A profecia de Habacuque destaca a resistência dos justos por meio da fé como motor contra a opressão dos poderosos, reafirmando a possibilidade de transformação mesmo em contextos de desespero
O pequeno e poucas vezes lembrado livro bíblico que guarda a memória do profeta Habacuque parece ter sido muito importante para as primeiras comunidades de seguidores de Jesus. Isso porque os ditos desse profeta são referenciados tanto por Paulo em duas de suas cartas (para a igreja de Roma e para a igreja da Galácia) quanto pela autoria do livro de Hebreus. “O justo viverá pela fé” , que chegou a se tornar bordão de cultos de vitória e libertação, é fruto da visão apresentada por Habacuque.
O oráculo desse profeta vem em um período de desolação e falta de esperança por parte de seu povo, que sofria com uma crise política, econômica e social interna, além da pressão externa causada pela invasão e domínio do Império Babilônico. Do ponto de vista popular, não havia saídas e os inimigos eram muito poderosos. A aposta, como aparece no livro de Habacuque, era em uma força que estaria para além daquelas relações e condições sobre as quais se teria controle. Basicamente, tratava-se em saber que os poderosos não duram para sempre e a história não está definida — ainda que não seja possível ver quem será o agente de transformação da realidade opressora e de crise então vigente.
Desse modo, parece que podemos refletir algo a partir da sabedoria contida na profecia deste pequeno vigia, que observava de cima do muro da cidade a crise interna e a ameaça externa que assolavam seu povo. Hoje, em tempos nos quais seria mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo (na expressão de Mark Fisher), de onde virá o nosso socorro ou a nossa esperança?
A profecia de Habacuque
O texto de Habacuque começa sua narrativa anunciando uma mensagem recebida pelo profeta por meio de uma visão (1.1). Diferentemente de outros textos proféticos narrados em primeira pessoa, nos quais o profeta se apresenta ou descreve o local e o tempo em que se encontra, prontamente somos postos a ouvir uma queixa vinda de uma voz ainda sem rosto ou descrição — não sabemos se seria do próprio profeta ou de alguma personagem que tenha aparecido em sua visão (1.2-4). A reclamação é dirigida a Javé, o Senhor, questionando com indignação os motivos do silêncio do Senhor diante das calamidades pelas quais sua cidade está passando. A queixa atesta o cansaço desse sujeito (ainda desconhecido) quando diz:
Até quando, Senhor, clamarei pedindo ajuda, e tu não me ouvirás? Até quando gritarei: “Violência!”, e tu não salvarás? Por que me fazes ver a iniquidade? Por que toleras a opressão? Pois a destruição e a violência estão diante de mim; há litígios e surgem discórdias. Por isso, a lei se afrouxa e a justiça nunca se manifesta. Porque os ímpios cercam os justos, e assim a justiça é torcida. (1.2-4)
Vemos, portanto, a ousadia de uma pessoa ainda não identificada de enfrentar o Senhor, responsabilizando-o por seu silêncio diante da violência e da corrupção que assolam seu território. Em seguida, o texto é interrompido por uma nova voz, que chama a atenção dos leitores para a invasão de um exército que marcha pela terra, arrasando nações e destruindo tudo o que vê pela frente (1.5-11). Subentende-se ser a voz do Senhor, que não responde à queixa do primeiro personagem, mas apenas amplia a situação caótica ao afirmar que é ele quem envia esse exército (1.6).
A voz do primeiro personagem ressurge fazendo mais um clamor, dirigindo-se ao Senhor, apostando que este não esteja planejando exterminar todo o povo (1.12a). Em sua interpretação dos acontecimentos externos, entende que a invasão do exército estrangeiro é uma disciplina enviada por causa dos pecados cometidos pela gente da qual nosso personagem faz parte — pecados estes já identificados em seu primeiro clamor (violência, corrupção e injustiça). Em sua nova queixa, agora voltada ao perigo do exército que vem contra o povo, a voz não identificada na visão de Habacuque questiona:
Por que, então, toleras os traidores e te calas quando os perversos devoram aqueles que são mais justos do que eles? Por que tratas as pessoas como se fossem peixes do mar, como se fossem animais que rastejam, que não têm quem os governe? O inimigo pesca todos com o anzol, apanha-os na sua rede e os ajunta na sua rede de arrastão; então ele se alegra e fica contente. Por isso, ele oferece sacrifício à sua rede e queima incenso à sua rede de arrastão, pois é por meio delas que aumentou as suas riquezas e tem abundância de comida. Mas será que ele continuará a esvaziar a sua rede? Será que continuará a matar os povos sem dó nem piedade? (1.13-17)
Após esse lamento angustiado, encontramos uma pista de quem pode ser este personagem quando conclui sua fala crítica ao Senhor dizendo: “Estarei na minha torre de vigia, ficarei na fortaleza e vigiarei para ver o que Deus me dirá e que resposta eu terei à minha queixa” (2.1). A cena do diálogo entre este sujeito e Javé termina com seu posicionamento na torre de vigia, provavelmente nos muros ou nas imediações de uma cidade fortificada, à espera da invasão inimiga.
A partir de sua queixa sobre a violência e corrupção de uma cidade, de vislumbrarmos um exército poderoso que a tudo destrói na terra, somos levados pela narrativa ao local da lamentação, de um ponto que observa do alto o que acontece dentro e fora dos muros da cidade. Sob a responsabilidade de proteger o povo contra seus inimigos, o vigia se vê impotente para realizar sua tarefa — seja por causa da corrupção interna, seja pelo poder de quem vem invadir sua terra. Em seguida, somos guiados para a resposta do Senhor, tão aguardada pelo vigia, que agora, ao que parece, pode se tratar do próprio Habacuque (pois o texto se inicia com “O Senhor me respondeu e disse” (2.2a):
Escreva a visão, torne-a bem legível sobre tábuas, para que possa ser lida até por quem passa correndo. Porque a visão ainda está para se cumprir no tempo determinado; ela se apressa para o fim e não falhará. Mesmo que pareça demorar, espere, porque certamente virá; não tardará: “Eis que a sua alma está orgulhosa! A sua alma não é reta nele; mas o justo viverá pela sua fé. Assim como o vinho é enganoso, também o arrogante não se contém. O seu apetite é como a sepultura; ele é como a morte, que nunca se farta. Ele ajunta para si todas as nações e congrega todos os povos.” (2.2b-5)
Bem, finalmente encontramos o trecho ao qual nos referimos inicialmente em nosso texto. Nele, vemos uma contraposição entre os justos e os arrogantes poderosos que confiam em suas próprias forças. Vemos uma contraposição que se inicia no próprio lamento do vigia, quando este questiona se os que são mais justos serão eliminados pelos perversos que os engolem. E aqui, “justos” significa aqueles que não são violentos, não oprimem e, especialmente, não corrompem a justiça (1.4). Para eles, na voz do Senhor, vem um momento de esperança com um longo discurso que denuncia as maldades e injustiças praticadas pelos perversos, enquanto anuncia o que acontecerá com eles como consequência do mal realizado:
Não é fato que todos esses povos proferirão contra ele um provérbio, um dito em tom de zombaria? Eles dirão: Ai daquele que acumula o que não é seu — até quando? —, e daquele que se enche de coisas penhoradas! Será que não se levantarão de repente contra você os seus credores? E não despertarão aqueles que farão você tremer? Você lhes servirá de despojo. Visto que você despojou muitas nações, todos os povos que restaram virão despojá-lo. Porque você derramou muito sangue e cometeu violência contra a terra, contra as cidades e contra todos os seus moradores. Ai daquele que ajunta em sua casa bens mal-adquiridos, para pôr o seu ninho num lugar bem alto, a fim de livrar-se das garras do mal! Os seus planos resultarão em vergonha para a sua casa. Ao destruir muitos povos, você pecou contra a sua própria vida. Porque as pedras das paredes clamarão contra você, e as vigas do madeiramento farão eco. Ai daquele que edifica uma cidade com sangue e a fundamenta na iniquidade! Será que não é a vontade do Senhor dos Exércitos que os povos trabalhem para o fogo e que as nações se fatiguem em vão? (2.6-13)
A denúncia do mal e o anúncio da ira do Senhor seguem até o final do capítulo (2.6-20), com séries de estruturas e referências a outras narrativas bíblicas que não poderemos trabalhar aqui. Contudo, cabe destacar que, mesmo no trecho apresentado acima, as paredes e as vigas dos telhados realizam o mesmo papel que a terra na narrativa de Gênesis 4, quando Caim mata seu irmão Abel. A terra clama pelo sangue do irmão; do mesmo modo, a casa clama pelo sangue dos que foram mortos para que ela fosse construída.
Há um paralelismo entre o orgulhoso e o que acumula, que faz credores e que domina sobre os demais. Aquele que “ajunta as nações” é caracterizado de diversas maneiras. Contudo, a respeito dos justos, não temos apresentação ou descrição. Não há paralelo explícito para os justos. A única pista deixada é que, em algum momento, aqueles que foram violentados pelos orgulhosos, acumuladores e dominadores vão reagir.
No oráculo, as vozes silenciadas veem seus algozes caírem com sua violência e colherem os frutos de sua injustiça. Por causa disso, a sequência do último capítulo de Habacuque é uma música, em uma drástica mudança no estilo do texto que, por sua vez, pressupõe uma música instrumental que o acompanhe. Esta canção, anunciada como uma oração entoada por Habacuque (3.1) é uma celebração pelo fim da opressão anunciada pelo Senhor em resposta ao vigia.
O poeta exalta com alegria a esperança que tem por ver os trilhos da história recolocados em seu lugar: os justos desfrutando de uma nova possibilidade de vida e os injustos, ou seja, os violentos, opressores e corruptores da justiça, perdendo seu poder e seu lugar na execução do poder. O “justo viverá por sua fé” depende desse contexto de tensão entre injustiças praticadas e a esperança de que as denúncias e anúncios do fim da opressão encontrarão seu lugar no tempo, nessa terra, em uma data que há de vir e com a vingança das pessoas violentadas (2.6-8). A fé, nesse texto, por vezes é traduzida por “fidelidade” (que pode ser interpretada tanto à profecia, quanto ao Senhor). Contudo, seu conteúdo de esperança é o mesmo: o fim da perversidade que a violência, a opressão e a corrupção causam.
O canto de guerra de Habacuque
A música apresentada como fechamento desse pequeno livro profético cria uma sequência de imagens impactantes e de dimensões titânicas ou cósmicas. Há nela a descrição de poderosos fenômenos naturais que perturbam e encantam a imaginação de quem a ouve ou lê. O espanto com a grandiosidade da desgraça potencial é tensionado pelo ânimo da possível libertação que vem do que está “para além” do controle dos poderosos: o imponderável, o tempo, a história e os movimentos da natureza que são imensamente maiores do que o poder de exércitos, reis ou senhores.
Assim, vemos na primeira parte da poesia o seguinte:
Senhor, tenho ouvido a tua fama, e me sinto alarmado. Aviva a tua obra, ó Senhor, no decorrer dos anos, e, no decurso dos anos, faze-a conhecida. Na tua ira, lembra-te da misericórdia. Deus vem de Temã, o Santo vem do monte Parã. A sua glória cobre os céus, e a terra se enche do seu louvor. O seu resplendor é como a luz, e raios brilham da sua mão; o seu poder se esconde ali. Adiante dele vai a peste, e a pestilência segue os seus passos. Ele para e faz a terra tremer; olha e sacode as nações. Esmigalham-se os montes primitivos; as colinas antigas se abatem. Os caminhos de Deus são eternos. Vejo as tendas de Cusã em aflição; os acampamentos da terra de Midiã tremem. Acaso é contra os rios, Senhor, que estás irado? É contra os ribeiros a tua ira ou contra o mar, o teu furor, já que andas montado nos teus cavalos, nos teus carros de vitória? Preparas o teu arco; a tua aljava está cheia de flechas. (3.2-3a)
A tensão entre temor e esperança fica expressa já na chamada do profeta a respeito do Senhor em sua ira: “lembra-te da tua misericórdia”. A aposta da poesia é que desse poder, que está para além da ordem vigente, venha a esperança que estará ao lado dos que sofrem, dos que precisam de misericórdia. Para o profeta, aparentemente as ações do Senhor afetam a todos e, em algum momento, vêm em favor do povo que sofre nas mãos dos poderosos em seu orgulho e confiança.
A poesia continua:
Tu fendes a terra com rios. Os montes te veem e se contorcem; torrentes de água passam. As profundezas do mar fazem ouvir a sua voz e levantam bem alto as suas mãos. O sol e a lua param nas suas moradas, ao resplandecer a luz das tuas flechas sibilantes, ao fulgor do relâmpago da tua lança. Na tua indignação, marchas pela terra; na tua ira, pisas as nações. Tu sais para salvar o teu povo, para salvar o teu ungido. Feres o chefe da casa dos ímpios, deixando-o descoberto dos pés à cabeça. (3.3b-13)
Em uma sequência de imagens cósmicas, temos a sabedoria de que, sob o efeito dos fenômenos e acontecimentos que estão para além do controle de nossas ações, há potenciais processos de libertação e de enfraquecimento dos hoje dominantes. Para o povo e para o profeta, seriam nessas situações fora de controle que ocorreriam as janelas para que os inimigos fossem derrotados. Rememorar que nada está fixo ou decidido na história e no processo do curso da vida animava o povo, que expressava a tensão de ter que lutar sem poder realizar a libertação — que diremos sobre vislumbrar um futuro diferente, outro mundo necessário.
Trata-se de uma esperança sem esperança (ou contra toda esperança). É uma aposta de “fé na vida, fé no homem, fé no que virá” deslocada para a impossibilidade dos poderosos terem poder sobre tudo. Uma canção, portanto, que anima o povo não com uma promessa de paz e abundância, mas sob o conflito encaminhado e sob a incerteza, que seriam propriamente as marcas da libertação possível. Por isso, a poesia de Habacuque termina da seguinte maneira:
Traspassas a cabeça dos guerreiros do inimigo com as suas próprias lanças, os quais, como tempestade, avançam para me destruir; alegram-se, como se estivessem para devorar o pobre em segredo. Marchas com os teus cavalos pelo mar, pela massa de grandes águas. Ouvi isso, e o meu íntimo se comoveu; os meus lábios tremeram ao ouvir a sua voz. A podridão entrou nos meus ossos, e os meus joelhos vacilaram, pois, em silêncio, devo esperar o dia da angústia, que virá contra o povo que nos ataca. Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na videira; ainda que a colheita da oliveira decepcione, e os campos não produzam mantimento; ainda que as ovelhas desapareçam do aprisco, e nos currais não haja mais gado, mesmo assim eu me alegro no Senhor, e exulto no Deus da minha salvação. O Senhor Deus é a minha fortaleza. Ele dá aos meus pés a ligeireza das corças, e me faz andar nas minhas alturas. (3.14-19)
O justo, portanto, vive por sua fé de que nada está sob controle — e essa é a possibilidade de esperança, pois aí mora a fraqueza dos poderosos. Uma fé popular e que buscava a seu tempo animar sua gente em uma situação limite. Essa tradição é assumida e recuperada por comunidades cristãs dos primeiros séculos, que vivenciavam os processos de crise do Império Romano, a destruição de Jerusalém e a perseguição das comunidades de escravos que eram seguidoras do caminho, contestando a ordem vigente.
Em nosso tempo, no qual aparentemente é “mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, esse tipo de racionalidade e de esperança precisa ser relembrado e utilizado para o ânimo e para a organização popular. São tempos de crise generalizada e que exigem uma sabedoria inspirada para que vislumbremos algum futuro e organizemos hoje os meios disponíveis para animar a contestação da ordem vigente e o trabalho por um novo mundo necessário.