Lição da Escola Sabatina para o segundo trimestre de 2021 insere, no processo de tradução para a língua portuguesa, referência pejorativa à temática LGBTQIA+


A Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), ao longo de sua história, tem se posicionado frequentemente sobre Orientação Sexual e Identidade de Gênero.1 Em 1987, por exemplo, foi votada pela Comissão Diretiva da Associação Geral (ADCOM, ou no inglês, Administrative Committee), a declaração “Conduta Sexual”. Ela apela ao sexo biológico como o ideal da Criação; discorre sobre o aldultério, o sexo premarital e atividades sexuais compulsivas como ameaça ao lar cristão. Ela inclui as “práticas da homossexualidade” em uma lista de atividades crimonosas, como o abuso sexual entre cônjuges, o abuso sexual a crianças, bestialidade (zoofilia) e incesto.

Posteriormente, em 1999, a ADCOM vota uma nova declaração, dessa vez especificamente acerca da Homossexualidade.2 A intimidade sexual é apresentada como uma bênção do casamento monogâmico cis-heteroafetivo; e o relacionamento homoafetivo não está dentro do ideal para o matrimônio. De forma semelhante, a Declaração sobre Transgêneros, votada em 2017, demonstra interesse no conhecimento sobre a transgeneridade; reconhece sua limitação em casos específicos; e recorre à Bíblia como resposta. Embora escrita por especialistas nomeados pela Comissão de Ética do Instituto de Pesquisa Bíblica (BRI), essa declaração desconhece as facetas da sexualidade humana, apresentando a transgeneridade como “um desalinhamento nos níveis físico e/ou mental-emocional”. Ela confunde o leitor sobre pessoas intersexos, matrimônio, celibato e apela para uma condição binária bíblica.

Essas duas últimas declarações encontram, no Brasil, um contexto social conturbado. Em 2019, foi registrada  a morte de 297 pessoas LGBTQIA+. Apesar de a homofobia e a transfobia serem crime, enquadradas ou tipificadas como racismo, em território nacional, a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) fez a ressalva de que os templos religiosos podem se posicionar contrariamente às relações homoafetivas, mas que não podem incitar e/ou induzir a discriminização e o preconceito.

A decisão do STF, contudo, não parece ter surtido efeito prático na IASD. Num caso de repercussão nacional, o Colégio Adventista de Correios, em Belém (PA), aplicou uma avaliação de Língua Portuguesa aos estudantes do 9º ano, na qual o conteúdo abordado condenava a homossexualidade. Essa condenação tinha como base o livro paradidático De Bem com Você, de Sueli Braga Nunes e co-autoria do atual editor chefe da Casa Publicadora Brasileira (CPB), Marcos de Benedicto, sendo distribuído e vendido pela mesma editora.

Não foi a primeira vez que a IASD se envolveu em casos de intervenção na individualidade e liberdade de consciência de seus membros; em 2013, a IASD teve influência direta no primeiro divorcío homoafetivo do Brasil. Com ação aceleradora, a pressão pastoral e o evangelismo da denominação foram responsáveis pelo fim do matrimônio de Rafael Ferraz e W. R., naquela época membro da igreja. “A igreja mandava CDs, revistas e livros tentando convencê-lo de que ele estava no caminho errado”, afirmou Ferraz à Revista Época

Esse tipo de postura, exemplificado pelos casos acima, se repete com certa frequência no contexto adventista. Na lição da escola sabatina atual, por exemplo, a CPB acrescentou uma informação sobre o movimento LGBTQIA+ de forma pejorativa e ironizante. Essa informação não se inclui em outras traduções do material, e pode ser considerada uma inserção deliberada dos editores.

A construção da lição

Atualmente, a denominação tem um guia de estudos bíblicos diários de cobertura mundial, conhecido por Lição da Escola Sabatina (LES). O direito de publicação e distribuição do material cabe à administração dos territórios e suas respectivas Casas Publicadoras. A CPB é a distribuidora do manual em território brasileiro e detém o direito à exclusividade para tradução, publicação e distribuição para a língua portuguesa; a Asociación Casa Editora Sudamericana (ACES) detém os direitos para os países hispanos da Divisão Sul Americana.

De cinco em cinco anos, o assunto a ser tratado trimestralmente no guia de estudo, assim como seus autores, é definido pela ADCOM para um período de cinco anos, e preparado pelo seu Departamento da Escola Sabatina e Ministério Pessoal.

Segundo vídeo apresentado pela jornalista Betina Pinto ao canal Revista Adventista, após escrito, o material segue para revisão de teólogos mundialmente representados, e é traduzido para outros idiomas e expressões culturais. Marcos de Benedicto e André Oliveira Santos, editor da LES pela CPB, explicam que, logo que disponibilizada pela Associação Geral, o arquivo é encaminhado para tradução. Benedicto enfatiza que o material é enviado “para uma tradutora profissional adventista qualificada, que procura apresentar um texto fluente para o português e, ao mesmo tempo, fiel ao original”. Ele acrescenta que “o editor, além de corrigir eventuais erros linguísticos, tem a liberdade de fazer pequenas adaptações contextuais para adequar o material à nossa cultura”. Santos descreve que, após a tradução da língua inglesa, o texto é revisado na redação; depois é enviado ao departamento de artes para  ilustração e diagramação; o material então é novamente revisado e corrigido por outro editor; novos ajustes são feitos, quando necessário, pelo departamento de artes; e só após uma última verificação pela equipe da redação a lição é finalmente enviada para impressão e venda.

A escolha que fere

A questão da LGBTfobia chega à LES dos adultos neste segundo trimestre de 2021, cujo tema geral se intitula “A promessa: a aliança eterna de Deus”, escrita pelo teólogo adventista alemão Gerhard F. Hasel. Em sua versão em língua portuguesa, oferecida pela CPB, a tradução está sob a responsabilidade de Carla N. Modzeieski, editada por André Oliveira Santos, e revisada por Josiéli Nobrega e Rosemara Santos. Nesse número, a terceira lição oferece, para o período de 10 à 16 de abril, príncipios de vida “Para todas as Gerações”, em um mundo tomado pelo pecado. 

Com o conteúdo datado para o dia 14 de abril de 2021, sob o título “O sinal do arco-íris”, a CPB pergunta o motivo de o arco-íris ser um símbolo para Deus, por meio de uma questão de múltipla escolha:

5. De acordo com Deus, por que o arco-íris seria um símbolo? Gn 9:12-17
A. ( ) Porque o Senhor aceitaria a diversidade vista nas cores do arco-íris.
B. ( ) Porque Ele Se lembraria da Sua aliança de salvação.

Fonte: “Para todas as gerações.” Lição da Escola Sabatina dos Adultos. 2º Trim./2021, p. 36. Grifos acrescentados.

Em consulta ao material em mais de 10 idiomas e dialetos distribuídos por outras Casas Publicadoras e em sites oficiais,3 foi possível constatar que a CPB alterou seu conteúdo. Em todas as LES verificadas, a tradução para o português teria o sentido de “Por que o Senhor disse que o arco-íris seria um sinal?” ou ”O que o Senhor disse que o arco-íris simbolizaria?”, como na versão oficial. Em nenhuma das traduções apresentadas houve uma adaptação que desse margem para interpretações LGBTfóbicas, a não ser a versão para língua portuguesa pela CPB.

Por exemplo, na lição em inglês, idioma original em que são escritas as lições, a questão é apresentada como “What did the Lord say the rainbow would symbolize?”; em língua espanhola, ¿Por qué dijo el Señor que el arco iris sería una señal?; e língua francesa, “Pourquoi l’Éternel a-t-Il dit que l’arc-en-ciel serait un symbole?”. Nota-se que não é dada margem à LGBTfobia, apenas o versículo em Gênesis 9:12-17.

Fonte:  “All Future Generations”. Adult Bible Study Guides, 2º Trim./2021, p. 26. Versão oficial.
Fonte: “Por siglos perpetuos”. Guia de Estudio de la Biblia para Adulto. 2º Trim./2021, p. 33.
Fonte: “Pour les générations à toujours”. Guide Moniteur d’Étude Biblique de l’École du Sabbat Adulte. 2º Trim./2021, p. 35.

Naturalmente, não é a primeira vez que a LES dos Adultos apresenta uma alteração no contexto onde a sexualidade é pautada. Em 2019, o guia de estudos do segundo trimestre, “Estações da Família”, da autoria de Claudio e Pamela Consuegra, apresenta em seu 6º ciclo semanal “A canção de amor do rei”. A lição para o dia 9 de maio descreve, então, em “Guardando o presente da Criação”, as seguintes informações:

8. Qual é a atitude das Escrituras em relação às práticas sexuais que não estão de acordo com o plano do Criador? Lv 20:7-21; 1Co 6:9-20.

Assinale a alternativa correta:
A. ( ) A Bíblia adverte sobre o erro e suas graves consequências.
B. ( ) A Escritura é flexível e elogia a diversidade sexual.

Fonte: “A canção de amor do Rei”. Lição da Escola Sabatina dos Adultos. 2º Trim./2019, p. 71.

Coincidentemente, na equipe encarregada encontram-se nomes familiares à edição deste trimestre: a tradutora Carla N. Modzeieski, o editor André Oliveira Santos e a revisora Josiéli Nobrega. Estão na equipe também o tradutor Amarildo Lemes de Souza, e a revisora Maria Cecília Ortolan.

Apesar de ser um estudo onde foi tratada a sexualidade humana, os guias de estudo para língua inglesa, espanhola e francesa não apresentam essas alternativas, apenas a pergunta e os versículos. Respectivamente, “What attitude does Scripture take toward sexual practices not in keeping with the Creator’s plan? Lev. 20:7–21, Rom. 1:24–27, 1 Cor. 6:9–20”; “¿Qué actitud asumen las Escrituras con respecto a las prácticas sexuales que no concuerdan con el plan del Creador? Levítico 20:7-21; Romanos 1:24-27; 1 Corintios 6:9-20”; e “Quelles mesures l’Écriture prend-elle contre les pratiques sexuelles non conformes au plan du Créateur? Lev. 20:7-21, Rom. 1:24-27, 1 Corinthiens 6:9-20.”

A consciência ferida

Historicamente, a Bandeira do Movimento LGBTQIA+ é conhecida como a Bandeira Arco-Íris, e os indivíduos que se identificam como LGBTQIA+ usualmente utilizam símbolos com o arco-íris, fazendo menção ao seu significado na comunidade afirmativa da diversidade. Seu criador, Gilbert Baker, inicialmente idealizou a bandeira com 8 cores; ela passou a 7, 6 e novamente 8, mas não como a original.4

Parece que a CPB adotou uma diagramação para tornar o conteúdo mais atrativo ao leitor da LES dos Adultos e estimular o estudo. Mesmo assim, podem ser feitas muitas perguntas sobre esse costume: Seria prejudicial, ao conteúdo programado, a omissão dessas alternativas? Por que as cores do arco-íris significariam algo socialmente negativo quando ligadas à diversidade? Há outros conteúdos alterados pela editora? Se sim, com qual objetivo? Será essa uma “pequena adaptação contextual para adequar o material à nossa cultura”? Ou será que essa alteração dos editores e tradutores da CPB é uma forma de não contradizer outros conteúdos já publicados? Seria ela motivada pelo medo de perder clientes ao não reforçar uma agenda específica? Ou seria a CPB apenas o reflexo de uma igreja que não percebe suas contribuições para o abuso espiritual de seus membros, a partir da apropriação da liberdade teológica? 

Infelizmente, essa pequena inserção parece sintomática de nossa LGBTfobia estrutural, alimentada por muitas comunidades religiosas, que deslegitima a luta pelo direito de viver dos LGBTQIA+. São tais abusos que legitimam aos poucos o preconceito, a discriminação, o homicídio e o suicídio dessa população. Não se trata de um debate contra ou a favor da cidadania LGBTQIA+, mas de uma aparente intenção de promover ativamente a discriminação e o preconceito em materiais da igreja. Se “a igreja não é a consciência de cada um de seus membros”, por que tanto empenho em induzir nossas consciências ao preconceito? Que sejamos persuadidos a amar, respeitar, acolher e não a armar, desrespeitar e discriminar.

A Zelota entrou em contato com a diretoria da CPB para obter informações sobre o processo criativo do guia de estudos e aprofundar a discussão sobre a abordagem na lição atual, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.

Notas:

1. Orientação sexual: é a atração afetiva e/ou sexual que uma pessoa manifesta em relação à outra, para quem se direciona, involuntariamente, o seu desejo. Identidade de gênero: é a percepção íntima que uma pessoa tem de si como sendo do gênero masculino, feminino ou de alguma combinação dos dois, independente do sexo biológico. A identidade traduz o entendimento que a pessoa tem sobre ela mesma, como ela se descreve e deseja ser reconhecida. Para aumentar seu conhecimento sobre esses  e mais conceitos, consulte Diversidade Sexual e a Cidadania LGBT.

2. A Declaração sobre Homossexualidade foi revisada pela Comissão Diretiva da Associação Geral em 2012. 

3. A consulta e verificações foram feitas nos materiais disponibilizados pela Adult Bible Study Guide e Sabbath School Personal Ministries, ambos sites oficiais da Igreja Adventista do Sétimo Dia.

4. As cores rosa (sig. sexualidade) e turquesa (Arte) originais não mais integram e hoje estão presentes as cores preta, em referência aos LGBTQIA+ mortos vítimas de HIV/AIDS, e marrom (pessoas pretas e pardas). As demais são vermelha (Vida), laranja (Saúde), amarela (Sol), verde (Natureza), azul (Serenidade) e roxa (Espírito). O Triângulo Rosa usado na Alemanhã nazista para identificar homossexuais, também é considerado simbolo de resistência na história.