Devido à precariedade de certas conjunturas sociais, algumas pessoas não têm o privilégio de defender neutralidade política, pois dependem da militância e do protagonismo civil para sobreviver de forma justa e igualitária


Por Rebecca Brothers | Adventist Today — Traduzido e adaptado por André Kanasiro para a revista Zelota

No ano passado eu me inscrevi em um curso na minha igreja. O curso se chama “Educação para o Ministério (EM)”. É um programa de quatro anos coordenado por um colégio episcopal, a Universidade do Sul. Os alunos do primeiro ano de EM estudam as Escrituras hebraicas; no segundo ano, o Novo Testamento; no terceiro ano, a história do cristianismo; e no quarto ano, teologia, ética e relações interreligiosas.

No fim dos quatro anos de EM, você deveria (idealmente) ter uma boa compreensão da sua fé e seu contexto bíblico, histórico e global. Você deveria (idealmente) ter uma ideia de como cumprir seu chamado a uma vocação ou a um ministério específico.

Eu tive minha primeira aula de EM no começo de setembro. Ela foi bastante padrão: os líderes explicaram o cronograma e apresentaram a bibliografia. “E mais uma coisa”, disse nosso líder. “Nada de política nas discussões”.

Eu tenho seguido essa regra na aula, mas ela me fez pensar sobre nossa inclinação por zonas “sem política”. Ela me fez pensar na linha entre o “pessoal” e o “político”, e no quão tênue e mutável é essa linha. Ela me fez pensar nas muitas pessoas que encontrei que dizem “não se envolver muito com política”.

Eu costumava ser uma dessas pessoas. Eu não me lembro por quê. Talvez eu me sentisse impotente para causar mudanças; talvez eu não enxergasse motivos para me envolver na luta de “outra pessoa”. Provavelmente os dois.

Então eu aprendi sobre privilégios, e quantos deles eu tenho — quantos obstáculos a menos eu enfrento na vida simplesmente por ser branca, cisgênero, fisicamente apta e com acesso a educação numa sociedade que dá prioridade a todas essas identidades. Essa lição me impactou pela primeira vez quando eu tive que ler o livro de Richard Wright, Notas de um Filho Nativo. Eu vou estragar o livro pra você: o protagonista, um homem negro de 20 anos chamado Bigger Thomas, mata acidentalmente uma mulher branca e se torna um fugitivo da lei.

Conforme eu lia Notas de um Filho Nativo, eu pensava, “Por que ele simplesmente não se entrega e explica a situação para a polícia? Tenho certeza de que eles entenderiam”.

E então, durante o discurso apaixonado de seu advogado no tribunal, eu percebi, “Ah… Isso não era uma opção. Bigger não tinha muitas chances de escapar da polícia, e não tinha muitas chances no sistema legal. Desde que nasceu, ele esteve preso nesse sistema que é enviesado contra ele — e seus ancestrais têm estado presos da mesma forma há gerações.”

Depois disso, eu comecei a me esforçar conscientemente para sair das minhas esferas, de maioria heterossexual, fisicamente aptas e cristã, e aprender com pessoas que representassem algum tipo de minoria — ou uma intersecção de traços de minorias. Conforme eu fazia isso, comecei a perceber que para alguns dos meus amigos, a existência é política — da mesma forma que era para Bigger. Ao falar disso eu penso na minha amiga, uma rabina lésbica que é portadora de deficiência. Penso em meu amigo que é um muçulmano palestino, na minha amiga que é uma mulher trans portadora de deficiência na Irlanda do Norte, e em meus amigos que são muçulmanos na Índia ou cristãos no Egito.

Nenhum deles tem o luxo de serem apolíticos. Sua presença na sociedade tem sido criticada, distorcida, demonizada, e às vezes simplesmente ignorada. Meus amigos precisam se envolver com política se quiserem ter acesso a banheiros públicos, ser parados no trânsito sem maiores problemas, ter um tratamento justo no sistema judiciário, ou ter a cortesia de serem chamados pelos pronomes que se adequam à sua identidade. Estes problemas não são novos para eles e para suas comunidades, mas o restante de nós ainda está tentando acompanhar a realidade deles.

Em um mundo mais feliz, não seria controverso admitir que os problemas que outras pessoas enfrentam, com base em alguma faceta da sua identidade, são sérios e reais. Seria uma questão simples admitir que “direitos iguais para os outros não significa menos direitos para você. Não é uma torta”. Não seria um problema reconhecer a existência dos outros, ao invés do nosso hábito de cobrir nossos ouvidos e cantar, “Lá lá lá, eu não consigo te ouvir, você não está mesmo aí”.

Mas nós, privilegiados, somos muito bons em ceder a este hábito. Nós somos bons em fingir que não há pessoas gays ou trans em nossas igrejas ou escolas, então não há necessidade de falar deles como se fossem verdadeiros seres humanos dignos de respeito — muito menos criar políticas que respeitem sua dignidade e seus direitos. Somos  bons em fingir que nossos estabelecimentos não precisam de portas, rampas e banheiros acessíveis, porque “isso nunca foi um problema antes”. Somos bons em ficar na defensiva e em transformar discussões sobre direitos e privilégios em jogos de superioridade. Somos bons em esquecer que, como certa pessoa disse, “Quando você está acostumado com privilégios, igualdade parece opressão”. Somos bons em elevar vozes individuais que dizem, “Eu sou membro de uma minoria, e não vejo qualquer necessidade de mudança” — vozes que confirmam nossas próprias crenças e não nos forçam a olhar para os padrões mais amplos e prevalentes de discriminação presentes naquela comunidade.

Quando dizemos que “não somos políticos”, nós falamos a partir de uma posição de privilégio. Nós assumimos que todas as pessoas estão tão bem isoladas dos efeitos de políticas públicas quanto nós estamos. Nós assumimos que sempre tivemos os direitos dos quais desfrutamos como resultado das campanhas de nossos antecessores — ou, quando nos esforçamos para sermos gratos por esses direitos, frequentemente paramos antes de imaginar, “Como eu posso ajudar a tornar esses direitos acessíveis para outros que ainda não os possuem?” E, com uma frequência alarmante, nós nos focamos exclusivamente em satisfazer as necessidades imediatas das pessoas — um abrigo para a noite, um agasalho, um almoço quentinho — mas não chegamos a defender as políticas e a legislação que ajudariam essas pessoas ao longo prazo. De alguma forma, esse tipo de ação é “político demais”. Quando tribunais, prefeituras e câmaras legislativas estão envolvidas, caímos fora.

Então, esse é meu desafio a você: seja político em nome dos que não têm o luxo de serem apolíticos. Veja seus estabelecimentos e sua cidade a partir dos olhos dos portadores de deficiências, e lute junto com essa comunidade pelas mudanças necessárias. Pegue a dor que você sente pelos cristãos em países de minoria cristã, e transforme-a em luta pelos direitos dos muçulmanos em países de minoria muçulmana. Busque as vozes dos imigrantes, ouça suas preocupações, e trabalhe com eles para preservar seus direitos e sua dignidade. Aprenda a enxergar “arquitetura hostil” — elementos colocados em espaços públicos, como espinhos, que buscam afastar a presença de moradores de rua — e incentive diálogos públicos sobre o que essa arquitetura diz a respeito das nossas prioridades e nossos valores como sociedade.

Nós que somos privilegiados temos o dever de amplificar as preocupações dos que estão correndo a mesma distância que nós com mais obstáculos. Temos o dever de examinar constantemente como o mundo à nossa volta foi construído conosco em mente — e usar essas percepções para agir em nome daqueles que não podem navegar nessas arquiteturas e sistemas e processos tão facilmente como nós. Nós temos o dever de ser políticos quando os direitos e a dignidade dos outros estão sob ataque, porque ações políticas podem ser a única coisa que vai salvá-los.

Esse trabalho será confuso e desconfortável. Ele vai nos forçar a sair de nossas identidades instintivas como NEMQ (isto é, pessoas que dizem “Não É no Meu Quintal”), e ao invés disso nos debruçar sobre propostas para a construção de abrigos para moradores de rua, e de restaurantes “Bom Prato”, e de clínicas de reabilitação em nossos bairros. Esse trabalho vai nos fazer reexaminar como priorizamos valores como propriedade e posição social. Ele vai nos fazer reexaminar nossas compreensões de gênero e pobreza e raça.

Mas para que serve um Evangelho que não vira nossos mundos de ponta cabeça? Para que serve um Evangelho que não nos motiva a ver Cristo nos famintos, nos sedentos, nos doentes, nos prisioneiros e nos estrangeiros?