O contexto histórico que abraçou Eunice Michiles como primeira senadora do Brasil refletia uma cultura de silenciamento e marginalização feminina, um discurso legitimado pela sociedade da época e expresso na literatura adventista


Série: As “mãos cooperadoras” de Eunice Michiles (parte 1)

“Eunice Michiles fala em comissão do Senado” (Foto: Arquivo do Senado; Fonte: Agência Senado).

Por Daniel Fernandes Teodoro1 | licenciado em História pelo UNASP-EC e em Geografia pela Faculdade de Educação São Luís. Participou da escrita da ESDA, trabalhou no Centro White Brasil e atualmente é Professor de Geografia do Ensino Fundamental e Médio.

Em 1979, Eunice Michiles, filha de um casal pastoral e criada pela educação adventista desde muito pequena, foi eleita a primeira senadora do Brasil.2 No mesmo ano, Olga S. Streithorst inaugurou uma seção na Revista Adventista intitulada “O Lar Ideal”, cujo objetivo era abordar assuntos relacionados à família e servir como um manual mensal de orientação às mulheres.3 Esta seção possivelmente surgiu devido à segunda onda feminista, que embalou o Brasil com a “revolução sexual” a partir da década de 1960.4 Além disso, desde o golpe civil-militar em 1964, a história política do país oscilou entre o recrudescimento ditatorial e aberturas pretensamente democráticas,5 algo muito importante para entender o contexto e o sentido da chegada de Michiles ao legislativo sob a legenda da Aliança Renovadora Nacional (ARENA) – partido de sustentação política da ditadura militar.

Michiles é uma mulher cuja trajetória transcende os arquivos oficiais da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), perpassando espaços sociais aparentemente contraditórios para uma mulher ideal na visão adventista; sua biografia, portanto, merece uma reflexão. Entendê-la pode revelar que tanto feminismo quanto representatividade política feminina podem ser de grande serventia, tanto para a IASD quanto para os militares. Cabe decifrar os sentidos desse feminismo à IASD, bem como a representatividade política de Eunice Michiles aos militares. Uma mulher cooperadora guiada por um feminismo que conservou a identidade adventista formada pelos valores do século 19.

Os silenciamentos da mulher e sua legitimidade

O racionalismo do século 19, através do discurso de que as mulheres eram biologicamente inclinadas às atividades domésticas, procurou definir estritamente o lugar de cada sexo, levando tal segregação ao seu ponto mais alto na Idade Contemporânea. Determinou-se, portanto, a casa às mulheres em seus respectivos deveres femininos, e a política aos homens, uma grande vantagem particular dentre as muitas.6 A exclusão feminina da política se fundamenta em concepções burguesas oriundas dos séculos 17 e 18, onde os homens eram responsáveis pela representação feminina na esfera pública.7 Essa dimensão temporal que se estende para além dos três séculos citados acima revela que o patriarcado é um fenômeno cultural de longa duração, ou seja, se encaixa entre velhos hábitos de pensar que são duros de se transformar.8

Entretanto, apesar dessas continuidades, no final do século 19, o movimento sufragista promoveu uma das primeiras rupturas quanto aos espaços destinados às mulheres. De caráter emancipatório e igualitarista, as sufragistas lutavam pela igualdade nos direitos civis entre os sexos, pelo acesso universal das mulheres à educação e, principalmente, pelo direito feminino ao voto.9 Baseada nos direitos naturais do ser humano, isto é, o direito à vida, à liberdade e à propriedade, as reivindicações sufragistas partiam da própria ontologia liberal e essencial atribuída a cada ser humano, inclusive às mulheres.10

Embora o cristianismo tenha favorecido muito a colonização patriarcal do mundo ocidental, a primeira onda feminista, em sua grande maioria, contribuiu com bases religiosas e até teológicas para o direito das mulheres. Susan Anthony, por exemplo, foi uma das figuras mais emblemáticas da primeira onda feminista; “sua atuação foi tão destacada que a emenda permitindo finalmente o voto feminino nos EUA recebeu seu nome (Emenda Anthony)”.11 É importante destacar que sua firmeza quanto à luta pelo direito das mulheres ao voto possuía fundamentos ligados à sua estrita educação quaker,12 pois para eles “a dominação masculina era uma manifestação do pecado”.13 Nesse sentido, pecado é entendido como uma distorção do que foi proposto por Deus como ideal. Portanto, o surgimento do movimento feminista, seja aquele atrelado a aspectos religiosos – ainda que libertários em certo sentido –, ou aquele ligado a concepções contraditórias da sociedade burguesa, apresenta uma compreensão essencialista do que é ser mulher. O feminismo burguês emerge a partir do discurso da igualdade civil em relação ao homem, enquanto o feminismo religioso entende essa relação hierárquica entre os sexos como uma consequência do pecado. Ambos discordam da inferioridade imposta às mulheres, mas através de padrões estabelecidos pela burguesia e por preceitos teológicos. Não questionam sobre o que é ser mulher, sobre como, ou o que ela deve fazer para ser aceita socialmente como “mulher de verdade”.14

É neste processo contraditório realizado no final do século 19 e início do 20, entre a ruptura dos espaços sociais destinados às mulheres e a continuidade dos seus respectivos deveres como mãe e/ou esposa, que reside a formação da identidade feminina dentro da IASD. Esta perpetua a tradição de séculos que vincula a mulher ao ambiente privado da vida familiar, pois embora permita que a mulher atue profissionalmente, não a permite se esquivar de suas obrigações familiares para a manutenção do “ideal bíblico”.15 Essa representação cultural que é legitimada pela prática das mulheres no lar não se trata apenas de um papel social a cumprir, mas possui um significado muito maior para as mulheres adventistas e famílias cristãs. Dentro de uma concepção conservadora a família tende a ser categorizada como um lugar privilegiado para a educação e transmissão de valores religiosos de uma geração para outra. É um microcosmo onde pai, mãe e filhos efetuam ações que simbolizam a maneira como Deus cuida da humanidade. Desse modo, qualquer mudança no modelo tradicional familiar é vista como ameaçadora aos fundamentos religiosos.16

Compreender essa relação hierárquica entre os gêneros dentro da identidade adventista é muito importante para a investigação historiográfica, sobretudo para entender a legitimidade dos silêncios sobre as mulheres nos documentos da IASD e a própria produção cultural feminina de aconselhamento ao silêncio.

Fontes adventistas

O Yearbook é um documento oficial da IASD em que anualmente se publicam os locais e as funções dos ministros, administradores e missionários ao redor do mundo. Com ele é possível mapear, ano a ano, cada função e local em que os pioneiros trabalharam ao longo de sua vida. O grande problema para a biografia das pioneiras adventistas é que sua história se inicia somente após o casamento, pois este documento se reporta a elas pelo nome completo de seus companheiros. Jessie Viola Rowley (1894–1962), por exemplo, foi uma das pioneiras responsáveis pelo trabalho médico-missionário realizado na região Norte do Brasil. Casou-se com Leo Blair Halliwell (1891–1967) e recebeu seu sobrenome.17 No entanto, o Yearbook a descreveu da seguinte forma: “Operam nas primeiras mil milhas do rio Amazonas e seus afluentes. L. B. Halliwell no comando, a Sra. L. B. Halliwell, enfermeira.” (grifo meu).18 Além da descrição do homem como comandante, o documento oculta a identidade feminina para destacar a figura masculina, o que faz das fontes um “oceano de silêncio” sobre as mulheres.19

Outro documento muito importante é a The Advent Sabbath Review and Herald (comumente chamada apenas de Review and Herald), pois se trata de um dos principais periódicos adventistas nos EUA desde o surgimento da IASD na segunda metade do século 19. Este documento, assim como o Yearbook, citou alguns pontos missionários no Brasil da seguinte maneira: “Sr. e Sra. Hans Mayr, da Escola de Treinamento Brasil, para a Missão Baixa Amazônia, Brasil.” (grifo meu).20 Hans Mayr (1905–2004) e Johanna Luisa Braüer Mayr (1903–1983) também foram missionários que contribuíram para a difusão da fé adventista ao longo do rio Amazonas no Norte do Brasil.21

Perceba que a questão se refere a pioneiros e pioneiras muito importantes para o desenvolvimento da fé adventista no país, portanto possuir informações da vida de cada um é de suma importância. E embora nomear as mulheres com os nomes de seus maridos pareça uma crítica trivial ou sem sentido, visto que para época tal ação era tida como normal, dentro das disputas de poder da memória isso é o que determina o apagamento das mulheres da história. Portanto, por mais que isso faça parte do espírito da época, os documentos precisam ser questionados:

O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo. […] qualquer documento é, ao mesmo tempo, verdadeiro […] e falso, porque um monumento é em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem. É preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar  esta construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos.22

Ou seja, toda esta montagem institucional das fontes – ainda que involuntária – para denominar Jessie Viola Rowley e Johanna Luisa Braüer após o casamento apenas como Sra. Leo Halliwell e Sra. Hans Mayr revela a imagem hierárquica das representações que a IASD intencionava transmitir ao futuro:

Os nomes não são apenas rastros a serem perseguidos. Eles não são neutros: traduzem relações de poder e hierarquias. […] Expressam formas de classificação social e disposições identitárias individuais, familiares ou grupais frente aos demais […]. Os nomes trazem impressos em si tradições, memórias e experiências vividas. Evidenciam formas de relacionar-se com o passado. A ele rendem homenagem e também projetam o que se espera do devir.23

Pelos poderes da memória institucional adventista, toda experiência de vida que as pioneiras tiveram antes do casamento foi apagada, ou pelo menos não foi transmitida – resta-nos apenas as conjecturas e os silêncios.

Contudo, o mesmo não pode ser dito sobre o que as fontes descrevem em relação às funções culturalmente estabelecidas às mulheres. As mulheres são entendidas como partes complementares ou amorosas cooperadoras dos homens, de forma que a honra masculina, pelo “amor fusional”, torna desnecessário o destaque feminino.24 A partir dessa perspectiva é curioso ler como Moysés Salim Nigri (1914–2010)25 descreveu sua esposa, Maria Alida Miss Baar (1904–1995): “Alida e meus filhos não me deram muito trabalho. Foram mãos cooperadoras, especialmente minha esposa que, depois de casada, jamais trabalhou de forma remunerada. Vivíamos unicamente com o que eu ganhava” (grifo meu).26 Sua fala exprime os significados representativos do lar ideal adventista, bem como a função feminina dentro dele. O homem é o provedor responsável por trazer sustento e cuidado à família, aquele cujas honras se aglutinam, e a mulher se encarrega dos trabalhos não remunerados; é a dona de casa, aquela que zela pela dignidade pública de seu esposo, o qual carece constantemente de seus agrados, pois “toda mulher, com raras exceções, está muito interessada em coletar receitas culinárias […] que agradem ao paladar do esposo”.27 É importante destacar que essa não é uma responsabilidade apenas das mulheres sem qualificação profissional, pois Maria Alida Miss Baar Nigri foi teóloga, professora de história, poliglota, preceptora e bibliotecária.28

Nesse raciocínio, “quanto deve ganhar mensalmente um rapaz, para ter condições de casar-se?”, perguntou a “moça curiosa” para a Revista Adventista na seção “Lar Ideal. Conforme demonstra a identidade adventista,

Depende do nível de vida a que ambos estão acostumados a levar em seu lar paterno. Se a moça, ao casar, notar que em seu novo lar não pode alimentar-se, vestir-se, calçar-se como dantes e nem ter o mesmo status que desfrutava anteriormente, ela vai sentir-se frustrada […] Antes de pensar em casar-se, o rapaz e a moça devem fazer um orçamento para ver se o salário dele é suficiente para arcar com as responsabilidades de chefe-de-família. (grifo meu)29

De acordo com a orientação, homem e mulher são estritamente definidos em uma relação de dependência, o que remonta à racionalidade harmoniosa da divisão sexual dos trabalhos, “ao homem, a madeira e os metais. À mulher, a família e os tecidos”.30 Porém, as mulheres também são associadas às “profissões de enfermeira, de assistente social ou de professora primária. Crianças, idosos, doentes e pobres constituem os interlocutores privilegiados de uma mulher dedicada às tarefas caritativas e de socorro”.31 Isso porque as profissões citadas referem-se às funções “naturais” de uma mãe ou de uma dona de casa. Interessante que, embora o Yearbook não cite o nome de Jessie Viola Rowley, sua função como enfermeira é lembrada: “Sra. L. B. Halliwell, enfermeira”.32 Isso é algo que Moysés Nigri também destacou ao comentar sobre a experiência de sua esposa com crianças, pois ela cooperou com seu trabalho de pastor ao cuidá-las:

Com a experiência que Alida ganhou ao trabalhar com crianças no Nordeste, foi possível organizar o evangelismo infantil na Igreja Central Paulistana. […] Sob a influência de um casal de missionários norte-americanos […] liderou o evangelismo infantil no território da Divisão Sul-Americana, auxiliada pelas irmãs Dilza Garcia e Neide Campolongo.33

Em outras palavras, faz parte do lar ideal que as “irmãs” sejam responsáveis pelas atividades infantis e pelo cuidado social para com os enfermos, não apenas porque são competentes ou experientes no que fazem, mas porque isso é subjacente ao papel cultural das mulheres na identidade adventista. Escusar-se dessas atividades significa um grande perigo aos valores da família ideal. Um exemplo disso pode ser demonstrado pelo relato de uma mãe publicado em maio de 1979 na Revista Adventista:

Sinto-me culpada de impaciência com os meus filhos. Quando chego do trabalho, à noite, a empregada me conta das mil e uma travessuras que as minhas três crianças de 2, 3 e 5 anos praticam durante o dia. Como resultado, castigo-as de imediato. Sei que isto não está certo. Peço sua orientação.34

Aqui é preciso observar a legitimidade que os papéis culturais, inclusive os silêncios, possuem entre as próprias mulheres adventistas da década de 1970, pois a procura pela orientação revela o valor que as representações da revista possuíam frente aos leitores. Afinal, a proposta da seção Família/Lar Ideal (seção da revista para a qual a mãe enviou sua dúvida) era justamente conservar as tradições e sanar dúvidas quanto às questões familiares.35 Em resposta:

transmito-lhe a orientação de Deus. Peça sua demissão do trabalho e fique em seu lar zelando dele e educando seus filhos. Dedique tempo também ao seu esposo. Pela sua cartinha notei que a subsistência do seu lar não depende do seu salário. Por que trocar as alegrias do convívio com seus pimpolhos pelos parcos cruzeiros que resultam desfavoráveis para a formação de uma vida equilibrada e saudável? Pare, medite e decida o melhor em favor deles. (grifo meu)36

Além de corroborar a hierarquia e os papéis culturais correspondentes a cada sexo dentro deste modelo familiar, essa prática é legitimada por uma orientação revestida de divindade. Ou seja, o valor do conselho é proporcional ao perigo que a família corre caso essa mãe – aquela cuja representação destina como maior responsável – continue a se escusar de suas obrigações, pois não se trata de uma advertência de “irmã para irmã”, mas de uma “orientação de Deus”. O valor da educação materna é enorme, pois dele é a responsabilidade de “ensinar a criança no caminho em que deve andar”.  Portanto, se na década de 1970 a “juventude adventista [estava] em perigo iminente de deixar-se envolver pelos costumes e práticas mundanas […] que se chama de Nova Moralidade”, é porque o papel da mulher estava sendo questionado.37

Fonte: Revista Adventista, janeiro de 1979, p. 43.
Fonte: Revista Adventista, maio de 1979, p. 40.

Entre os anos de 1960 e 1970 o Brasil experimentou a liberalização do prazer sexual feminino e um erotismo desconhecido até então. Com a “revolução sexual” a pílula anticoncepcional tornou possível relações sexuais livres, sem a preocupação da sífilis ou da aids. Além disso, o rock and roll e os hippies inauguraram um novo estilo de vida aos jovens, fatos que explicariam o fomento do tema na seção Lar Ideal, bem como a ação de outros periódicos sem nenhum parâmetro religioso.38

Em 1971, por exemplo, a revista Ele&Ela, em sinal de repulsa ao feminismo da época, publicou um artigo chamado “Homem com orgulho”, o qual dizia: “De uns anos para cá, ser macho é sinônimo de grosso, cafona e superado. As minorias se somam e formam um todo quando o assunto é derrubar o homem-homem”.39 Já em outro, intitulado “A mulher de verdade”, a revista trazia o relato de uma ex-militante feminista que abandonara o movimento. Sua fala descaracterizava os argumentos feministas acusando-as de mal-amadas e masculinas:

Em todas ou quase todas as líderes feministas com quem convivi nos últimos 3 anos, nunca vislumbrei qualquer sinal de verdadeira feminilidade. É verdade que muitas se pintam, algumas se vestem razoavelmente, poucas são felizes nas suas relações com os homens […] No fundo, há um ressentimento mal disfarçado em relação ao sexo masculino.40

Outros artigos ainda diziam:

A mulher deve ser a fêmea e assumir esta condição. Deve ser bonita, desejável, deve ser mãe. Deve cuidar da casa e dos filhos e esperar o marido de volta do trabalho bem disposta e arrumada. É exatamente para isto que ela existe. E, longe de diminuí-la, isto só pode engrandecê-la.41

Salvo as orientações divinizadas, as representações femininas do Lar Ideal não diferem muito do que era culturalmente aceito pelas revistas seculares da época. Assim como a revista Ele&Ela, a Lar Ideal criticou o movimento feminista em um artigo chamado “Women’s Liberation Movement”. Nele se enfatizou que, na “opinião da mulher cristã”, Simone de Beauvoir foi a principal responsável por espalhar ideologias contrárias às diretrizes cristãs. Além dela, Betty Friedman foi apontada como aquela que “não aceita o cristianismo”. Em suma, toda a discussão girava em torno das críticas que Beauvoir e Friedman fizeram à maternidade e aos deveres de uma mulher no lar, pois, entre as irmãs adventistas, ser mãe é uma benção e todas devem expressar louvor por desempenhar seu papel no lar como esposa. Afinal, “à sombra de um grande homem existe uma grande mulher”.42

Curiosamente, essas semelhanças entre a Lar Ideal e as representações seculares do que é ser homem e do que é ser mulher não foram escondidas. Sob as mesmas prerrogativas implícitas do artigo da revista Ele&Ela, “Homem com orgulho”, a Lar Ideal perguntou aos jovens: “No namoro, a quem cabe a conquista – à moça ou ao rapaz?”. Tradicionalmente ao homem, e “se os rapazes não-adventistas pensam assim, quanto mais nós!”.43 Ou seja, as representações adventistas não são apartadas do mundo como muitas vezes é transmitido pelos documentos da IASD, mas fazem parte de uma cultura que está em constante transformação como qualquer outra.

São tantas similaridades entre as revistas que é possível até misturar as perguntas de uma com as respostas de outra: “haveria algum problema de eu me casar com um rapaz que tem nível de estudo inferior ao meu? Eu já tenho faculdade e ele há muito tempo terminou o ginásio apenas”.44 Como já citado, “a mulher deve ser a fêmea e assumir esta condição”.45 Portanto, “via de regra, todas as discrepâncias produzem problemas. A moça sempre deveria ter o mesmo nível de estudo que o rapaz ou um pouco menor. […] A meu ver, não vale a pena tentar”,46 não porque a submissão a diminua, mas porque ela “só pode engrandecê-la”.47

Todos esses discursos, além de representarem muito bem os embates que as transformações causaram no país entre os anos de 1960 e 1970, também fazem parte de um regime político que usou tanto as continuidades quanto as rupturas culturais para legitimar um governo ditatorial. O contexto de abertura política que o regime militar simulou na década de 1970 surgiu como uma reação à pressão das reivindicações populares para forjar a pretensa legitimidade democrática do regime.48 Em um contexto de disputas e transformações político-culturais, a representatividade feminina de Eunice Michiles, principalmente após a declaração do Ano Internacional da Mulher pela ONU em 1975, emergiria como uma peça estratégica à vitória, mas cabe decifrar quais seus significados, e a quem essa vitória foi concedida.

Notas:

1. O presente artigo é resultado da reunião e da análise de fontes documentais pesquisadas nos acervos do Centro Nacional da Memória Adventista, do Centro White Brasil, da Revista Adventista e do Office of Archives, Statistics and Research entre 2018-2019, período em que participei do processo de escrita da nova edição da Encyclopedia of Seventh-day Adventist (ESDA), lançada em julho de 2020. No decorrer deste processo, enquanto pesquisava para escrever verbetes sobre as pioneiras do adventismo no Brasil, percebi que as fontes eram recheadas de silêncios (PERROT, 2005). Foram estes silêncios e, ao mesmo tempo, a necessidade de escrever verbetes para ESDA que me levaram a questionar sobre as representações da mulher nas fontes oficiais da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD). Dentre as biografias que escrevi, a que mais me chamou a atenção foi a de Eunice Michiles, pois foi uma das únicas em que as fontes me foram satisfatórias quanto a história de vida da mulher, e não da visão do marido sobre a esposa. Porém, apesar destes silêncios dificultarem o trabalho dos(das) historiadores(as), é preciso saber que eles são fundamentais para se compreender – não julgar (BLOCH, 2002) – as representações femininas, as quais são legitimadas pelas próprias mulheres adventistas

2. BARBOSA, Henrianne. Eunice Michiles: a primeira senadora do Brasil. s/ed. São Paulo, SP: 2006.

3. STREITHORST, Olga S. “Que haja paz em cada lar!”. Revista Adventista. v. 74, n. 1, p. 43-44, jan. 1979b.

4. PRIORI, Mary D. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. 2 ed. São Paulo, SP: Planeta, 2014.

5. NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. 1 ed. São Paulo, SP: Editora Contexto, 2014.

6. PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 7. ed. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 2017.

7. BRESCIANE, Maria S. A mulher e o espaço público. In: BRESCIANE, Maria S.; SAMARA, Eni M.; LEWKOWICZ, Ida. Jogos da política: imagens, representações e práticas. ANPUH/São Paulo: FAPESP, 1992.

8. BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. 2. ed. São Paulo, SP: Perspectiva, 1992.

9. CRUZ, Anette G. V. Os movimentos de liberação da mulher na França e na Itália (1970-1980): primeiros elementos para um estudo comparativo do novo feminismo na Europa e no Brasil. In: LUZ, Madel T. (Org.). O lugar da mulher. 1 ed. Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal, 1982, p. 33-57.

10. HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções, 1789-1848. 43 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019.

11. MEIRA, Vanessa R. V. O impacto do cristianismo na primeira onda do feminismo. In: Congresso Internacional da Faculdades EST, 2016, São Leopoldo. Anais […] São Leopoldo: EST, 2016. p. 419-428, p. 423.

12. “Movimento religioso de tradição protestante fundado pelo inglês George Fox em 1652. Destacaram-se como pacifistas, abolicionistas e igualitaristas de gênero. Lideraram e se envolveram em movimentos contra o tráfico de escravos e a escravidão, pela reforma das prisões, pela abolição da pena de morte e contra as guerras entre as nações” (MEIRA, 2016, p. 422).

13. MEIRA, 2016, p. 422.

14. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo.2 ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2009.

15. SOARES, Débora M.; SILVA, Liege O. L.; CAMPOS, Paulo F. S. Identidade de gênero: a representação da mulher na Revista Vida e Saúde na Segunda Guerra Mundial (1940-1945). Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, v. 6, n. 11, p. 142-160, jul. 2014.

16. SILVA, Eliane M. Fundamentalismo evangélico e questões de gênero: em busca de perguntas. In: SOUZA, Sandra Duarte de. Gênero e Religião no Brasil: ensaios feministas. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2006, p. 11-27.

17. HALLIWELL, Leo. Light in the jungle. 1 ed. New York, NY: David McKay Company, 1959.

18. SEVENTH-DAY ADVENTIST YEARBOOK.Washington, D.C.: United States: Review and Herald Publishing Association, 1947, p. 156.

19. PERROT, Michelle. As Mulheres ou os silêncios da história. 1. ed. Bauru, SP: EDUSC, 2005.

20. MEYERS, C. K. To the mission fields in 1927. The Advent Sabbath Review and Herald,v. 105, n. 3, p. 4-5, jan. 1928, p. 5.

21. LESSA, Rubens. Construtores de esperança:na trilha dos pioneiros adventistas da Amazônia. 1 ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2016.

22. LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003, p. 538.

23. WEIMER, Rodrigo de A. A gente da Felisberta: consciência histórica, história e memória de uma família negra no litoral rio-grandense no pós-emancipação (c. 1847 – tempo presente). 2013, 476 f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013, p. 329-330.

24. PERROT, 2005.

25. Moysés Salim Nigri foi o primeiro brasileiro a ocupar a vice-presidência na sede da IASD mundial. Ele escreveu um livro autobiográfico onde citou diversas informações sobre sua esposa. Esse tipo de fonte foi muito consultado para a escrita dos verbetes da ESDA; livros biográficos e/ou autobiográficos, cuja maioria foi escrita por homens. Um dos únicos livros biográficos que narra a vida de pioneiras a partir de uma ótica feminina foi escrito pela jornalista Henrianne Barbosa, que conta a história de vida de Eunice Michiles.

26. NIGRI, Moysés S. Sem fronteiras.1 ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014, p. 80.

27. STREITHORST, Olga S. Alimentação-saúde-destino. Revista Adventista.v. 74, n. 10, p. 15-16, out. 1979h., p. 15.

28. NIGRI, 2014.

29. STREITHORST, Olga S. Como “manobrar” seus pais. Revista Adventista. v. 74, n. 4, p.10-11, abr. 1979c, p. 11.

30. PERROT, 2017, p. 187.

31. PERROT, 2005, p. 252.

32. SEVENTH-DAY ADVENTIST YEARBOOK. Washington, D.C.: United States: Review and Herald Publishing Association, 1947, p. 156.

33. NIGRI, 2014, p. 69.

34. STREITHORST, Olga S. Women’s Lib. Revista Adventista. v. 74, n. 5, p. 40-41, mai. 1979d, p. 41.

35. STREITHORST, Olga S. “Que haja paz em cada lar!”. Revista Adventista.v. 74, n. 1, p. 43-44, jan. 1979b.

36. STREITHORST, 1979d, p. 41.

37. STREITHORST, Olga S. Do namoro ao casamento. Revista Adventista. v. 74, n. 6, p. 9-10, jun. 1979e, p. 9.

38. PRIORI, 2014.

39. Ibid., p. 184.

40. Ibid., p. 185.

41. Ibid.

42. STREITHORST, 1979d, p. 40.

43. STREITHORST, Olga S. Do namoro ao casamento. Revista Adventista. v. 74, n. 6, p. 9-10, jun. 1979e, p. 9-10.

44. STREITHORST, Olga S. Ano internacional da criança no contexto da vida familiar-I. Revista Adventista. v. 74, n. 8, p. 40-41, ago. 1979f, p. 41.

45. PRIORI, 2014 p. 185.

46. STREITHORST, 1979f, p. 41.

47. PRIORI, 2014 p. 185.

48. REZENDE, Maria J. A ditadura militar no Brasil: repressão e pretensão de legitimidade: 1964-1984. Londrina: Eduel, 2013; NAPOLITANO, 2014.