A Teologia da Libertação preocupou-se desde o início com a vida concreta e, portanto, aliou-se a questões econômicas e sociais, denunciando a estrutura capitalista e constrangendo seus defensores


“Trabalhadores” (Renina Katz, 1948-1956)

Por Franz J. Hinkelammert | Texto traduzido e adaptado do original em espanhol para a revista Zelota por Daniel José Burato.

Nas páginas a seguir quero abordar a teologia da libertação de acordo com o que tenho vivido e experimentado como participante de seu desenvolvimento. Não pretendo fazer uma história dela. Isso levaria a uma análise muito mais diversificada e, possivelmente, mais imparcial, do que eu posso oferecer. Melhor será apresentar o que tem sido a minha preocupação e de outros companheiros com os quais trabalho desde 1976 no DEI, e que nos levou a sentirmos parte desta corrente de pensamento na América Latina de hoje. Trata-se precisamente da tese de que qualquer teologia da libertação tem que se desenvolver na discussão teórica da relação entre economia e teologia. Portanto, a abordagem a seguir parte desta problemática.

A teologia da libertação como teologia concreta

A teologia da libertação é teologia concreta, teologia histórica. Por isso é adequado perguntar sobre o contexto histórico desta teologia. Seu desenvolvimento pode ser observado no período histórico das últimas três décadas (1960-1990), em uma história latino-americana muito conturbada. Por conseguinte, nos depararemos com uma teologia da libertação que pondera, constrói e reelabora esta história da qual conscientemente faz parte.

Como teologia concreta, a teologia da libertação está inserida na sociedade da América Latina. Comunidades de Base, movimentos populares e inclusive partidos políticos são lugares chave a partir dos quais se desenvolve esta teologia. Ao inserir-se na história concreta latino-americana, localiza-se em lugares concretos desta história. Não fala somente nestes lugares concretos, mas reflete sobre a situação histórica a partir deste lugar para se desenvolver como teologia. Por isso, suas análises estão vinculadas de maneira estreita com as teorias das ciências sociais. Não podem deduzir sua análise concreta de suas posições teológicas, mas ao mesmo tempo suas posições teológicas não podem ser independentes do resultado de suas análises concretas.

No entanto, a teologia da libertação não é uma ciência social, mas teologia. Em relação a suas análises concretas da situação histórica, esta teologia se desenvolve como uma dimensão teológica desta situação histórica. Como tal, está exposta ao risco de se equivocar. Não tem verdades absolutas especificadas a priori. Nos termos muitas vezes usados por esses teólogos, trata-se da única ortodoxia cristã possível, que é ortopráxis. O próprio cristianismo nasceu como ortopráxis e não como um sistema fechado de afirmações dogmáticas vazias. Encontrar a práxis adequada à situação é seu problema. Por isso está em um desenvolvimento contínuo na medida em que mudam os problemas, e se adquirem conhecimentos novos para enfrentá-los. É teologia viva.

Mas uma teologia pode ser pronunciada como tal antes de entrar na análise concreta e na “ortopráxis” correspondente. Como teologia, antecede a práxis. Porém, ao anteceder a práxis, é um conjunto de crenças vazias. A existência de Deus, seu caráter trinitário, a redenção, etc., ao serem professadas como atos de uma fé independente de sua inserção histórica e concreta, não são mais que abstrações vazias que compõem uma dogmática sem conteúdo. O problema da teologia da libertação não é negá-las, mas perguntar pelo significado que têm. Portanto sua pergunta não é “Deus existe?”, mas “onde está presente?” e “como atua?”. O ponto de partida da teologia da libertação é, então, a pergunta pelo lugar concreto e histórico no qual Deus se revela.

A teologia da libertação nasce da resposta que dá a esta pergunta. Esta resposta se dá por meio do que estes teólogos chamam de “opção pelos pobres”. Esta opção pelos pobres é opção de Deus, mas também opção dos seres humanos que querem se libertar. A libertação, portanto, é a libertação dos pobres. Não como ato de outros que tenham o dever de libertar os pobres, vistos como objeto. Sem reconhecimento mútuo entre sujeitos, cuja pobreza é a negação real deste reconhecimento, não há opção pelos pobres. Os sujeitos humanos não podem se reconhecer mutuamente sem que se reconheçam como seres de necessidades corporais e naturais. A pobreza é uma negação da realidade deste reconhecimento. Porém, do ponto de vista dos teólogos da libertação, o ser humano não pode se libertar para ser livre sem este reconhecimento mútuo entre sujeitos. Deste modo, o pobre como sujeito, que se encontra nesta relação de reconhecimento, é o lugar em que se decide se este reconhecimento é efetivo ou não. Portanto, o outro lado do reconhecimento mútuo dos sujeitos humanos como seres naturais e necessitados é a opção pelos pobres.1

Portanto, nos pobres se faz presente a ausência desse reconhecimento mútuo entre seres humanos. Porém, segundo a teologia da libertação, Deus está onde este reconhecimento ocorre. O fato de que não tenha ocorrido mostra uma relação humana em que Deus está ausente. A existência dos pobres testemunha a existência de uma sociedade sem Deus, acreditem explicitamente em Deus ou não. Esta ausência de Deus, não obstante, está presente onde eles gritam. A ausência de Deus está presente nos pobres. Os pobres são presença do Deus ausente. Trata-se visivelmente de um caso de teologia negativa, na qual a presença de Deus – uma presença efetiva – está dada pela ausência, uma ausência que grita, e por necessidade. Vivendo a ausência de Deus, sua presença é percebida fazendo a sua vontade. Consequentemente, não pode existir uma presença de Deus que negue a opção pelos pobres, no entanto esta opção pode estar unicamente implícita. Todavia, como opção, tem que estar.

Assim sendo, a presença de Deus não está em algum ser, mas em uma relação social entre seres humanos. No reconhecimento mútuo entre sujeitos que não excluem ninguém. Deus está presente e sua ausência é superada. Porém sua ausência retorna no momento em que se perde este reconhecimento.

A teologia da libertação nasce como teologia concreta a partir desta reflexão, embora tenha distintas expressões entre os diferentes teólogos. Tem assim um lugar a partir do qual pode interpretar a realidade histórica. É um lugar que se pode mostrar com o dedo. Pode protestar pelo abandono de Deus e pela sua ausência, pode pretender assumir a responsabilidade por essa ausência, e pode reivindicar o reconhecimento de Deus ao transformá-lo em Deus presente. A presença de Deus não pode ser somente uma emoção interior. É práxis (ortopráxis). Tem critérios na própria realidade. A presença de Deus está no fato de que não haja pobres. A presença de Deus realiza ou atua. Portanto, o contrário da pobreza não é a abundância de coisas, mas a plenitude da vida que se constitui a partir do reconhecimento mútuo entre sujeitos corporais e de necessidades.

Neste sentido, a teologia da libertação é ortopráxis. Deus não diz o que tem que ser feito. Sua vontade é libertar os pobres, mas o caminho da libertação deve ser buscado. Da análise da realidade depende o que resulta ser a vontade de Deus. Portanto não se pode saber a vontade de Deus senão por uma análise da realidade que jamais pode prescindir das ciências sociais. E os resultados das ciências sociais incidem diretamente no que, para a ortopráxis da teologia da libertação, é a vontade de Deus.

A teologia da “ortodoxia” é diferente. Ela se fixa em afirmações dogmáticas sem procurá-las em um lugar concreto e histórico. Por isso é tão fácil para ela ficar ao lado da dominação. A dominação sempre é abstrata, reivindica validação independente das situações concretas e históricas. Contudo chama a atenção que, na disputa entre a teologia da libertação e a “ortodoxia” teológica fechada, há apenas discussões sobre o conjunto dogmático. Esta “ortodoxia” afirma o conjunto dogmático, e a teologia da libertação também o afirma. Neste sentido não há conflito religioso. Esta situação é completamente diferente dos conflitos religiosos da Idade Média europeia. Naquele tempo os conflitos giravam em torno do conteúdo do conjunto dogmático. O cisma entre a Igreja ocidental e a oriental surge por conta da fórmula trinitária, ou seja, se o Espírito Santo emana de Deus Pai e de Deus Filho, ou se somente de Deus Pai. Contra os cátaros se discute a questão da ressurreição do corpo. Também na Reforma o conflito é predominantemente deste tipo, por exemplo, sobre a interpretação da eucaristia e o significado das tradições dos santos.

Economia e teologia nos primórdios da teologia da libertação

Quando no final dos anos sessenta emerge o conflito sobre a teologia da libertação, a razão é visível: dificilmente tem a ver com discrepâncias em relação ao conjunto dogmático. A discussão correspondente, consequentemente, não é de conteúdos teológicos em sentido formal, mas acerca do significado concreto destes conteúdos. No entanto, como a teologia oficial, que se proclama ortodoxa, é exclusivamente dogmática, esta discussão confronta a posição ortodoxa, que reduz o conteúdo teológico ao pronunciamento de verdades eternas e vazias, com a posição dos teólogos da libertação, que defendem a concretização histórica desta mesma fé. Como consequência, o uso das ciências sociais na teologia da libertação chega a ter um papel chave neste conflito.

Este conflito aparece pela primeira vez ao público no período do governo da Unidade Popular no Chile, entre 1970 e 1973. A teologia da libertação havia surgido nos anos anteriores, em especial na segunda metade da década de sessenta. Não surgiu primariamente no ambiente acadêmico, mas na atividade pastoral das igrejas. Tratava-se, sobretudo, de sacerdotes e pastores que trabalhavam nos ambientes populares dos países latino-americanos. Suas primeiras publicações são através dos manuscritos mimeografados, que se distribuem em encontros ou por correio. No final dos anos sessenta aparecem os primeiros livros (Hugo Assman, Gustavo Gutiérrez, José Míguez Bonino, Juan Luis Segundo). Rapidamente estas reflexões influem nos seminários e nas faculdades de teologia, e criam uma corrente de opinião na América Latina que se expressa com mais intensidade no Chile, após a vitória eleitoral da Unidade Popular em 1970.

Desde seu começo esta teologia da libertação surge muito vinculada com os movimentos populares da década de sessenta. Estes movimentos experimentam neste tempo um grande crescimento. No Chile, eles buscam sua expressão política tanto nos partidos da Unidade Popular como no partido democrata cristão. São movimentos que se lançam para a integração econômica e social dos grupos populares. Este problema era cada vez mais palpável, sobretudo a partir de duas tendências que se perfilam durante a década de sessenta. Uma era a situação de marginalidade que se sentia em especial nos centros urbanos com suas favelas, porém também nas áreas rurais com os camponeses sem terra e os pequenos proprietários. A outra era a tendência à estagnação do emprego. Embora seguisse havendo uma expansão, muitas vezes muito forte, da produção industrial, esta se originava principalmente de aumentos de produtividade do trabalho e, portanto, não implicava em incrementos nas taxas de emprego. Portanto, a própria situação de marginalidade chegou a ter o caráter de exclusão estrutural e não de um fenômeno de simples transição.

A partir desta problemática se explica o fato de que os movimentos populares tencionaram por mudanças na própria estrutura econômica e social. Durante a década de sessenta, muitos dos movimentos populares esperavam, todavia, uma possível solução dentro de um capitalismo de reformas, como as que a democracia cristã chilena realizava. Mas, especialmente depois de 1968, os movimentos populares vão para a Unidade Popular. Ocorre a divisão da democracia cristã no Chile, onde parte dela passa a apoiar a própria Unidade Popular.

Esta mudança de orientação política dos movimentos populares correspondia a uma experiência profunda. Ficou mais visível que, efetivamente, não havia nenhuma possibilidade de desenvolvimento com integração econômica e social dentro da lógica das estruturas capitalistas dadas. Falava-se primeiro da necessidade de um desenvolvimento não capitalista; depois, de um desenvolvimento socialista. Teoricamente pensava-se esta situação através da teoria da dependência. A maioria dos teóricos da libertação compartilhava esta experiência e avaliação da ineficácia das estruturas capitalistas, com sua lógica própria, para criar uma sociedade capaz de solucionar os problemas econômicos e sociais dos grupos populares. Compartilhavam também a tendência em interpretar que um desenvolvimento integral não podia se efetuar senão com uma mudança profunda das próprias estruturas capitalistas. Formou-se então uma organização, de alcance latino-americano, que representava muito dos teólogos da libertação, com o nome de “Cristãos pelo Socialismo”, que teve seu primeiro importante encontro em Santiago do Chile, em março de 1972. Era de caráter ecumênico, tendo aglutinado teólogos da libertação católicos e protestantes.

Esta crítica do capitalismo e a busca de uma alternativa pela transformação das estruturas capitalistas levaram a nascente teologia da libertação ao conflito tanto com a teologia oficial como, precisamente no Chile, com a Igreja Católica, em particular com a sua hierarquia. Esta Igreja havia sido uma íntima aliada da democracia cristã nos anos sessenta. Ao voltar-se para posições antissocialistas e anticomunistas, a Igreja tomou o mesmo rumo.

Porém era muito difícil refutar a experiência dos teólogos da libertação e a teoria da dependência por meio do qual interpretavam esta experiência. Ademais, hoje, após trinta anos de manutenção e fortalecimento capitalista na América Latina, podemos ver que esta interpretação do capitalismo latino-americano por parte dos teólogos da libertação e das teses da teoria da dependência se confirmaram por completo, embora atualmente seja mais difícil conceber alternativas do que há trinta anos. De fato, o capitalismo latino-americano, ao levar esta lógica ao extremo, aprofundou a marginalização da população e tem se transformado em uma exclusão sem objetivo.

Por isso, embora a teologia oficial e a Igreja Católica do Chile quisessem conflitar com a teologia da libertação, não tinham argumentos. Por um lado, não havia maiores discrepâncias com relação ao conjunto dogmático da fé, e por outro, a crítica do capitalismo por parte dos teólogos, pelo menos em suas linhas gerais, não era refutável. Consequentemente não entraram em nenhuma discussão nem usaram argumentos racionais, mas se dedicaram a denunciar a nova teologia.

A denúncia contra a teologia da libertação

Uma teologia institucionalizada, que atua em nome de um conjunto dogmático com pretensão de verdade eterna, não pode se concretizar historicamente. Para enfrentar a teologia da libertação, portanto, não pode desmantelá-la mas pode declarar como irrelevante, e inclusive perversa, a maneira pela qual esta teologia se concretiza. Não pode entrar na discussão da concretização, porque neste caso teria que aceitar que a teologia é e tem que ser teologia concreta e histórica.

A denúncia permanece como saída desta ortodoxia fechada. E como os teólogos da libertação muitas vezes recorrem à teoria marxista para pensar teoricamente sua experiência vivida, denuncia-se à teologia da libertação como marxista. Em uma sociedade como a sociedade burguesa moderna, Marx é – em um sentido orwelliano – a persona non grata que todos devem atacar aos gritos para demonstrar sua fidelidade aos valores do autoproclamado “Mundo Livre”. Marx é para o mundo livre o que Trotsky é para o mundo soviético. É a pessoa em quem se supõe encarnar o mal. Por conseguinte, a denúncia do marxismo da teologia da libertação implica uma condenação irracional e ideológica desta teologia, sem nenhuma necessidade de contestar as suas inquietudes concretas. O concreto se desvanece. É desnecessário argumentar. O outro se revela como inimigo, independentemente do que pense.

Para que esta denuncia sirva a este propósito, transforma-se o pensamento de Marx em uma grande magia da qual não há escapatória. Quem se aproxima se perde. É uma grande turbulência, como o redemoinho Malströn. Ainda que se aproxime a um passo de distância, irremediavelmente o redemoinho o arrasta para tragá-lo e levá-lo para a perdição. Não é uma teoria, mas a tentação do mal. O cardeal Ratzinger resume muito bem a visão deste Lúcifer:

O pensamento de Marx constitui uma concepção totalizante do mundo no qual numerosos dados de observação e de análises descritivas são integrados em uma estrutura filosófico-ideológica, que impõe a significação da importância relativa que se lhes reconhece […] A discussão dos elementos heterogêneos que compõem esta amálgama epistemológica híbrida chega a ser impossível, de tal modo que crendo aceitar somente o que se apresenta como uma análise é inevitável aceitar ao mesmo tempo a ideologia.2

Contudo, os teólogos haviam dito unicamente que a opção pelos pobres entra em conflito com a lógica da estrutura do capital. Portanto, se levada a sério e de forma realista, tem que se superar esta lógica. Esta superação eles chamaram de socialismo. A discussão deveria girar em torno do questionamento feito pelos teólogos da libertação: se na realidade as coisas são como sustentam, ou não. Não há nenhuma palavra sobre isso. Os fatos não contam.

A razão do rechaço não é que os teólogos tenham usado teorias marxistas. De qualquer forma, a condenação seria a mesma caso não se referissem a Marx. A opção pelos pobres, que resulta em conflito com a lógica da estrutura do capital, comprovaria seu marxismo. A questão é proibida por convicção ideológica. Uma vez que a pergunta é proibida, não se precisa discutir a resposta.

Junto com a denúncia mágica do marxismo, a denúncia antiutópica aparece desde o tempo da Unidade Popular no Chile. A denúncia anti-utópica não é senão a outra face deste antimarxismo mágico. Ela outra vez substitui a discussão de situações concretas e históricas por uma denúncia. Tão pouco aparece uma discussão do utópico nem uma análise da problemática. Os teólogos da libertação exigiram mudanças na estrutura para que a sociedade pudesse enfrentar a solução do problema da pobreza. Deste modo, não estavam reivindicando a realização de utopias. Tinham uma meta muito realista, embora soubessem que o realismo desta meta excedia as possibilidades da sociedade capitalista em que se moviam.

Certamente isso implicou uma discussão acerca das dimensões utópicas das metas políticas e uma correspondente crítica dos conteúdos utópicos em relação ao realismo da mudança das estruturas. Foram os teólogos da libertação que começaram com esta crítica. A denúncia antiutópica, pelo contrário, não fez mais que diabolizá-las, evitando o diálogo.3

Isso levou a uma situação de condenação mais rígida pela Igreja católica chilena aos Cristãos pelo Socialismo realizada depois do golpe militar, quando estes já eram perseguidos pelo terrorismo de Estado do sistema totalitário de Segurança Nacional que naquele momento se criava no Chile.

A condenação formal do grupo Cristãos pelo Socialismo tem a sua própria história. Em segredo e sem ser publicada, foi decidida pela Conferência Episcopal chilena em abril de 1973. Dois dias depois do golpe militar, ou seja, em 13 de setembro de 1973, aprovou-se um documento adicional pela mesma Conferência. Estas condenações foram postas em circulação em 26 de outubro de 1973, e publicadas definitivamente em abril de 1974. Neste período, mais de sessenta sacerdotes foram expulsos do Chile, alguns torturados. Muitos membros leigos dos Cristãos pelo Socialismo foram mortos, torturados ou detidos. O conflito desembocou na repressão dos Cristãos pelo Socialismo por meio do terrorismo de Estado.4

A teologia da libertação e as ditaduras de Segurança Nacional

Não somente para os Cristãos pelo Socialismo, mas também para os teólogos da libertação em geral, o golpe militar chileno de 11 de setembro de 1973 significou uma ruptura profunda. Não se tratava de um golpe militar tradicional por meio do qual um grupo militar assume o governo, assegurando a continuidade de uma sociedade burguesa já instalada. O golpe militar chileno foi um golpe de Segurança Nacional. O governo militar assumiu a tarefa de reestruturar a sociedade burguesa chilena desde suas raízes, seguindo um esquema ideológico preconcebido. Instalava-se uma sociedade segundo princípios abstratos sem nenhuma relação com a história do Chile, porém que tampouco existia no capitalismo mundial real nesse momento: um capitalismo reformista e intervencionista. É a primeira vez na história presente em que aparece um regime nitidamente neoliberal. Impõe-se, por meio do terrorismo de Estado, um modelo abstrato deduzido de princípios de uma totalização do mercado capitalista. A isso se deve o caráter jacobino que teve este golpe de Estado.5

A política da Junta Militar chilena visava uma mudança da sociedade inteira. Não se tratava simplesmente de eliminar todos os vestígios da política da Unidade Popular, mas de transformar as raízes do capitalismo que havia existido anteriormente. Um capitalismo de reformas, de caráter intervencionista, que havia dado lugar à existência de uma ampla sociedade civil na qual as organizações populares tinham um lugar legítimo e importante. Os ideólogos da Junta Militar viram neste reformismo do capitalismo a base do surgimento da Unidade Popular. De fato, a Unidade Popular não havia feito mais que levar a cabo este mesmo reformismo para além dos limites da própria estrutura capitalista. A política da Unidade Popular havia continuado este reformismo com consequências que puseram em xeque a própria estrutura capitalista.

Portanto, a Junta Militar teve duas linhas principais de ação. Por um lado, dirigiu-se contra todas as organizações populares para destruí-las completamente, sobretudo os sindicatos, organizações de bairro, e inclusive as cooperativas. Como tinham raízes sociais e políticas, esta meta implicava a destruição de todos os partidos populares. O terrorismo de Estado teve aqui seu papel principal. Por isso o golpe militar não teve apenas a meta de estabelecer-se no governo. Isso já estava assegurado desde os primeiros dias do golpe. Havia uma política de terror que se estendeu por mais de uma década e que conseguiu, de maneira efetiva, eliminar qualquer poder popular. Por outro lado, a política da Junta foi dirigida para mudar o Estado. O Estado de reformas e de intervencionismo no mercado era a outra face da força dos movimentos populares. Foi transformado em um Estado antirreformas e anti-intervencionista a serviço de um mercado totalizado. A privatização das funções do Estado no campo econômico e social, e, por conseguinte, das empresas públicas, conformou na América Latina o primeiro caso de uma aplicação de princípios de esquemas abstratos trazidos da Escola de Chicago pelos condutores deste processo. Trata-se da política que rapidamente foi assumida em nível mundial pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) sob o nome de ajuste estrutural. Posteriormente, Milton Friedman lhe deu o nome de “capitalismo total”.6

Neste novo ambiente se inscreveram então as reflexões dos teólogos da libertação na América Latina. Ainda que nesta teologia não se tenha produzido uma ruptura, matizes importantes mudaram. Enquanto no período anterior ao golpe chileno havia prevalecido o enfoque libertador ou liberacionista, prevalecem agora enfoques de resistência. Não são por completo novos, porém ocupam agora o primeiro plano. Vão de mãos dadas com as mudanças na sociedade. Sempre houve um trabalho intenso a partir das comunidades eclesiais de base, entretanto este trabalho estava fortemente entrelaçado com o das organizações populares em todos os seus níveis. Agora as organizações populares eram as mais perseguidas, então perderam muito de seu vigor. Por conseguinte, as comunidades de base assumiram um papel muito maior. Ademais, como as igrejas mantinham certos espaços protegidos da repressão, em muitos lugares as comunidades se transformaram no único lugar de atividade popular. No lugar das organizações populares apareceram muitos grupos de defesa dos direitos humanos. Somente na América Central se deu uma situação diferente, em especial na Nicarágua e em El Salvador. Não obstante, esta tendência foi revertida na década de oitenta.

No centro da teologia da libertação aparece agora o tema da idolatria e do Deus da vida em confronto aos deuses da morte. O tema da idolatria se insere em uma larga tradição de raiz judaica. Segundo esta, o ídolo é um deus cuja vivência e veneração levam à morte. Não se trata de perguntar se em algum sentido ontológico o ídolo existe ou não, mas sim que o ídolo é visto como uma força para a morte que é venerada como Deus. O ídolo é um deus da morte que, portanto, confronta o Deus da vida. Por conseguinte, o Deus da vida é visto como um Deus cuja vivência e veneração produzem vida e não morte. Sendo a teologia da libertação fortemente uma teologia corporal, também a vida ou a morte aparecem em um sentido em que a vida corporal é a última instância de toda a vida. Se o corpo não vive senão como um corpo e alma, a alma não vive sem o corpo (Gratia suponit naturam).

Por isso, para os teólogos da libertação, o problema não é teísmo e ateísmo, mas idolatria e Deus da vida. A posição contrária não é a ateia. A fé em Deus pode ser idolátrica ou não, como pode ser também o ateísmo. Um ateísmo cuja vivência leva à morte é idolátrico, mas um ateísmo cuja vivência leva à vida não o é. A vida e a morte dão o critério, e não uma metafísica abstrata. Também no povo de Deus há ateus. Mas a afirmação da vida segue sendo vista a partir do reconhecimento mútuo entre sujeitos, que se reconhecem como seres naturais e necessitados. A vida e a morte como critério se encontram de novo como critério da opção pelo pobre. Contudo, o pobre tem agora uma nova dimensão. Não é somente pobre, mas também vítima. É vítima enquanto pobre, e enquanto perseguido pelos aparatos de repressão estatal.

A partir desta análise da idolatria e de suas vítimas, a teologia da libertação privilegia a análise dos processos de vitimização. A teologia oficial é agora afrontada como uma teologia da sacrificialidade, do Deus que quer sacrifícios. A teologia da libertação desenvolve uma forte crítica desta sacrificialidade teológica, e efetua esta crítica a partir da sacrificialidade do sistema econômico e social imposto na América Latina. Descobre-se toda uma história da sacrificialidade da própria conquista da América, e as primeiras reações em apoio aos indígenas. Gustavo Gutiérrez volta-se à discussão sobre a teologia da conquista, e recupera a figura de Bartolomeu de las Casas como um antepassado chave da teologia da libertação.7 Por outro lado, aprofunda-se a problemática da relação entre economia e teologia, especialmente no DEI.8 Enfoca-se também no tema da sacrificialidade do sistema econômico e social vigente.9 Descobre-se a sacrificialidade da própria cultura ocidental e se recupera a tradição da não-sacrificialidade na linha judaico-cristã.

O conflito ao redor da teologia da libertação

Sempre houve um conflito latente entre a teologia da libertação, por um lado, e a teologia oficial e as igrejas que as integram, por outro. Já vimos como este conflito irrompe no final do governo da Unidade Popular e durante o primeiro ano da Junta Militar chilena. Mas com o Informe Rockefeller no final dos anos sessenta, outro conflito foi aberto. É o conflito com o poder político e com o império.

Para o império, a teologia da libertação é um perigo por várias razões. Uma razão importante é ideológica, e desempenha um papel particular durante a Guerra Fria. Este enfrentamento, interpretado de forma maniqueísta, precisava de contornos precisos. O império se autointerpretava como Ocidente cristão, como um reino de deus frente a um reino do mal ateu. O império ocidental parecia lutar junto de Deus, como o arcanjo Miguel, contra um império que confronta a Deus. Embora o fundamento da legitimidade da sociedade burguesa não seja cristão, mas repouse sobre mitos seculares, para esta legitimação também é essencial a dimensão religiosa que o ancore na transcendência. Crer em Deus e lutar ao lado do capitalismo contra os seus inimigos parecia ser o mesmo. Esta identificação é mais forte nos EUA do que na Europa, embora ali também exista, e leva ao que os EUA chamam de religião cívica (civil religion), que é uma religiosidade subjacente ao próprio way of life estadunidense. É a religiosidade que engloba todas as religiões específicas. Como consequência, a tolerância religiosa frente às diversas confissões tem como condição o respeito por parte destas ao marco dado por esta religião cívica. A religião é considerada como um assunto privado, enquanto a religião cívica se insere como a religiosidade pública.

A teologia da libertação ameaça esta homogeneidade religiosa – e até cristã – do império. Quando há discernimento dos deuses, há razões para que alguns deuses se inquietem. Isso se torna cada vez mais evidente conforme as teses da teologia da libertação tinham recepção positiva em várias igrejas dos EUA e Europa, inclusive entre o público em geral. A condenação maniqueísta dos movimentos populares, de seus protestos e da exigência de mudanças estruturais não era possível de se fazer com tanta facilidade quando correntes importantes destes movimentos se inspiravam em sua fé religiosa. Daí também o fato de que o público em geral pudesse duvidar do simplismo das ideologias da Guerra Fria.

Algo parecido, mas com o sinal inverso, ocorreu com os movimentos populares da América Latina. A teologia da libertação era uma das correntes de pensamento que se permitia sair da estreiteza da ortodoxia marxista, em especial como era promovida pela literatura editada pela Academia de Ciências de Moscou. Esta ortodoxia rapidamente cansava, pois não conseguia pensar a realidade que os membros destes movimentos viviam. Era tão abstrata frente a esta realidade como o eram as ideologias do mercado. Nos anos setenta era notório o cansaço com esta ortodoxia marxista. Descobre-se então um pensamento de Marx que de nenhuma maneira podia ser esgotado por esta ortodoxia. Aparecem várias correntes novas do pensamento marxista. Em contrapartida, um aporte importante para estes movimentos populares era o surgimento de uma teologia que pensava o mundo de um ponto de vista próximo a eles, e que permitia viver a fé como participante nas lutas dos setores populares. Embora a maioria dos teólogos não fosse antimarxista, e inclusive se inspirasse no pensamento marxista para as suas análises da realidade, muitos mantiveram uma posição crítica ao marxismo, o que de modo efetivo fortaleceu estes movimentos populares.

Tudo isso era razão suficiente para que o império reagisse. O Informe Rockefeller, do final da década de sessenta, deu o sinal. O império passou então a desenvolver sua própria teologia, que é primeiro de negação, e posteriormente de recuperação da teologia da libertação. 

Nos anos setenta apareceram centros teológicos com um caráter completamente novo. O primeiro foi o Departamento de Teologia do American Enterprise Institute, dirigido por Michel Novak. Sua razão de ser era a luta contra a teologia da libertação na América Latina e de suas repercussões nos EUA. Seguiu-lhe rapidamente o Instituto de Religión y Democracia, dirigido por Peter Berger, uma entidade que tem o mesmo propósito, porém atua mais no Estado, nas organizações políticas e nas igrejas dos EUA. Os livros de Michel Novak, escritos em espanhol, foram distribuídos pelas organizações empresariais da América Latina e pelas embaixadas dos EUA no continente. Ademais, Novak fazia viagens para dar conferências e participar de mesas redondas pela América Latina, organizadas pelas embaixadas dos EUA ou por círculos empresariais locais. As organizações de empresários europeus seguiram o exemplo do American Enterprise Institute e organizaram os seus respectivos centros teológicos. Também o Pentágono formou especialistas neste campo para atuar nas organizações pan-americanas dos exércitos e nos serviços secretos. Quando um teólogo da libertação era torturado, o torturador era um destes especialistas. No final da década de oitenta o FMI desenvolve a sua própria reflexão teológica, e o seu secretário, Michel Camdessus, trabalha publicamente neste campo. Os principais jornais se fazem porta-vozes da nova teologia do império, uma teologia da libertação que agora é desenvolvida e promovida. O documento da Santa Fé de 1980, que expressou a plataforma eleitoral da primeira presidência de Ronald Reagan, detectou a frente formada pela a Igreja popular e a teologia da libertação na América Latina como uma das preocupações principais da Segurança Nacional dos EUA.

Até meados dos anos oitenta as argumentações usadas contra a teologia da libertação eram parecidas com as usadas pelo oficialismo teológico. Atacam sobretudo a análise marxista, que aparece como elemento teórico da concretização da teologia da libertação, e suas formulações utópicas de um futuro livre. No entanto, há pelo menos uma diferença muito clara e notável. O antiutopismo desta teologia do império é muito mais extremo que o antiutopismo do oficialismo teológico e das igrejas antiliberacionistas.

O oficialismo teológico reprovava os teólogos da libertação, mas por terem uma utopia falsa. Não reprovava a utopia por si. Como teologia cristã, mantinha sua própria visão do reino de Deus por vir e de suas etapas. Não podia reprovar na teologia da libertação a sua esperança em um Reino de Deus. Portanto, reprovava a sua interpretação do Reino em termos materiais, corporais e terrenos; como um conceito falso do Reino. O Reino de Deus da ortodoxia institucionalizada, ao contrário, concebe-se como um reino das almas puras, para as quais sua corporeidade é algo etéreo, inclusive efêmero. De fato, o Reino de Deus imaginado pelos teólogos da libertação é a Nova Terra, é “esta terra sem morte”, é um reino de satisfação de necessidades corporais. A ortodoxia vê isto como algo “materialista”, ou seja, como uma esperança falsa e que se contrapõe a sua visão da esperança “verdadeira”. Porém não nega a visão de um Reino de Deus por vir.10

A teologia do império dos anos setenta e da primeira metade dos anos oitenta é diferente. É nitidamente antiutópica. Opõe um mundo sem esperança à visão utópica da esperança. Embora siga utopizando o mercado, sua mão invisível (o mercado como o lugar da “providência”) e sua tendência ao equilíbrio, não estabelece relações entre a utopia do mercado e o Reino de Deus. Por conseguinte, a solidariedade aparece como uma perversão humana e um atavismo.11

Trata-se de uma teologia que corresponde ao maniqueísmo da Guerra Fria. O império se interpreta em uma luta entre deus e o demônio, e vê a utopia como tal baseada no Reino do Mal representada pelo demônio, enquanto vê a si mesmo como um reino do realismo que não necessita de utopias. O confronto Deus–Demônio (Reino do Mal) corresponde, portanto, ao confronto realismo–utopia. Este maniqueísmo extremo foi interpretado por Karl Popper no sentido de que quem quiser o céu, produz o inferno.

Contudo, esta visão da utopia produzia problemas dentro da coalizão conservadora que se formou nos anos oitenta. Já vimos que, nitidamente, não era aceitável para a própria “ortodoxia” teológica. Tampouco servia para aglutinar a coalizão política com o fundamentalismo cristão dos EUA, um dos pilares do poder do governo Reagan. Este fundamentalismo é altamente utópico e messiânico, com uma visão claramente apocalíptica da história.12 Por sua própria existência como aliado do governo Reagan, desmentia diariamente a ideologia da Guerra Fria que se baseava na teologia do Império.

Na mesma época que o desmoronamento visível dos países socialistas, se produziu, ademais, uma crescente utopização do império. A política de reajuste estrutural, com seus efeitos desastrosos sobre os países do Terceiro Mundo, necessitava de promessas de um futuro melhor para poder se legitimar. Os infernos produzidos na terra exigiam a promessa de estar com os dias contados. O próprio neoliberalismo se transformou em religião, com suas conversões e com o evangelho do mercado.

A tentativa de recuperação da teologia da libertação pela teologia do império

A partir de tudo isso se produziu uma transformação da teologia do império. Da negação da teologia da libertação, aquela teologia passou para sua recuperação. Em meados da década de oitenta esta recuperação já está em plena realização, embora já pudesse ser notada na América Latina desde o golpe militar chileno.13 Quando em 1985, David Stockman, que vinha de um passado fundamentalista, renuncia como chefe de orçamento do governo Reagan, ele publica um livro com o título El triunfo de la política. Nele reprova Reagan por ter traído a pureza do modelo neoliberal em favor do populismo, e desenvolve toda uma teologia de posição neoliberal que rapidamente faz escola. Este livro já não denuncia as utopias, mas apresenta o neoliberalismo como a única maneira eficiente e realista de realizá-las. Ataca as “utopias” do socialismo, para recuperá-las em favor do pretenso realismo neoliberal. Segundo Stockman, a ameaça não é a utopia, mas a falsa utopia, à qual contrapõe sua utopia “realista” do neoliberalismo.14

O próprio Camdessus, Secretário Geral do FMI, fez coro a esta teologia do império transformada. Ele a constitui de modo direto a partir de algumas teses-chaves da teologia da libertação. Em uma conferência de 27 de março de 1992 ele falou ao congresso nacional de empresários cristãos da França em Lille.15 Nesta conferência, o secretário resume suas teses teológicas centrais. Vou citá-las por extenso:

Certamente o Reino é um lugar: esse novo céu e essa nova terra onde somos chamados a entrar um dia; promessa sublime, porém o Reino é de alguma maneira geografia, o Reinado é História, uma história da qual somos atores, que está em marcha e que nos é próxima desde que Jesus veio à história humana. O Reinado acontece quando Deus é Rei e nós o reconhecemos, e nós fazemos com que o Reinado se estenda como uma mancha de óleo que impregna, renova e unifica as realidades humanas. “Que teu Reinado venha”.

Ele em seguida contrapõe o poder deste mundo e o reino de Deus:

Um se funda sobre o poder, o outro sobre o serviço; um, apoiado sobre a força, orienta-se à posse e ao enriquecimento, o outro, a compartilhar; um exalta príncipes e seus barões, o outro, ao excluído e ao débil; um traz fronteiras, o outro vínculos; um se apoia sobre o espetacular e o midiático, o outro prefere a discreta germinação do grão de mostarda. São opostos! E no coração destas diferenças conclui: o Rei se identifica com o Pobre […]. Neste Reino, quem julga, quem é Rei? No Evangelho a resposta nos é apresentada de maneira solene com o anúncio e a perspectiva do Juízo Final: hoje meu juiz e meu rei é meu Irmão que tem fome, que tem sede, que é estrangeiro, que está desnudo, enfermo ou prisioneiro.

Camdessus contrapõe, por um lado, o poder, a posse e o enriquecimento, o príncipe e os barões, as fronteiras, o espetacular e o midiático, e por outro lado o serviço, a partilha, o excluído e o débil, os vínculos e a discreta germinação do grão de mostarda. Contrapõe orgulho a humildade. E descobre que o FMI, o ajuste estrutural e todo o conceito neoliberal da sociedade encarnam justamente esta humildade frente ao orgulho daqueles que exercem resistência. Chega à seguinte conclusão:

Nosso mandato? Ressoou na sinagoga de Nazaré, e do Espírito nos é dado a receber o que os compatriotas de Jesus se negavam a aceitar, precisamente a realização da promessa feita a Isaías (61.1-3) a partir da nossa história presente! É um texto de Isaías que Jesus desenvolveu e disse (Lucas 4.16-23): “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e proclamar o ano aceitável do Senhor.” E Jesus não comentou mais que uma frase: “Hoje se cumpriu a Escritura que vocês acabam de ouvir.” Esse hoje é nosso hoje, e nós somos, nós que estamos encarregados da economia – os administradores de uma parte em qualquer caso – desta graça de Deus: o alívio dos sofrimentos dos nossos irmãos e os procuradores da expansão de sua liberdade. Somos quem recebeu esta Palavra. Ela pode nos mudar por inteiro. Sabemos que Deus está conosco na tarefa de fazer crescer a fraternidade.

O texto do secretário geral do FMI poderia ser escrito igualmente por um teólogo da libertação. Formula os que os teólogos da libertação consideram o centro de sua interpretação da mensagem evangélica, em especial a promessa do Reino de Deus e a opção pelos pobres. No entanto, o texto citado é apenas uma parte da conferência. Uma parte anterior e uma parte posterior dão ao texto teológico um sentido exatamente contrário do que um texto análogo teria em uma análise da teologia da libertação. Dirige-se, portanto, contra os “populismos”. Esta palavra, na linguagem do Fundo, resume todas as atitudes políticas possíveis, enquanto não assumem as posições estritas do ajuste estrutural do FMI. Dirige-se com virulência contra “todas as formas da demagogia populista que estão em marcha e que sabemos onde levam: à hiperinflação e através dela – porque o mercado não tem escutado as suas promessas – ao colapso econômico, ao aumento da miséria e ao retorno de regimes ‘fortes’, ou seja, ao fim das liberdades”. Transforma desta maneira a opção pelos pobres em opção pelo FMI. Quem quer mais ou algo diferente do que concede ou impõe a política estrutural do FMI, produz “o colapso econômico, o aumento da miséria e o retorno de regimes “fortes”, isto é, o “fim das liberdades”.16 Isto prejudicaria os pobres. Consequentemente, quem está com o pobre é forçado a estar com o Fundo. Não há alternativas.

Como fala a um público majoritariamente católico, também é dirigido contra a doutrina social católica tradicional: 

Sem dúvida, o mercado é o modo de organização econômica mais eficaz para aumentar a riqueza individual e coletiva; não devemos ter diante dele essa atitude de ligação vergonhosa de algumas gerações de nossos irmãos católicos sociais: esse “sim, porém”. O assunto está resolvido e o Santo Padre deixou o ponto bem claro em Centesimus annus. Pela eficácia que assegura, o mercado pode permitir uma solidariedade maior. Deste ponto de vista, mercado e solidariedade não se opõem, mas podem se unir. Ademais, a economia empresarial, vocês sabem bem, é uma economia de responsabilidade onde o ser humano pode desenvolver toda a sua dimensão.

Fora do mercado não há nenhuma atividade possível, inclusive a solidariedade se exerce por meio deste e nos limites da sua lógica. Portanto, apresentará o FMI como o grande organismo mundial cuja responsabilidade é o exercício da solidariedade. Para isso ele apagou cem anos de doutrina social da Igreja católica sem provocar sequer uma repercussão.

Contudo, Camdessus se apresenta como um realista. Fala da relação entre mercado e reino de Deus, porém trata de distingui-los. Tem que se saber “que o mercado (…) não é o Reino”. Ele vê claramente que o mercado contém uma lógica destrutiva e autodestrutiva:

Então, se o mercado é deixado totalmente a seus mecanismos existe um grande perigo – não é necessário ir até o século XIX para vê-lo – de que os mais débeis sejam esmagados. Em sua lógica pura, a fixação de preços pode ser a sentença de morte. “Trinta denários, trato feito”. Este não é um episódio singular da história de um profeta da Judeia, é o elemento cotidiano permanente da história humana. A partir desta indiferença do mercado com relação à pessoa, vocês podem encontrar de maneira rápida a origem profunda de muitos males das sociedades avançadas: contaminação, acidentes de trabalho, destruição das famílias, exclusão e desemprego, corrupção, desigualdades, etc. Por isso sabemos há muito tempo que o mercado deve ser vigiado, regulado para ser livre, porém também para ser justo. Por isso não se pode aceitar a substituição do fundamentalismo marxista por um fundamentalismo de mercado. O mercado não pode ser abandonado a sua lógica, porque a economia não se reduz à técnica, mas tem como referencial o ser humano.

Diante da destrutividade do mercado, ele busca agora ativar a esperança no reino de Deus: “Mercado-Reino, sabemos bem que devemos efetuar um casamento entre eles. De qualquer forma, em nossas vidas”. Sob o título “A esperança do reino”, diz: “Sim, esta é a realidade do mercado tão carregada de forças de morte e de vida. Esta realidade sobre a qual cada um de nós, de uma maneira ou outra, tem uma função, uma responsabilidade”. 

Não obstante, esta responsabilidade de que fala não é senão a responsabilidade pelo funcionamento do mercado. A lógica do mercado pode destruir o próprio mercado. Camdessus está ciente deste problema. O capitalismo da década de 80 foi um capitalismo autodestrutivo. Destrói não somente o ser humano e a natureza, destrói igualmente sua própria possibilidade de funcionamento. Hoje o lugar principal da corrupção já não é o Estado, mas a própria empresa capitalista e suas relações com outras empresas capitalistas. Camdessus necessita de uma ética de mercado, porque esta ética é subvertida pela mesma lógica do mercado. Esta ética faz referência ao Reino de Deus e ao casamento entre o mercado e o reino:

Há na vida do mercado práticas as quais não somente nosso pertencimento ao Reino, mas também nossa correta cidadania neste mundo, obriga-nos a dizer não. E todos reconhecemos com facilidade que falta valor e muito mais. Conheceis melhor que eu esta face sombria da vida econômica […]: “Quem é que, ao nosso redor, concretamente, rebaixa, desgasta, destrói: impiedades, injustiças, exclusões, manipulações de clientes e empregados […] idólatra do dinheiro, existência insana, etc.” Vou mais além. A vida econômica não é apenas isso e existe um vasto domínio onde as duas superfícies, sim, de uma certa maneira, se encontram. Permita que eu me detenha nisto. É todo o âmbito onde o portador de valores do Reino não somente não impõe freios ao dinamismo do mercado, mas que lhe dá “mais” do que este carece para servir melhor ao ser humano integral. É, em outros termos, todo o domínio onde a racionalidade econômica e a construção do Reino convergem. E é vasto.

E o que acontece no caso de não convergirem? Aí, segundo Camdessus, não há nada o que fazer. O realismo aparente desemboca no mesmo fundamentalismo que pretensamente criticou. Se o mercado não é o reino, para Camdessus segue sendo a única presença possível deste. O mercado, com sua lógica, transforma-se no limite escatológico de toda a história humana. Vigiar o mercado, para Camdessus, não significa senão fazê-lo viável. Quer intervir no mercado para que este siga funcionando. Não obstante, o critério da intervenção não é outro do que assegurar o funcionamento do mercado segundo sua própria lógica, esta que segue concebendo como o passo de Deus pela história. O mercado não é perfeito, porém qualquer perfeição que não seja produto deste mercado já não pertence à práxis humana.

De acordo com Camdessus há um reino definitivo mais além do mercado. Contudo é um reino além da história, o qual não se intromete nos assuntos do mercado. É um reino escatológico. Portanto, chega à seguinte conclusão:

O cidadão do Reino – chamemos-lhe assim – está na vanguarda do esforço para que retrocedam todas as formas do medo, as desconfianças, os egoísmos, “essa idolatria” como disse São Paulo (Efésios 5.5) e para que finalmente se alargue o campo da partilha, onde o Reino impregna as realidades humanas, e onde o ser humano encontra um pouco mais de espaço, de gratuidade e de alegria. Isto, sabendo muito bem que “sempre haverá pobres entre nós”. O que quer dizer entre outras coisas – e coube a Jesus dizê-lo – que o Reino não se realizará nesta terra, pelo menos não até o dia em que “ele fará todas as coisas novas”.

Esta tarefa de impregnação das realidades humanas não a podemos realizar sem que nossos corações e nossas inteligências se expandam e se renovem, “cheios da graça do Alto”. Para quem exerce nosso tipo de trabalho, nesta urgência de serviço à humanidade, não há outra solução – estou seguro e ao mesmo tempo distante – senão a santidade ou, se quereis, “vestir” o Homem Novo: esse homem formado da terra, porém que – voltando a São Paulo – “visto que Cristo veio do Céu, como ele pertence ao Céu”. Formado da terra, porém pertencendo ao céu: a chave está aqui, e na oração para receber este dom.

É a declaração do império total sem nenhum escape, nem na terra, nem nos céus. A política do FMI tem sido transformada na vontade de Deus nesta terra. Não uma vontade expressada por algum Sinai, mas pela própria realidade. A realidade é tal que a ação humana, ao sair dos marcos da política de ajuste estrutural, necessariamente trará resultados piores que a situação que se quer mudar. Não há alternativa, porque a intenção de buscá-la leva de modo infalível a piorar a situação. Por isso, optar pelo pobre é optar pelo realismo. E o realismo impõe que não se preocupe com o pobre. A ação do mercado não permite questionamento. O capitalismo se transformou em “capitalismo total”, como chama Friedman. A opção preferencial pelo pobre e a opção preferencial pelo FMI se identificam.17 Trata-se de uma posição que agora é muito frequente e que aparece em inúmeras publicações que se fazem passar como teologia da libertação.18

Sem dúvida para as igrejas surge uma grande tentação. Na visão aberta por Camdessus, pode-se optar pelo pobre sem entrar em nenhum conflito com o poder. A grande harmonia parece ter chegado. A mão invisível do mercado a trouxe. E a teologia da libertação parece ser agora parte da própria “ortodoxia”. O Homem Novo, voltou só que agora é um funcionário do FMI.19

O império aparece como império total e fechado. Nada fica de fora. Declara que não há alternativas, e tem o poder para castigar com tanta dureza qualquer tentativa de busca destas que, de fato, parece melhor não tentar. Quando o castigo é maior que o que se pode lograr buscando alternativas, é preferível não buscá-las.

Em tal situação, o poder dita o que é a realidade. Entre o poder e a realidade se estabelece um circuito, dentro do qual a realidade confirma tautologicamente as teses do poder.20

Esta condição do império total e fechado é o que agora vários teólogos da libertação percebem na tradição judaico-cristã como a situação apocalíptica. Em tal situação não há saídas visíveis e não podem haver projetos concretos de mudança. Volta-se a ler o Apocalipse de São João e a discuti-lo. Neste sentido tradicional, o Apocalipse é revelação. O Apocalipse revela que frente ao império total e fechado existe alternativa, embora não se saiba qual. O poder total do império revela sua debilidade, mas sua queda não é vista como produto de uma ação política intencional. O nome deste império é Babilônia.

Esta leitura do Apocalipse leva à análise dos textos apocalípticos conhecidos, mas, igualmente, à análise de seu contexto econômico, social e político. Redescobre-se o fato de que estes textos do Apocalipse surgiram em situações históricas parecidas com a nossa. O crente enfrenta um império que não lhe deixa saída, embora insista que alguma saída deve haver.

‘Apocalipse’ aqui não significa catástrofe. O título do filme “Apocalypse Now” não dá de nenhuma maneira o sentido do que se trata. Como revelação, o Apocalipse revela que o monstro é um gigante com pés de barro cuja queda deixará aberto o futuro para alternativas por realizar.21

Tampouco esta leitura do Apocalipse, como agora aparece na teologia da libertação, é diretamente comparável com a leitura do Apocalipse pelo fundamentalismo cristão dos EUA. Nesta o Apocalipse é outra vez apenas a catástrofe que vem pela vontade de Deus, no sentido de uma lei inexorável da história. O mundo está condenado a perecer, e sua salvação é realizada por um deus-juiz ao consumar a própria história. Entretanto, a lei da história é a catástrofe da história humana. Trata-se de um fundamentalismo com a pretensão de escrever hoje a história de amanhã, como os presidentes Reagan e Bush se inscreveram de forma pública na metafísica da história.22 Porém, de fato, também a recuperação que Camdessus tenta fazer da tecnologia da libertação é perfeitamente compatível com tal visão de mundo.

A leitura atual do Apocalipse por parte de alguns teólogos da libertação não segue nenhum destes sentidos. O império total e fechado de hoje, como o eram o império romano, o helênico ou o babilônico, é uma Babilônia. E como tal é um gigante com pés de barro. Cai, embora a razão de sua queda não possa ser um ato humano voluntarista. É demasiadamente forte para isso. Cai por efeitos não-intencionais, resultado de sua própria onipotência. É a lei metafísica da história que o faz cair. Cai, porque “uma pedra foi cortada sem auxílio de mãos humanas, atingiu a estátua nos pés de ferro e de barro e os despedaçou”.23

Entretanto, a situação apocalíptica não provoca unicamente o gênero literário que chamamos de apocalíptica. Aparece outra, que é gêmea da primeira. Trata-se da leitura sapiencial, que tem sido sempre o outro lado da leitura apocalíptica. Um dos grandes testemunhos desta literatura que é retomado pela teologia da libertação é o livro da Bíblia chamado “Eclesiastes”, que foi escrito no século 2 a.C. Ele apresenta um sentido mais trágico da vida diante de um império inexpugnável e desastroso. Prevalece o lamento sobre a perda do sentido da vida, combinado a uma ressonância de esperança destroçada. Trata-se de uma percepção da vida que tem muito em comum com certas correntes da pós-modernidade no presente.

Com a volta da leitura do Apocalipse por alguns teólogos, aparece também esta problemática hoje na teologia da libertação.24

O desafio para a teologia da libertação: a irracionalidade do racionalizado

Como vimos precisamente na teologia do FMI, da negação da teologia da libertação passou-se a construir uma antiteologia da libertação. Esta antiteologia é de modo visível uma inversão da teologia da libertação, a partir de sua negação.

Novamente destaco o fato de que estas duas teologias contrárias não podem ser distinguidas no plano de uma discussão nitidamente teológica. Neste plano, a teologia da libertação não se distingue de forma clara da antiteologia apresentada pelo FMI na atualidade. Aparentemente, desemboca-se em uma situação na qual o conflito deixa de ser teológico. Parece ser um conflito sobre a aplicação de uma teologia compartilhada por ambas as partes. A teologia do império – a teologia do FMI é a teologia do império – assumiu as partes chave da teologia da libertação: a opção preferencial pelos pobres e a esperança do reino de Deus encarnada na ortopráxis. Ao menos é isso que aparenta ser.

Em um nível diferente retorna agora o problema que nós vimos no começo deste artigo. Ali analisamos o fato de que nos anos 1960–1970 a teologia da libertação surge de tal maneira que o conflito com a teologia institucionalizada não aparece como um conflito religioso, dado que nenhum dogma religioso era questionado. O conflito apareceu como um conflito sobre a concretização de uma fé comum. A opção preferencial pelos pobres e a encarnação do reino de Deus no mundo econômico-político eram os instrumentos desta concretização. Enquanto teologia concretizada, a teologia da libertação era vista de modo conflitivo.

Hoje, em contrapartida, a mesma teologia do império assume estas posições. Elas já não servem para concretizar uma fé. A teologia do império está de acordo com a opção preferencial pelos pobres e com a encarnação econômico-social do reino de Deus. E apresenta a si mesma como único caminho realista para cumprir com estas exigências.

Certamente a teologia do império tergiversa com relação à opção pelos pobres da teologia da libertação. Do ponto de vista da teologia da libertação esta opção é consequência de um reconhecimento mútuo entre sujeitos humanos. O pobre é o signo da perda deste reconhecimento que comprova que toda relação social humana está distorcida. A teologia do império, ao contrário, não pode ater-se ao pobre senão como um objeto para outros, que não são pobres.

Entretanto, a opção pelos pobres já não pode identificar nenhuma concretude da teologia da libertação. A pergunta agora é sobre o realismo de sua concretização. Nenhuma fé pré concebida pode dar a resposta. Não se pode decidir sobre a verdade de uma das posições sem recorrer às ciências empíricas, em particular as ciências econômicas. São elas que decidem. Como resultado, transformam-se em portadoras do critério de verdade acerca das teologias. Efetivamente, com a economia neoliberal na mão, a opção pelos pobres se transforma em opção para o FMI. Do ponto de vista de uma economia política crítica, em contrapartida, transforma-se na exigência de uma sociedade alternativa em que todos caibam. A teologia como teologia não pode decidir. Os resultados da ciência decidem sobre o conteúdo concreto da teologia.

Por esta razão, as tentativas de recuperação da teologia da libertação obrigam esta a desenvolver novas problemáticas. Para poder seguir sustentando a opção pelos pobres em termos que respeitem o pobre como sujeito – que é a especificidade da teologia da libertação – esta opção tem que ser vinculada de uma maneira muito mais determinada com o reconhecimento mútuo entre sujeitos corporais e necessitados.

Isso leva à necessidade de desenvolver a teologia da libertação especialmente em duas linhas. A primeira se refere à crítica da economia política neoliberal e sua respectiva utopização da lei do mercado. A segunda se refere à tradição cristã de uma teologia crítica da lei. Ambas constituem o espaço de uma discussão que hoje se resume muitas vezes como “economia e teologia”. Esta constata a relevância da análise econômica para o discernimento do conteúdo da fé, e supera um ponto de vista que tem considerado o econômico como um espaço da aplicação da fé.

Na primeira linha, a crítica da economia política neoliberal, o argumento poderia ser resumido com a frase: a racionalização para a competitividade e a eficiência (rentabilidade) revela a profunda irracionalidade do racionalizado. A eficiência não é eficiente. Ao reduzir a racionalidade à rentabilidade, o sistema econômico atual se transforma em irracional. Desata processos destrutivos que não pode controlar a partir dos parâmetros de racionalidade que escolheu. A exclusão de um número crescente de pessoas do sistema econômico, a destruição das bases naturais da vida, a distorção de todas as relações sociais e, por conseguinte, das próprias relações mercantis, são o resultado não intencional desta redução da racionalidade à rentabilidade. As leis do mercado do capitalismo total destroem a própria sociedade e seu entorno natural. Ao absolutizar estas leis por meio do mito do automatismo do mercado, estas tendências destrutivas são incontroláveis e se convertem em uma ameaça para a própria sobrevivência humana.

Esta crítica desemboca em uma análise da racionalidade que inclui precisamente a irracionalidade do racionalizado. Trata-se do desenvolvimento de um conceito de circuito natural e social da vida humana, que tem que englobar e condicionar a racionalidade meio-fim que subjaz o cálculo da rentabilidade. Isso exclui a totalização neoliberal da lei do mercado para integrar as relações mercantis na vida social. Em contrapartida, a política neoliberal “trata o mercado como elemento constituinte de todas as relações sociais, desembocando assim em sua política do capitalismo total”.25

Com análises deste tipo, a teologia da libertação retoma a necessidade de se encontrar com o pensamento de Marx.26 Isso acontece, embora não propositalmente. O pensamento de Marx é o grande corpo teórico existente que surge precisamente pela crítica da irracionalidade do racionalizado. Ao enfrentar hoje de forma teórica este problema, qualquer conceitualização desenvolverá pensamentos aproximados àqueles que Marx desenvolveu primeiro. Por isso, ainda que não se parta de Marx, sem o querer chega-se a suas conceitualizações ou se aproxima delas. E nesta relação com o pensamento de Marx aparece uma crítica profunda que é base para as reflexões da teologia da libertação. Trata-se da esperança marxista: o poder solucionar os problemas do capitalismo total por uma superação total do capitalismo. O marxismo desembocou em uma totalização análoga ao que hoje vivemos com a totalização neoliberal do capitalismo. A teologia da libertação tem que superar as totalizações, se quer contribuir de modo efetivo à constituição de uma fé nova. Não obstante, criticadas estas totalizações, as conceitualizações da crítica da irracionalidade do racionalizado são irrenunciáveis para poder constituir um conceito adequado da racionalidade da ação humana. A teoria da ação racional, teorizada por Max Weber, não vai mais além deste reducionismo da ação racional a suas expressões de racionalidade meio-fim, ou seja, o mensurável em termos de rentabilidade.

Isso nos leva à segunda linha de desenvolvimento necessário para a teologia da libertação no mundo de hoje. A crítica da irracionalidade do racionalizado tem que ser expressada nos próprios termos teológicos. Isso ocorre justamente pela recuperação de uma longa tradição teológica da crítica da lei, que começa já nas Escrituras e tem a sua primeira elaboração teológica em Paulo de Tarso, sobretudo na Carta aos Romanos. De fato, é a primeira elaboração da crítica da irracionalidade do racionalizado que se dá no pensamento cristão.27

Os teólogos da libertação que retomam esta teologia de Paulo destacam dois elementos chaves de sua crítica da lei. Por um lado, Paulo faz ver que a lei, enquanto lei do cumprimento, leva à morte aqueles que a cumprem ou são obrigados a cumpri-la para além de qualquer outra consideração. A lei, que serve à vida, leva neste caso à morte. Paulo fala da “lei do cumprimento” que leva à morte. A lei neste caso é qualquer lei, tanto a lei judaica do tipo que Paulo conheceu, de tradição farisaica, como a lei romana. Portanto, o Estado de direito, que aparece pela primeira vez na história como o império romano, não é a máxima expressão da humanidade, mas uma ameaça. A lei não salva mediante o seu cumprimento. Por outro lado, Paulo não considera o pecado no sentido de uma infração da lei. O pecado, como é tratado na visão de Paulo, se comete cumprindo a lei e para que seja cumprida. As infrações da lei são secundárias. Como consequência, o pecado é levar à morte cumprindo a lei. Logo, o pecado se comete com a boa consciência de se estar cumprindo a lei. Todavia, há rastros deste pensamento na chamada Idade Média europeia: Suma lex, máxima iniustitia. Ou o outro, contrário a este, de sentido irônico: Fíat iniustitia, pereat mundus (“que se cumpra a lei, embora pereça o mundo”).

Isso levou à análise da sacrificialidade como o resultado da lei. A lei, ao ser tratada como totalizante, exige sacrifícios humanos. Disso se tem muita consciência nos primórdios do cristianismo. Todos os evangelhos, por exemplo, insistem que matam Jesus cumprindo a lei; no cumprimento da lei. Portanto, não há culpas pessoais desta morte. É a relação com a lei que a origina. É bem compreensível que mais tarde a teologia conservadora tenha preferido culpar os judeus. Tinha que fazê-lo para escapar das consequências da teologia da crítica da lei, que era completamente incompatível com as aspirações do cristianismo ao poder imperial.28

Este fato explica porque precisamente a teologia da crítica da lei de Paulo e sua afirmação, negação, inversão e falsificação, tenham sido o fio condutor da história do cristianismo, e portanto do Ocidente. Seu escrito chave é a Carta aos Romanos. Este não é de nenhuma maneira um livro “teológico”, no sentido da divisão da universidade moderna nas faculdades. Ele analisa qual é a chave do império romano de seu tempo, mas não o faz de um ponto de vista teológico. A carta é tão decisiva para a filosofia e o pensamento político como o é para o pensamento teológico. Para os filósofos, porém, é um tabu. Nas histórias da filosofia nem aparece, embora seja o pensamento ao redor do qual giram mais de 1500 anos do pensamento ocidental, a filosofia incluída. A Carta aos Romanos foi decisiva na Reforma, sobretudo para Martinho Lutero. Por isso se encontra na raiz da ética protestante e de sua transformação no espírito do capitalismo. Voltou a ser decisiva no surgimento da teologia moderna, com o livro de Karl Barth sobre a Carta aos Romanos. Hoje volta a ser decisiva para a teologia da libertação. É um dos livros mais subversivos da história. Um dos poucos que se deu conta disso foi Nietzsche. Porém Nietzsche o fez somente para escolher Paulo como seu inimigo predileto.

A crítica paulina da lei é uma crítica das leis “justas” que Paulo vê presentes especialmente nas leis de Deus dadas no Sinai. Não obstante, diante da sua crítica da lei, tampouco estes mandamentos são leis justas por si. Qualquer lei, segundo Paulo, mata, se é tratada como lei do cumprimento. De acordo com ele, isso vale inclusive para a “lei de Deus”. A injustiça está na forma geral da lei. Por conseguinte, a justiça de Paulo não reside na lei, mas na relação com ela. O sujeito é soberano diante da lei, para relativizá-la em todos os casos em que seu cumprimento mata.

Existe uma diferença contundente entre esta crítica da lei de Paulo e a tradição liberal. A tradição liberal busca leis justas. Crê as ter encontrado ao sustentar que a lei é justa quando aqueles que têm o dever de obedecê-las são ao mesmo tempo aqueles que, como cidadãos, são os legisladores. Esta lei é a sua respectiva lei de Deus: vox populi, vox dei. Como consequência, o resultado liberal é que a lei democrática é lei justa. Logo, um Estado de direito baseado nesta lei é um Estado justo.

Para Paulo não há um Estado de direito no sentido da nossa ideologia atual, segundo o qual o Estado de direito tem leis justas, com o consequente dever do cidadão de cumpri-las sem a possibilidade de efetuar um discernimento ou exercer resistência. Max Weber chama este procedimento de “legitimidade por legalidade”. É incompatível com a posição de Paulo, que é do discernimento. Do ponto de vista paulino, o Estado de direito liberal é um Estado injusto. O é porque é um Estado total. A posição de Paulo implica o direito à resistência, e a posição de Weber nega este direito.

Hoje está se preparando de modo visível um holocausto do Terceiro Mundo. Se chegar a se consumar, será consumado por Estados de direito e dentro dos estritos limites dos Estados de direito.29 Isso revela precisamente o fato de que o Estado de direito não garante de nenhuma forma justiça alguma. A resistência humaniza o Estado de direito, e onde a resistência é reprimida com êxito ou não tem lugar, o Estado de direito se transforma em um Moloc. Por isso, Estado de direito e totalitarismo, como democracia e totalitarismo, são compatíveis.30 Também a cobrança da dívida externa do Terceiro Mundo é um crime que se comete “cumprindo a lei”. O mesmo Estado de direito o comete. Quando Paulo fala do pecado, refere-se a estes crimes que se cometem “cumprindo a lei”. As transgressões das leis quase não lhes interessam.31 São crimes que se cometem com boa consciência, crendo servir a Deus, a humanidade e aos pobres.

Neste sentido, a teologia da crítica da lei já desenvolve o problema da irracionalidade do racionalizado. Por ela os teólogos da libertação podem retomar esta teologia com relação à lei do mercado. Por um lado, ao ser tratada como lei que salva por seu cumprimento, a lei do mercado leva à morte, inclusive da humanidade.

Por outro lado, há um pecado que se comete cumprindo a lei do mercado, e que se comete com a boa consciência de estar cumprindo a máxima lei da humanidade. Muda, portanto, a liberdade cristã no sentido que Paulo pronunciou, como uma liberdade que é soberana diante da lei. Os sujeitos livres são livres na medida em que são capazes de relativizar a lei em função das necessidades de sua própria vida. A liberdade não está na lei, mas na relação dos sujeitos com a lei. Considerando a lei do mercado, a liberdade consiste em poder submetê-la e inclusive cometer infrações contra ela, se as necessidades dos sujeitos o exigem. O reconhecimento mútuo entre sujeitos corporais e necessitados implica de forma insubstituível o reconhecimento da relativização de qualquer lei em função deste reconhecimento. Ao reconhecerem-se mutuamente como sujeitos, reconhecem-se como soberanos diante da lei. A lei vale somente na medida em que não impede este reconhecimento mútuo.

Pode-se agora retomar a opção pelos pobres em um sentido que a teologia do império jamais aceitará. O reconhecimento mútuo entre sujeitos corporais e necessitados implica a opção pelos pobres e, por isso, implica simultaneamente a soberania do sujeito humano diante da lei. Sem esta soberania não pode haver nem reconhecimento mútuo entre sujeitos nem opção pelos pobres. A partir desta reconceitualização aparece também uma reconceitualização do reino de Deus.32

Por isso, a teologia da libertação nega não somente a absolutização da lei do mercado no “capitalismo total”, mas qualquer lei metafísica da história. A absolutização da lei – isto é, sua transformação em lei metafísica da história – é totalização, que no final desemboca em totalitarismo. Seu lema é sempre aquele do “final da história” e da negação de todas as alternativas.33

Com este resultado, a teologia da libertação desemboca em uma crítica da modernidade e não apenas do capitalismo. Chega à constatação de uma crise da própria sociedade ocidental. Entretanto, ela não é pós-moderna. Os pós-modernos se abstêm de analisar a lei do mercado como lei metafísica da história. Atacam por todos os lados as leis metafísicas da história, em particular no socialismo histórico, onde de fato houve. Porém a lei do mercado como único caso atual de imposição de uma lei metafísica da história, nem sequer a mencionam. Encobrem a lei metafísica da história hoje, em nome da crítica de outras leis da história no passado.

Notas:

1. A filosofia de Levinas é uma das fontes deste pensamento. Cf. LEVINAS, Emmanuel. Totalidad e infinito. Ensayo sobre la exterioridad. Salamanca, Ediciones Sígueme, 1977; LEVINAS, Emmanuel. De otro modo de ser, o más allá de la esencia. Salamanca, Ediciones Sígueme, 1987. Em um livro posterior, Levinas resume acertadamente esta posição, falando do amor ao próximo: “O que significa ‘como a ti mesmo?’ Buber e Rosenzweig tiveram aqui os maiores problemas com a tradução. Disseram: ‘como a ti mesmo’ não significa que se ama mais a si mesmo? Em vez da tradução mencionada por vocês, eles traduziram: ‘ama a teu próximo, ele é como você’. Porém se alguém está de acordo em separar a última palavra do verso hebraico ‘kamokha’ do princípio do verso, pode-se ler também de outra maneira: ‘Ama a teu próximo, esta obra é como tu mesmo’; ‘ama a teu próximo; tu mesmo é ele’; este amor ao próximo é o que tu mesmo és”. LEVINAS, Emmanuel. De Dieu que vient a l’ idée. Paris, 1986, pág. 144.

2. Libertatis nuntius, VII, 6. Cf. HINKELAMMERT, Franz. Befreiung, soziale Sünde und subjective Verantwotlichkeit. In VENETZ, Hermann-Josef; VORGRIMLER, Herbert (Org.). Das Lehramt der Kirche und der Schrei der Armen. Freiburg-Münster, Edition Exodus y Liberación, 1985.p. 60-76.

3. Comblin resume assim a crítica da utopia por parte dos teólogos da libertação: “O porvir foi disposto por Deus e este permanece fora do alcance do homem: é o homem renovado, o homem da nova aliança (…). O porvir se vive vivendo o presente. Não se pode sacrificar o presente ao porvir; ao contrário, o porvir deve ser vivido e realizado no presente, em forma de imagem ou semelhança. Não sacrificar o homem presente em vista de uma fraternidade e paz futura, mas viver essa paz futura no presente, imperfeita, porém imagem válida e real. Por outro lado, o presente não tem significado na satisfação imediata que confere, mas na imagem do porvir que permite realizar”, COMBLIN, José. In: Mensaje (julio, 1974), p. 298. Ver também HINKELAMMERT, Franz. Ideologías del desarrollo y dialéctica de la historia. Buenos Aires, Editorial Universidad Católica de Chile-Paidós, 1970.

4. O mesmo cardeal de Santiago, Raúl Silva Henríquez, declarou em uma viagem à Itália que os Cristãos pelo Socialismo haviam tomado um caminho que “lhes fizera renunciar de fato ao seu cristianismo (…)” (Avveniere. In: El Mercurio, 25. X. 73).

5. A análise que Hegel fez do jacobinismo é nitidamente correta para explicar o golpe militar chileno e sua política posterior: “Desenvolvidas até se converterem em forças, essas abstrações realmente produziram, por um lado, o primeiro e – desde que temos conhecimento no gênero humano – prodigioso espetáculo de iniciar completamente do zero e pelo pensamento a constituição de um Estado real, com o acmúmulo de tudo o que existe e tem lugar, e de querer dar-lhe como fundamento a pretendida racionalidade; por outro lado, posto que somente sejam abstrações privadas de idéias, tem feito desta tentativa um acontecimento demasiadamente agitado e cruel” (HEGEL, Filosofia del derecho, § 258). Este jacobinismo, com sua disposição ao terrorismo de Estado, é perceptível também em muitos casos após o golpe militar chileno, no qual é imposto o esquema ideológico neoliberal. Trata-se de jacobinismo, embora não seja mais que uma farsa deste. Um dos seus lemas vem diretamente de Saint Just: Nenhuma liberdade para os inimigos da liberdade. Ver sobre a revolução francesa: GALLARDO, Helio. La revolución francesa y el pensamiento político. In: Pasos 26 (noviembre-diciembre 1989).

6. Citado por SORMAN, Guy. Sauver Le capitalisme- Le dernier combat de Milton Friedman. In: Le Devoir. Canadá: Montreal, 5. IV.1994.

7. A teologia da vítima tem também raízes na teologia alemã do tempo do nazismo. Ver: GUTIÉRREZ, Gustavo. Los limites de la teologia moderna: un texto de Bonhoeffer. In: GUTIÉRREZ, Gustavo. La fuerza histórica de los pobres. Lima: CEP, 1979; HINKELAMMERT, F. J. Bonhoeffer. In: Teología alemana y teología latinoamericana de la liberación. Um esfuerzo de diálogo. San José: DEI, 1990.

8. ASSMAN, Hugo; HINKELAMMERT, F. J. A idolatria do mercado Russo. Sobre economia e teologia. São Paulo: Vozes, 1989.

9. HINKELAMMERT, F. J. Paradigma y metamorphosis? Del sacrifício de vida humanas. In: ASSMAN, Hugo (Org.). Sobre ídolos y sacrifícios René Girard com teólogos de liberación. San José: DEI, 1991.

10. “A doutrina marxista do tempo final é uma promessa de salvação intramundana. Karl Marx secularizou o destino do povo judeu – a servidão no Egito e o êxodo para a terra prometida – como a esperança da salvação messiânica do Antigo Testamento para transferi-las para o nosso tempo, o tempo depois de Jesus Cristo – uma redução perturbadora e imitação [Nachäffung: agir como macaco] da salvação que em Jesus Cristo foi dada a toda a humanidade. O marxismo é um anti-evangelho” (HOFFNER, Josef. Christliche Gesellschaftslehre. Kevelaer, 1975, p. 171-172).

11. “(…) as sociedades tradicionais e socialistas oferecem uma visão unitária. Infundem em toda atividade uma solidariedade simbólica. O coração humano está faminto deste pão. O ‘páramo’ que encontramos no coração do capitalismo democrático é como um campo de batalha sobre o qual os indivíduos vagam abundantemente em meio aos cadáveres. Porém este deserto, como a noite escura da alma na viagem interior dos místicos, cumpre um propósito indispensável. (…) Sem dúvida, o domínio do transcendente é mediado pela literatura, a religião, a família e os próprios semelhantes; mas no final está centrado na coluna do silêncio interior de cada pessoa”. NOVAK, Michel. The spirit of democratic capitalism. New York: An American Enterprise Institute Simon & Schuster Publication, 1982. Citamos segundo a edição em espanhol. El espíritu del capitalismo democrático. Buenos Aires: Ediciones Tres Tiempos, 1983, p. 56-57. E conclui: “Os ‘filhos da luz’ são em muitos aspectos um perigo maior para a fé bíblica que os ‘filhos das trevas’” (Ibid., pág. 71).

12. Basta ver o livro de PENTECOST, J. D. Eventos del porvenir. Estudios de escatologia bíblica. Miami: Editorial Vida, 1984; ou LINDSEY, Hal. La agonía del gran planeta Tierra. Miami: Editorial Vida, 1985 (The Late Great Planet Earth. Zondervan Publishing House, Grand Rapids-Michigan, 1970). O último livro foi vendido durante a década de setenta nos EUA, com mais de quinze milhões de exemplares, e foi o bestseller da década. Lindsey, no entanto, era um dos Rasputins da corte de Reagan.

13. A “Declaração de Princípios” do governo militar chileno do ano de 1974 já segue esta linha.

14. Stockman se apresenta como um esquerdista convertido, que por um tempo foi partidário de uma utopia falsa, porém agora descobriu a verdadeira: “Em um sentido mais profundo, portanto, a doutrina nova [ele fala inclusive do ‘evangelho da oferta’] da oferta não era senão uma reedição do meu velho idealismo social em nova forma e, como acredito, madura. O mundo poderia começar de novo desde o início. As crises econômicas e sociais, que estão aumentando, poderiam ser superadas. Os antigos males herdados, o racismo e a pauperização, poderiam ser superados por reformas profundas que partiam das causas políticas. Porém, a doutrina da oferta ofereceu sobretudo uma alternativa idealista para o sentido do tempo cínico e pessimista”, segundo a publicação de trechos do livro em Der Spiegel, 1986, nº 16ss. As “reformas profundas que partiam das causas políticas” são as de um ajuste estrutural extremo: “Isso significava também o corte repentino da ajuda social para os necessitados com capacidade de trabalho (…) [que] somente um chanceler de ferro poderia impor: um ‘matador de dragões’”, segundo Stockman.

15. As seguintes citações são traduzidas do texto publicado: CAMDESSUS, Michel. Marché-Royaume. La double appartenance. Documents EPISCOPAT. Bulletin de secrétariat de la conférence des evoques de France No 12 (Juillet-Aut. 1992). Agradeço a tradução de Daniela Gallardo Amagada. Camdessus apresentou uma conferência parecida diante dos empresários cristãos do México. A UNIPAC (União Internacional Cristã de Dirigentes de Empresas) anunciou o seu XIX encontro em Monterrey, entre 27 e 29 de setembro de 1993, com a assistência de Camdessus para falar sobre o tema: “O mercado e o reino frente à globalização da economia mundial”. Esta reunião teve dois oradores. O outro orador foi o cardeal Echegaray. Ver: SELAT (Servicios Latinoamericanos) (Lima, Perú) N” 17 (17.IX. 1993).

16. Em uma conferência pronunciada por Camdessus na Semana Social da França em 1991, ele confronta igualmente a opção pelos pobres com o que ele chama de populismo: “Tenhamos cuidado com nossos juízos para não confundir jamais a opção preferencial pelos pobres com o populismo.” CAMDESSUS, Michel.  LibéralismeelSolidarité à l’échellemondiale. XXX Concurrence et solidarité. L’économie de marchéprespu’oû? ActesdesSeminairessociales de France tenues à Paris en 1991. París: ESF editeur, 1992, p. 100.

17. Neste sentido, Hugo Assman cita Roberto Campos: “Em rigor, ninguém pode optar diretamente pelos pobres. A opção que se tem que fazer é pelo investidor, quem cria emprego para os pobres”. ASSMAN, Hugo. Economía y religión. San José: DEI, 1994, p. 101.

18. Ver os seguintes exemplos: MOLÍ, P. G. Liberating Liberation Theology: Towards Independence from Dependency Theory.  In:  Journal of Theology  for Southern Africa. March 1992;  HAIGHT, Roger.  An Alternative  Vision: an Interpretation of Liberation Theology. New York;  PAULIST; S. A. L. Preferential Option. A Christian and Neoliberal Strategy for Latín America’s Poor. Michigan: Gran Rapids, 1992. Ver sobre esta sacralização do mercado no contexto da modernidade: SANTA ANA, Julio de. Teologia e modernidade. In: SILVA, Antonio (Org.): América Latina: 500 anos de evangelização. Reflexões teológico-pastorais. São Paulo: Paulias, 1990.

19. Ver Assmann-Hinkelammert, op. cit.

20. Hannah Arendt descreve este circuito de forma magistral: “A afirmação de que o Metrô de Moscou é o único no mundo é uma mentira somente enquanto os bolcheviques não tiverem o poder para destruir todos os outros. Em outras palavras, o método de predição infalível, mais que qualquer outro método propagandístico totalitário, denota seu objetivo último de conquista mundial, dado que somente em um mundo por completo sob seu controle o governante totalitário pode tornar realidade todas as suas mentiras e lograr que se cumpram todas as suas profecias” (ARENDT, Hannah. Los Orígenes del totalitarismo. Madrid: Taurus, 1974, p. 435). “Então toda discussão acerca do acerto ou erro na predição de um ditador totalitário é tão fantástica como discutir com um assassino profissional sobre se sua futura vítima está morta ou viva, já que matando a pessoa em questão o assassino pode proporcionar imediatamente a prova da veracidade de sua declaração” (Idem). Em uma entrevista, Camdessus descreve este mecanismo visto no FMI: (Pergunta): “Qual será o custo social das medidas para pôr em ordem as finanças públicas?”(Resposta): “A questão é qual seria o custo para o povo da Costa Rica não ajustar suas estruturas. O custo poderia ser a interrupção do financiamento interno, redução do investimento, paralisação de um acordo de renegociação da dívida, interrupções das importações. O custo seria a recessão… Nossa posição é a do diálogo. – Porém o fato de que as metas não tenham sido respeitadas e que nós tenhamos suspendido os pagamentos não significa um castigo, mas uma realidade que o país enfrenta adaptando suas políticas. Logo pagaremos.” Entrevista de Michel Camdessus, diretor-gerente do FMI. In: La Nación. San José, 5.III, 1990.

21. Talvez o texto que melhor descreve a situação apocalíptica seja o texto que se segue do profeta Daniel, do século 5 a.C.: “O senhor, ó rei, estava olhando e viu uma grande estátua. Esta, que era imensa e de extraordinário esplendor, estava em pé, bem na sua frente; e a aparência dela era terrível. A cabeça era de ouro puro, o peito e os braços eram de prata, o ventre e os quadris eram de bronze; as pernas eram de ferro, e os pés eram em parte de ferro e em parte de barro. Enquanto o senhor estava olhando, uma pedra foi cortada sem auxílio de mãos humanas, atingiu a estátua nos pés de ferro e de barro e os despedaçou. O ferro, o barro, o bronze, a prata e o ouro foram despedaçados no mesmo instante … Mas a pedra que atingiu a estátua se tornou uma grande montanha, que encheu toda a terra” (Dn 2.31-35).

22. O livro já citado de Pentecost se chama Eventos del Porvenir. Assim como a Academia de Ciências de Moscou conhecia as leis inexoráveis do futuro, estes fundamentalistas também as conhecem. Porém, embora a Academia de Ciências acredite ainda em um futuro melhor, este fundamentalismo atual acredita piamente e de antemão na perdição da humanidade. No dia do começo da Guerra do Golfo, o presidente Bush apareceu na televisão com um dos pregadores fundamentalistas dos EUA, Billy Graham, para pedir juntos a bênção de Deus nesta guerra.

23. Ver RICHARD, Pablo. El pueblo de Dios contra el império. Daniel 7 em su contexto literario e histórico. In: Ribla. San José: DEI, Nº 7, 1990; RICHARD, Pablo. Apocalipsis. Reconstrucción de la esperanza. San José: DEI, 1994; MESTERS, Carlos. El Apocalipsis: la esperanza de um pueblo que lucha. Santiago de Chile: Rehue, 1986; FOULKES, Ricardo. El Apocalipsis de San Juan. Una lectura desde América Latina. Buenos Aires, 1989; ROWLAND, Christopher. Radical Christianiaty: A Reading of Recovery. New York: Orbis, 1998; SNOEK, Juan; NAUTA, Rommie. Daniel y el Apocalipsis. San José: DEI, 1993.

24. Ver TAMEZ, Elsa. La razón utópica de Qohélet. In: Pasos V 52 (marzo-abril, 1994).

25. GALLARDO, Helio. Radicalidad de la teoría y sujeto popular en América Latina. In: Pasos Especial Nº 3, 1992; HINKELAMMERT, F. J. La lógica de la expulsión del mercado capitalista mundial y el proyecto de liberación. In: Pasos Especial Nº 3, 1992.

26. Ver DUSSEL, Enrique. La producción teórica de Marx. Un comentario a los ‘Grundrisse’. México: Siglo XXI, 1985; DUSSEL, Enrique. Hacia un Marx desconocido. Um comentario de los Manuscritos del 61-63. México: Siglo XXI, 1998.

27. O livro que mais se destaca neste sentido é TAMEZ, Elsa. Contra toda cadena. La justificación por la Fe desde los excluídos. San José: DEI, 1991. Ver SHAULL, Richard. La Reforma y la teologia de la liberación. San José: DEI, 1993; e também HINKELAMMERT, F.J. Las armas ideológicas de la muerte. San José: DEI, 1981 (2ª. Ed. revisada e ampliada, com introdução de Pablo Richard e Raúl Vidales).

28. Ver HINKELAMMERT, F.J. La Fe de Abraham y el Edipo occidental. San José: DEI, 1991 (2ª. Ed. ampliada); HINKELAMMERT, F.J. Sacrificios humanos y sociedad occidental: Lucifer y la Bestia. San José: DEI, 1991; PIXLEY, Jorge. La violencia legal, violencia institucionalizada, la que se comete creyendo servirá Dios. In: RÍBLA. San José: DEI, 1994.

29. Ver RUFIN, Jean-Cristophe. L’empire et les nouveaux barbares. París, 1991. Igualmente, ENZENSBERGER, Hans Magnus. AussichtenaufdenBürgerkrieg (Perspectivas de la guerra civil). Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1993.

30. Na literatura sobre o totalitarismo, somente Hannah Arendt dá conta deste fato. Ver Arendt, Hannah: op. cit.

31. Ver HINKELAMMERT, F. J. La deuda externa de América Latina: automatismo de la deuda. San José: DEI, 1988; HINKELAMMERT, F. J. Democracia y totalitarismo. San José: DEI, 1987.

32. Ver SUNG, Jung Mo. Economía. Tema ausente en la teología de la liberación. San José: DEI, 1994.

33. ASSMAN, Hugo. Teología de la liberación: mirando hacia el frente.  In: Pasos N 55 (septiembre-octubre, 1994); HINKELAMMERT, F.J. ¿Capitalismo sin alternativas? Sobre la sociedade que sostiene que no hay alternativa para Ella. In: Pasos N 37 (septiembre-octubre, 1991).