Com conhecimento teórico raso, a revista Ministério, em abril, ensina inconformidade com o marxismo aos líderes da Igreja Adventista do Sétimo Dia, e continua a harmonizar capitalismo e cristianismo de forma acrítica


Desde seu início, o marxismo é atacado por diversos lados. Muitos desses ataques se baseiam em afirmações que Marx nunca fez e em ideias que o marxismo nunca defendeu. Entre os argumentos de ataque ao marxismo está o de que ele defende a eliminação das igrejas na sociedade e o ateísmo compulsório. Ou seja, caso o marxismo fosse “implementado no mundo” as igrejas não poderiam existir e as pessoas não poderiam professar sua religião. 

Os ataques ao marxismo são frequentes entre os líderes da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD). Na tentativa de “alertar” seus membros sobre os perigos do marxismo, pastores e líderes adventistas acusam o marxismo de ter sua origem na mente de Satanás, colocando-o junto com a teoria da evolução e o espiritismo em uma “galeria do mal”, que representam os planos satânicos para acabar com o cristianismo. 

Esses ataques, que funcionam como uma propaganda anti-marxista ou anti-comunista, além de não possuírem respaldo no texto bíblico, também não se baseiam em nenhuma área das ciências humanas que produz conhecimento a partir da abordagem marxista. Apesar de não serem um fenômeno novo dentro da igreja, nos últimos anos esses ataques se tornam cada vez mais frequentes nos cultos e programações, o que contribuiu para a consolidação de um ambiente hostil, no qual opiniões e posturas políticas são demonizadas ou santificadas, potencializando a bipolarização política dentro das igrejas.

No mês de março, a revista Ministério, um periódico bimestral publicado pela Casa Publicadora Brasileira (CPB), que tem como público leitor pastores e líderes da IASD na América do Sul,  publicou um artigo de capa com o seguinte título: “O cristão e a revolução: uma análise sobre as origens do marxismo e a tentativa de harmonizá-lo com o cristianismo”.1O que chama a atenção nesse artigo, diferentemente da maior parte dos discursos anti-marxismo que ouvimos da liderança, não é a tradicional reprodução de propaganda anti-comunista, que relaciona comunismo com o mal e caracteriza Karl Marx como inimigo do cristianismo, mas a superficialidade dos argumentos que procuram explicar como pressupostos marxistas contradizem a Bíblia.  

O texto foi escrito pelo historiador Fábio Augusto Darius, que é parte do corpo docente da Faculdade de Teologia (FAT). Seu texto, apesar de se propor a falar dos pressupostos marxistas e suas incongruências com o cristianismo, falha miseravelmente ao abordar tais pressupostos, evidenciando sua falta de conhecimento sobre o tema. O professor Darius, assim como muitos autores cristãos, jamais estudou profundamente a obra marxiana para falar dela — a despeito de sua formação em História, seu currículo não apresenta  publicações ou pesquisas na área dos estudos marxistas. Em resumo, falta ao autor trabalhar com conceitos de fato marxistas. No fim, o que o autor faz para defender a falta de harmonia entre cristianismo e marxismo é reproduzir dois argumentos que temos ouvido com insistência dentro da igreja, e que são falaciosos.2 

Com esse texto, pretendo questionar a validade dos argumentos expostos no artigo publicado pela revista Ministério e propor uma reflexão para nós cristãs e cristãos, que buscamos honestamente formar uma opinião independente e embasada a respeito do tema. Os principais argumentos levantados pelo artigo da revista Ministério e que trataremos de discutir e apontar os problemas, podem ser resumidos nas seguintes afirmações:  

i) “Tentar combater as injustiças de nossa sociedade a partir dos pressupostos marxistas é insuficiente, uma vez que eles desconsideram, e até mesmo contradizem, as premissas encontradas nas Escrituras.” (p. 13, grifo meu).

ii) As lutas por um mundo mais justo, a busca por uma revolução e o fim da sociedade capitalista não podem ser conciliadas com a vida do cristão, pois os cristãos genuínos devem se dedicar apenas a pregar o amor de Cristo. (p. 13).

Pressupostos marxistas e a chamada cosmovisão bíblica

Para justificar o argumento de que os pressupostos marxistas desconsideram e contradizem as Escrituras, o autor apresenta três “pressupostos marxistas”e indica em que medida não se alinham à cosmovisão bíblica. Analisarei a seguir os argumentos (a, b e c) que o autor oferece para rebater cada um deles e localizar, na teoria marxista, se os pressupostos citados pelo autor são de fato marxistas.

  1. A origem da desigualdade social e o sofrimento humano está na queda do homem e no pecado e não nos modos de produção como aponta a teoria marxista (p. 13).

Quando fazemos uma pergunta sobre qualquer problema social, econômico ou de saúde pública, ela pode ser respondida a partir de diferentes áreas de conhecimento. Para exemplificar meu ponto, pensemos na seguinte pergunta: Por que estamos vivendo uma pandemia de Covid-19?  

Essa pergunta será respondida de diferentes maneiras dependendo do público direcionado. Assim, um sociólogo poderia respondê-la partindo da perspectiva social do problema, trazendo argumentos sobre como as medidas de isolamento social ou a ampla vacinação se mostram um desafio político; ou mesmo sobre a origem do vírus como um problema social, oriundo da forma como os seres humanos interagem com a natureza, e assim em diante. Uma infectologista poderia responder listando características do vírus que corroboram com sua alta taxa de contaminação.

Mas se essa pergunta é feita para um pastor, pode-se sugerir que o questionador busca entender onde está Deus diante desse problema; ou busca por uma mensagem de esperança e consolo diante de tal aflição. Aí, então, o pastor abrirá sua Bíblia e procurará explicar como ela comunica esse consolo.  

Parece óbvio e desnecessário oferecer esse exemplo. Mas o argumento (a) mencionado acima, amplamente repetido nas igrejas, de que a teoria marxista não aborda o relato bíblico da queda do homem em pecado, e que por isso desconsidera a Bíblia e não deve ser aceita pelo cristianismo, é tão absurdo quanto esperar que um infectologista vá justificar a existência de um vírus com a narrativa bíblica da queda.  

O segundo ponto desse argumento (a) é a afirmação de que a teoria marxista enxerga a origem da desigualdade social nos meios de produção. Com essa afirmação, fica claro que o autor não tem conhecimento suficiente de marxismo para escrever um texto analisando qualquer aspecto dessa teoria. 

O marxismo não afirma que a origem da desigualdade social no mundo está nos meios de produção. Essa frase sequer faz sentido. A teoria marxista é demarcada pela crítica ao sistema capitalista, sistema econômico que surgiu na Europa no século quinze na passagem da Idade Média para a chamada Idade Moderna. Na obra O Capital, Marx e Engels analisam o surgimento do capitalismo desde uma perspectiva histórica, desenvolvendo a teoria da chamada “acumulação primitiva”. A seguir, apresento alguns conceitos-chave para entendermos a crítica marxista ao modo de produção capitalista. 

Acumulação Primitiva3

De forma bem simplificada e resumida, a acumulação primitiva ou originária é o processo de acumulação de capital que enriquece um grupo de pessoas, fazendo surgir uma nova classe social: a burguesia. Marx então descreve quais métodos nada idílicos (em oposição à narrativa da economia clássica) foram responsáveis por essa acumulação original: o roubo de terras, o saque colonial e a escravização dos povos africanos.

Outro elemento chave para entender a acumulação primitiva é o fim da sociedade feudal e o avanço do comércio nas cidades. Quando o servo se “liberta” da gleba (o terreno próprio para cultivo), se torna um vendedor da sua força de trabalho. Essa suposta liberdade dos trabalhadores recém-emancipados é relativa, uma vez que, despojados de todos os seus meios de produção e das garantias de vida que as instituições feudais lhes asseguravam, os trabalhadores só podem se tornar vendedores de si mesmos. 

Para Marx, esse processo, a partir do qual surgem o trabalhador assalariado e o capitalista, tem como ponto de partida a escravidão do trabalhador. O que muda é a forma de escravidão. A exploração feudal se converte na exploração capitalista. 

A extrema violência da dita acumulação primitiva se repete conforme o capitalismo se expande ao longo da história. Há ainda, no relato de Marx, alguns exemplos dessa violência que marcam a invasão dos europeus na América e a implementação do sistema colonial. Num trecho sobre o trato com nativos nas Colônias, Marx expõe um tipo de violência cujos agressores são, especificamente, os cristãos protestantes. Em 1703, por decisão na Assembleia, os Puritanos na Nova Inglaterra (futuro Estados Unidos) estabeleceram um prêmio de 40 libras esterlinas por coro cabeludo indígena. Posteriormente, em 1720, o prêmio era de 100 libras esterlinas por cada um. Essa violência não será apenas uma marca de nascença do capitalismo, mas acompanhará todo o processo de expansão dele, que é marcado pelo aprofundamento dessas expropriações. 

Expropriação4

No processo de expropriação, os indivíduos são despojados dos seus meios de produção de subsistência, seja através da expulsão da terra, que ocorre de forma sistemática desde o século quinze, ou através do despojo de suas ferramentas de produção, como o tear, a pá e a enxada. Quando são expropriados de seus meios de produção, camponesas e camponeses, artesãs e artesãos são subordinados ao novo dono dos meios de produção, que vai subordinar o trabalhador não para a produção da sua subsistência, mas para a produção do capital. Assim, a produção mercantil não está mais voltada à vida do trabalhador e sua subsistência, e sim à produção do Capital.

Ou seja, a teoria marxista é crítica ao modo de produção capitalista, que não só explora o trabalhador mas produz sua própria alienação.

A alienação do trabalhador5

Ao escrever sobre o processo de alienação, Marx está analisando a sociedade inglesa no século dezenove pós revolução industrial. Nesta época, a jornada média de um trabalhador ou de uma trabalhadora nas fábricas era de 16 horas por dia, em condições precárias de trabalho. Marx evidencia neste sistema de trabalho quatro relações que são base para a sua teoria sobre alienação:

  • O trabalhador é alienado (ou excluído) de sua atividade produtiva, não desempenhando qualquer papel na decisão do que fazer ou como fazê-lo. Outra pessoa, o capitalista, também estabelece as condições e a velocidade do trabalho, e até mesmo decide se o trabalhador deve ou não ter permissão para trabalhar, ou seja, contrata e despede o trabalhador. 
  • O trabalhador é alienado do produto dessa atividade, não tendo controle sobre o que é feito dele, muitas vezes nem mesmo sabendo o que lhe acontece uma vez que tenha deixado suas mãos. 
  • O trabalhador é alienado de outros seres humanos, com competição e indiferença mútua substituindo a maioria das formas de cooperação. Isto se aplica não apenas às relações com os capitalistas, que usam seu controle sobre a atividade e o produto do trabalhador para promover seu próprio lucro maximizando seus interesses, mas também às relações entre os indivíduos dentro de cada classe, pois todos tentam sobreviver como podem. 
  • Finalmente, o trabalhador está alienado do potencial que nos distingue enquanto seres humanos: a criatividade.  Através de um trabalho que afasta trabalhadoras e trabalhadores da produção criativa, gradualmente se perde a capacidade de desenvolver qualidades que nos definem como membros da espécie humana.

Essas relações, segundo Marx, produzem um indivíduo enfraquecido fisicamente; mentalmente cansado e isolado. Eles ainda são submetidos à mistificação do mercado:  o produto criado pelo próprio trabalhador toma diferentes formas e nomes ao longo do caminho, e eventualmente, ele retorna à vida diária do trabalhador de outra maneira: como a casa que aluga, a comida da mercearia, o empréstimo bancário etc.

Sem perceber, o trabalhador construiu as condições necessárias para reproduzir sua própria alienação. O mundo que o trabalhador elaborou e perdeu, em trabalho alienado, reaparece como propriedade privada de outra pessoa, à qual ele só tem acesso vendendo sua força de trabalho e engajando-se em mais trabalho alienado. Embora os principais exemplos de alienação de Marx sejam extraídos da vida dos trabalhadores, outras classes também são alienadas na medida em que compartilham ou são diretamente afetadas por essas relações, e isso inclui os os próprios capitalistas.

Não me surpreende o fato de que essas teorias não são mencionadas e nem criticadas por pastores e líderes religiosos, mesmo que esses conceitos ( juntamente com a teoria do valor, que é central obra de Marx) sejam chaves para a teoria marxista. O fato de que essas ideias nunca são mencionadas em críticas ao marxismo evidencia o fato de que a igreja tem, ao longo do anos, demonizado uma teoria social-econômica da qual tem profundo desconhecimento. 

  1. “Ao contrário do pensamento marxista, que defende o poder de a capacidade humana resolver por si mesma os problemas decorrentes da forma pela qual os seres humanos se organizam em sociedade, a Bíblia mostra que a solução para a humanidade está na aproximação com o divino, por meio da obra salvífica de Jesus Cristo” (p. 13).

Para pensarmos na afirmação acima (b) proponho que façamos a seguinte reflexão: Deus não nos capacitou/capacita para fazer o bem? Em um segundo ponto, pensemos na seguinte pergunta: Deus nos chama para praticar justiça social? E ainda uma terceira pergunta: Quem pode fazer o bem na sociedade? Só os cristãos convertidos? Não pretendo responder sistematicamente a essas perguntas neste texto, mas apontar respostas que estão presentes em relatos bíblicos. 

Lucas 10:25-37 apresenta a parábola do bom samaritano. Ao responder a pergunta de Jesus sobre quem foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes, o perito na lei responde: “Aquele que teve misericórdia dele”. Jesus então lhe diz: Vá e faça o mesmo. 

A parábola é rica em ensinamentos, e um deles é: praticar a misericórdia não é exclusividade de quem se julga “escolhido” por Deus. O desejo de praticar o bem e servir ao próximo não é algo natural para nenhum humano, é algo que Deus opera em nosso coração. Não só opera, mas cobra, principalmente de seus filhos. Em diversos momentos da história do povo de Israel, vemos Deus repreendendo o povo através de profetas por sua conduta social injusta.6

A solução final para uma terra contaminada pelo pecado e uma humanidade caída é apenas uma: a obra salvífica de Jesus Cristo. Quanto a isso não há questionamento. Porém, considero que qualquer pessoa que usar a mensagem bíblica da salvação e da glorificação da terra como um motivo para que o cristão não se conscientize de sua responsabilidade em promover a justiça social, não fala com embasamento bíblico.

  1. “O marxismo defende a possibilidade de transformar o mundo a partir do processo revolucionário, enquanto o ensinamento da Palavra de Deus é enfático ao dizer que a restauração plena não ocorrerá antes da segunda vinda de Jesus” (p. 13).

O marxismo não propõe uma “restauração plena” da Terra ou da humanidade. Não está falando de santificação, glorificação e purificação. A esfera espiritual não é a esfera de análise do marxismo. A libertação do pecado, a guerra cósmica entre o bem e o mal são temas da religião. O que o marxismo se propõe a estudar — não só Marx, mas todo o marxismo como corrente de pensamento — é o sistema capitalista, e como a sociedade pode superar esse sistema através das mudanças no modo de produção. A “promessa marxista” não é alcançar o Paraíso, mas sim a de que há outras formas mais justas de se viver. 

Por mais urgente e desejada que seja sua volta, não sabemos quando Jesus retornará. Os discípulos de Cristo acreditavam que seria em sua época e Ellen G. White também acreditava em algo semelhante. E nós acreditamos que será no nosso século. Contudo, por mais perto que possamos estar do tempo do fim, o mundo ainda existe. Devemos cuidar uns dos outros e da natureza até que Jesus volte. Enquanto cidadãos deste mundo, podemos julgar quais sistemas políticos, candidatos e políticas econômicas serão capazes de nos levar para uma sociedade melhor. Podemos conversar sobre isso em harmonia, mas não enquanto nossa igreja pregar que uma teoria (a marxista) foi criada por Satanás para impedir o avanço do cristianismo. Isso não é bíblico, isso não é verdadeiro, e não possui respaldo algum, seja na Bíblia ou nas ciências políticas, motivo pelo qual chamamos isso de teoria conspiratória. 

A esperança da segunda volta de Jesus não é motivação para vivermos sem esperança de que, ainda na Terra, podemos viver com mais empatia, amor e justiça. Me parece óbvia essa afirmação, mas sinto que ainda é necessário repeti-la. Gosto de pensar na letra da música “Pés na Terra, Olhos no Céu7: “Com os pés na terra e os olhos no céu, eu vou seguindo até encontrar meu Jesus”. E com os dois pés na terra, como cristã que aguarda ansiosamente a volta de Jesus, vou continuar a proclamar o seu amor, mas também defender o uso social e coletivo da terra, para que mais pessoas vivam uma vida digna.

II) Qual seria a única revolução admitida pela Bíblia? 

“Longe de uma visão humana imanentista e revolucionária, a única revolução admitida na Palavra é a do amor, exemplificada por Jesus de Nazaré.

A frase acima é muito bonita e verdadeira. Porém, o autor a está utilizando para defender o não envolvimento de cristãs e cristãos em lutas sociais, e para propor que a vida de serviço que somos orientadas a viver, enquanto cristãs e cristãos, não condiz com a vida de quem está envolvido em causas sociais. Nessa visão política, defendida pelo autor do texto e por muitos pastores, assim como no documento oficial da igreja sobre política, não há espaço para o cristão lutar pelos seus direitos civis, sociais etc. 

Esse argumento fica ainda mais evidente na escolha da imagem que ilustra o artigo. Na imagem há a figura de cena de lava-pés em oposição (representada por um X) à figura de um punho fechado. O punho fechado é símbolo de diversas lutas, não só da esquerda socialista, mas de movimentos por emancipação social, direitos civis e conquista de direitos para pessoas com deficiências.8 Apesar de defendida por alguns pastores, não podemos tomar essa postura como uma postura simplesmente teológica. A visão é sobretudo política.

Além de ser uma posição que desconsidera os debates teológicos sobre política e religião, essa é uma posição que reafirma um dos grandes males na postura institucional da IASD: sua posição corporativista e clientelista diante da política, tema que foi abordado pelo cientista social adventista Dr. Ronald Lawson em entrevista publicada na Zelota em abril.

Ou seja, a IASD está sempre apoiando ativismos políticos que vão ao encontro de seus interesses institucionais, mas quando o interesse ativista é defender pautas apontadas como sendo de esquerda (apesar de serem pautas de direitos humanos e civis), não há apoio. Pelo contrário, há uma demonização da prática. E ainda pior, vemos pastores e líderes influentes da IASD invocarem teorias conspiratórias, como o “marxismo cultural”, para atacar esses movimentos, trazendo o que há de mais desonesto em termos intelectuais para dentro das congregações. 

Quando ouço pastores ou líderes e influenciadores religiosos falando sobre como a luta social, a luta antirracista, a luta feminista, a luta dos indígenas por seu direito de existir e a luta anticapitalista não são causas para nos envolvermos, pois não deveríamos nos envolver com política e deveríamos focar no evangelho, eu me pergunto: de qual evangelho esses líderes estão falando? Qual livro de história eles têm lido? 

Parece que o mundo nasceu capitalista, racista, machista, e essa é uma condição que devemos aceitar. Me pergunto se eles teriam coragem de dizer que o cristão de 1800 não deveria somar a sua voz ao movimento abolicionista. Pergunto se os pastores adventistas que se alinharam a Hitler, seja na forma de apoio aberto, seja pelo silêncio diante de suas políticas genocidas, não tinham a mesma visão que têm esses pastores e líderes atuais. 

Há dentro da liderança da igreja uma falta de memória e consciência política, que é típica da cosmovisão liberal, e que impede muitos líderes de verem que, ao juntarmos nossas vozes e caminharmos com a sociedade nessas lutas e revoluções, o fazemos movidos pelo amor de Cristo. 

A afirmação de Paulo em Romanos 12:2,9 citada pelo autor do artigo, não deveria ser dirigida somente a nós, marxistas e cristãos, mas deve ser um questionamento individual e coletivo entre a membresia: Quais são os paradigmas desse mundo que temos normalizado dentro da igreja? 

Me parece que há uma constante tentativa de isolar a igreja do mundo, acreditando que esses paradigmas mundanos não estão dentro da igreja. Fechamos os olhos para a realidade, fingimos que o capitalismo e o liberalismo não são paradigmas que pautam a igreja. Assim, a igreja aponta o dedo para movimentos sociais contra-hegemônicos na sociedade, e vê na tentativa de diálogo desses movimentos com a igreja uma forma do “mundo” entrar na igreja. 

Para aquelas e aqueles que honestamente se preocupam com as visões do marxismo sobre igreja e religião (entendo que essa é uma preocupação muito válida), aconselho  que leiam o que marxistas escrevem sobre o assunto. Infelizmente, esse assunto está permeado de desinformação, concepções equivocadas, mentiras e de achismos, não só por parte da igreja, mas em toda a sociedade, que é intencionalmente influenciada a pensar que o marxismo, enquanto teoria e prática, tem como objetivo perseguir a igreja.

Nesse ponto, o texto da revista Ministério, mesmo que de forma breve, fez um bom resumo do que pensava Karl Marx sobre religião.10 Mas é importante termos em mente que Marx, em sua obra O capital, que é considerada sua obra mais importante, não está interessado em discutir a existência ou não de Deus. Seu método material histórico não admite metanarrativas, como é a narrativa espiritual religiosa. Seu foco de estudo é analisar política, economia e sociedade, e a Igreja entra em sua análise, não por questões espirituais, mas por seu papel na luta de classes e na história do capitalismo. 

Se há uma cosmovisão bíblica que pode embasar o cristão para tomar posicionamentos em relação a regimes econômicos, políticos e sociais, por que se dedica tanto tempo e recursos para criticar a “cosmovisão” marxista — que na visão do autor do texto é uma utopia — e não a cosmovisão capitalista/liberal, sistema que nos domina hoje? A resposta para essa pergunta retorna ao início do texto e ao alinhamento da igreja à “herança” macartista,11 que ainda molda o pensamento  — e desconhecimento — da sociedade sobre o marxismo. Por que não estamos questionando a ideologia política liberal propagada nas igrejas e disfarçada de cosmovisão bíblica? 

Inibindo que esse debate seja feito nas igrejas, a IASD afirma de forma institucional sua neutralidade política. Porém, se a igreja se pretende neutra e unicamente centrada nas Escrituras, por que os argumentos usados por tantos pastores e líderes que pregam o anti marxismo são oriundos de uma teoria conspiratória chamada “marxismo cultural”12?  Esse medo desproporcional de que o marxismo poderia se infiltrar na igreja com ideologias anti-bíblicas tem cegado muitos pastores e líderes. 

Enquanto fecharmos os olhos para a realidade e para as ideologias do mundo capitalista que de fato estão presentes dentro da igreja, seremos incapazes de nos juntarmos ao apóstolo Paulo, e de fato representar um movimento cristão que não se conforma com os paradigmas do nosso mundo.

Notas:
  1. Darius, Fábio Augusto. “O cristão e a revolução: uma análise sobre as origens do marxismo e a tentativa de harmonizá-lo com o cristianismo” em Revista Ministério Ano 93 – Número 554 – Mar-Abr 2021: Casa Publicadora Brasileira.
  2. Neste caso trata-se de uma falácia do tipo petição de princípio, na qual ao defender uma ideia é utilizado como argumento aquilo que se deseja provar.
  3. MARX, KARL. A chamada acumulação primitiva. MARX, Karl. O Capital: para a crítica da economia política. Livro I, volume II, RJ: Civilização Brasileira, 2013. p. 833-885.
  4. Idem.
  5. MARX, K. O capital: crítica da economia política. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1986.
  6. Um profeta que carregava de forma contundente essa mensagem é Isaías. O capítulo 58 do livro é uma das ocasiões em que a injustiça social no meio do povo de Israel é rejeitada fortemente pelo Senhor.
  7. Composição de Jader Santos.
  8. Korff, Gottfried, and Larry Peterson. “From Brotherly Handshake to Militant Clenched Fist: On Political Metaphors for the Worker’s Hand.” International Labor and Working-Class History, no. 42 (1992): 70-81.
  9. “E não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus.”
  10. Marx não é considerado um filósofo da religião e suas contribuições mais famosas no tema estão em sua obra “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, de 1844. É nessa obra que Marx reproduz uma frase comum entre os pensadores da filosofia da religião: “A religião é o ópio do povo.” Considero que a curta explicação do conceito e contexto por trás dessa frase se encontra bem elucidada por Fábio A. Darius no artigo da revista Ministério ao qual me refiro neste texto.
  11. O Macartismo é uma expressão derivada do inglês “McCarthyism” e se refere a um período da política estadunidense caracterizado pela intensa perseguição política à ideologia marxista/comunista, aliada a uma intensa propaganda difamatória contra o comunismo.
  12. Marxismo cultural é uma teoria da conspiração difundida nos círculos conservadores e da extrema-direita. De acordo com quem afirma que existe um marxismo cultural, esse seria um movimento da esquerda que tenta implementar o comunismo e subverter a ordem moral cristã da sociedade de forma subliminar, através de pautas progressistas e identitárias como o feminismo, e antirracismo e os direitos civis da população LGBTQIA+.