqui, desde o começo, o texto nos convida a falar com Deus, mesmo quando os outros estão “apenas seguindo ordens”. Aqui, desde o princípio, Deus está disposto a mudar Sua própria Palavra por amor ao seu povo. Mas foi necessário que uma pessoa interviesse. 

Qual é o fundamento ético que encontramos em Gênesis 18? Que princípio absoluto de moralidade encontramos aqui? Nós não encontramos nada disso. O que encontramos é uma conversa, uma negociação, uma permuta entre um homem sábio que está tentando fazer a coisa certa e um Deus que não ensurdeceu com a “lei e a ordem”, e pode escutá-lo. 

Quando superamos as ordenanças e liturgias e optamos pelo diálogo, estamos saindo da imaturidade para a maturidade. E, como diz Pete em seu livro How the Bible Actually Works [“Como a Bíblia realmente funciona”], este é o melhor modelo para nosso relacionamento com a Bíblia. 

Na realidade, talvez vejamos Jesus conduzindo essa história à sua conclusão lógica no primeiro livro do Novo Testamento, novamente no capítulo 18: “O que vocês acham? Se alguém possui cem ovelhas, e uma delas se perde, não deixará as noventa e nove nos montes, indo procurar a que se perdeu? E se conseguir encontrá-la, garanto-lhes que ele ficará mais contente com aquela ovelha do que com as noventa e nove que não se perderam. Da mesma forma, o Pai de vocês, que está nos céus, não quer que nenhum destes pequeninos se perca (Mt 18:12-14)”.