Para compreender a relação entre fascismo e religião no Brasil de 2022 é necessário olhar o desenvolvimento histórico e o papel das igrejas na reprodução social brasileira


Esse texto é o aprofundamento de uma discussão iniciada em 2018, quando publicamos uma versão do texto “Fascismo como religião e eleições no Brasil em 2018” na revista argentina Analéctica, em outubro, antes do segundo turno. A hipótese inicial era a semelhança entre as estruturas ideológicas que acompanharam historicamente a ascensão do fascismo italiano no início da década de 1920, e os movimentos que constituíam a campanha do candidato Jair Messias Bolsonaro, à época filiado ao Partido Social Liberal e sob o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Durante os anos seguintes, a tese amadureceu em uma série de artigos, dos quais alguns foram reunidos e publicados em um livro pela Editora Pajeú, Fascismo como religião. A hipótese inicial se transformou propriamente em uma tese que agora queremos trazer para analisar os preparativos para as eleições de outubro deste ano, marcadas não pela tão maltratada ideia de “polarização”, e sim pelo acirramento da luta de classes em um período de crise – não apenas brasileira, mas mundial, nos limites do próprio sistema capitalista em suas contradições.

Contudo, temos um filtro em nossa abordagem: olhar especificamente as manifestações do acirramento da luta de classes no interior do movimento evangélico brasileiro. Para isso, precisamos deixar claros alguns pressupostos que acompanham a análise do nosso tema. Assim, seguiremos nosso texto em três movimentos: 1. uma discussão teórica sobre a relação entre religião e reprodução social; 2. uma retomada histórica do desenvolvimento do evangelicalismo no Brasil; e 3. a ascensão do fascismo em parcelas sociais e sua articulação com a experiência religiosa.

O fascismo é um fenômeno social moderno, capitalista, determinado pela mobilização de parcelas sociais (especialmente de classes médias) em um movimento reacionário que se sustenta em um nacionalismo mítico constituído pela negação de seus inimigos – internos e externos. Não tem um programa claro, a não ser a manutenção e alimentação de sua própria mobilização constante contra os grupos ou organizações entendidas como causa de todos os males. É com essas características que José Carlos Mariátegui1 apresenta a ascensão do fascismo na Itália ao início da década de 1920, definindo o ânimo desse movimento como misticismo reacionário e nacionalista. Em sua crítica ao que seria a teoria fascista, comenta que o fasci “pretendia ser, mais que um fenômeno político: um fenômeno espiritual”.2

Organizado em brigadas, o fascismo não surge quando se assenta sobre as instituições executoras do poder político – como o Estado. Ao contrário, é graças à fascistização de parcelas sociais que é viabilizada a chegada de um fascista ao poder. Esse processo, portanto, não pode ser discutido “de cima para baixo”, analisando o fenômeno a partir do pico de sua manifestação, mas reconstituir ou encontrar suas bases, suas causas, suas raízes. Nesse sentido, trata-se de olhar para processos históricos e sociais que garantem condições para a ascensão do fascismo. 

De todo modo, como dissemos, nosso recorte dentro da totalidade de processos sociais é o âmbito religioso. Buscaremos elencar aspectos gerais da articulação entre religião e fascismo no interior da reprodução social brasileira. É muito importante destacarmos isso, pois, como comentamos no livro Fascismo como religião, não podemos enfrentar o problema com ingenuidade, imaginando que a questão seja de uso instrumental da religião em favor do fascismo ou “mero ‘abuso’ da fé alheia para enganar pessoas ignorantes ou inocentes. A questão relevante é: quais as condições que tornam possível as conexões entre fascismo e cristianismo dentro da nossa reprodução social?”.3

Ideologia, religião e reprodução social

A base de toda sociedade é sua forma de organização de modo a garantir as condições necessárias para que a vida se mantenha “amanhã”. Coletivamente utilizamos meios e recursos disponíveis para desenvolver um produto social total, que, ao ser distribuído e consumido, precisa garantir que no dia seguinte a reprodução da vida seja possível e a sociedade permaneça. A essa organização chamamos de “modo de produção”, que implica uma divisão social do trabalho e uma coordenação dessa divisão social do trabalho. À continuidade desse processo chamamos de reprodução social.

Não é possível comer, beber, morar, trabalhar, se deslocar, ir ao culto ou ao encontro familiar sem que haja constantemente a manutenção da reprodução social e estejam garantidas as condições dessa reprodução. Por essa razão, afirma-se que o modo de produção é o ponto de partida para a análise social. Ele determina se todas as demais realizações no interior da sociedade serão ou não possíveis. É uma condição necessária para que estejamos vivos, para que façamos história. Marx resume o conteúdo da seguinte maneira:

“A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual.”4

A atualização diária e cotidiana da estrutura econômica sustenta e dá condições para o desenvolvimento da própria sociedade, em condições ambientais que se alteram, contingências que exigem inovações, invenções ou que criam conflitos e novas situações não planejadas que tensionam a própria estrutura. A reprodução social, portanto, precisa se transformar em certo sentido, mas se manter em outro. Constantemente precisa garantir as condições para a produção e reprodução “no dia seguinte”, mas não tem como necessidade a manutenção do modo de produção, ou seja, do modo como está organizada a divisão social do trabalho, pois esta pode ser em determinado momento uma das causas da impossibilidade de se garantir as condições necessárias para a reprodução social.

Todo esse jogo de tensões entre transformação e manutenção gira em torno da base da estrutura econômica. Mas ele também envolve toda a sociedade, com suas instituições, formas de organização e as formas de consciência que nascem dela, nela se desenvolvem e sobre ela se dirigem para interpretar a realidade. Esse amplo campo de relações sociais e formas de consciência é o âmbito ideológico ou das disputas ideológicas.

Ideologia, portanto, não pode ser entendida em um sentido ingênuo ou negativo. Não se trata de uma “mentira” ou “falsidade” teórica ou discursiva. Nem é uma questão de preferências de indivíduos, que optam por suas “ideologias” de forma atomizada e isolada. No quadro que estamos apresentando, ideologia diz respeito aos conteúdos implicados na manutenção, reforma ou revolução de uma determinada estrutura. Trata-se, portanto, do projeto de sociedade implícito ou explícito nas produções sociais – sejam elas teóricas ou institucionais, sejam como formas de consciência social ou formas de organização social. 

Qual é o tipo de comprometimento de uma ideia, um valor, uma instituição, teoria e etc., em relação a determinada estrutura? Está engajada em qual objetivo ou com qual objetivo? Independentemente das “vontades” ou “preferências” dos agentes, como essas ideias, valores, instituições, teorias e etc., se articulam com a estrutura econômica vigente? Esse é o ponto da análise e da crítica ideológica.5

É importante que destaquemos isso, pois comumente se opõe “ciência” a “ideologia”, e mesmo “religião” a “ideologia”. Opõe-se um campo que seria “neutro” ou impassível de uma crítica objetiva a outro “contaminado” pela ideologia, por algo aparentemente ruim e negativo. Esse campo aparentemente neutro fica, portanto, abstraído ou descolado da reprodução social na qual está inserido, que dá condições para sua própria existência e para a qual serve de uma maneira ou outra. Façamos uma reflexão sucinta sobre a religião e a ciência aparentemente “neutras” ou sem ideologia para determinados grupos humanos para explicarmos o que pretendemos dizer com a expressão “fascismo como religião”6.

No início do século 20, Max Weber já indicava que a ciência ocupa no Ocidente o lugar da religião como explicadora do mundo e legitimadora da explicação do mundo. Em síntese, Jessé Souza explica isso muito bem:

“a ciência herda o prestígio da religião no contexto pré-moderno e assume, em boa parte, pelo menos, o papel de explicar o mundo moderno. Não existe tema que seja discutido na esfera pública de qualquer sociedade moderna que não invoque a ‘palavra do especialista’ que fala pela ciência. Assim, o potencial da ciência de produzir efetivo aprendizado individual e coletivo está ligado e muitas vezes condicionado, por força de seu prestígio público, a servir de instância legitimadora e primeira e decisiva trincheira da luta social e política pela definição legítima de ‘boa vida’ e ‘sociedade justa’. Em outras palavras: não existe ordem social moderna sem uma legitimação pretensamente científica desta mesma ordem.”7

É propriamente esse o lugar privilegiado de “fiel da balança” ou de neutralidade diante das disputas ideológicas. Contudo, à medida que opera como legitimadora da ordem, a própria produção científica revela seu caráter ideológico, implicada na manutenção da estrutura econômica. Ou seja: a própria ciência está implicada, sempre, prática e efetivamente, na manutenção, reforma ou transformação de uma estrutura, e serve, nesse sentido, a um ou outro projeto de sociedade – e nele pode ou não ser explícita e conscientemente engajada. Na expressão de Jessé Souza assumindo a teoria weberiana, este é o “caráter bifronte da ciência: tanto como mecanismo de esclarecimento do mundo quanto como mecanismo de encobrimento das relações de poder que permitem a reprodução de privilégios injustos de toda espécie”.8

Para a religião nesse espaço de neutralidade vale o mesmo: ela pode tanto ser mecanismo de esclarecimento e transformação da estrutura vigente, quanto de encobrimento e manutenção da reprodução social. Em sua função última, a religião ocupa o papel de legitimadora ou não dos efeitos da reprodução social na vida das pessoas. É nesse sentido, por exemplo, que será discutido pela Escola do Departamento Ecumênico de Investigações (DEI) o papel da religião em relação aos sacrifícios e à exigência de sacrifícios feitos pela economia neoliberal, tornando ética e religiosamente aceitável a morte e o roubo da vida da maior parte dos seres humanos em nome da reprodução do capital – objetivo de nosso modo de produção.

Assim, ao trabalharmos fascismo como religião, não tratamos de uma “irracionalidade” do fascismo ou de seus elementos “mágicos”, e sim seus mecanismos ou “disfarces estruturais”9, como definido por Hugo Assmann. Em nossa abordagem, “fascismo como religião é entendido como a forma de consciência social que nasce de uma necessidade de justificar a violência contra a vida humana realizada por esse movimento [fascista] na manutenção do nosso modo de produção”10.

O caráter geral do evangelicalismo no Brasil

Nosso problema é compreender as condições que tornaram possível a articulação entre fascismo e evangelicalismo no Brasil para, por fim, realizar uma crítica ao “fascismo como religião” no sentido que indicamos em nossa argumentação anterior. Para isso, como indicamos, não se trata de entender o desenvolvimento de ideias, doutrinas ou valores em si mesmos, mas partir da base que condiciona as próprias formas de consciência social que tensionam, conflitam e amadurecem no interior da reprodução social. Por isso, é particularmente importante considerarmos a evolução do movimento evangélico brasileiro. Uma argumentação mais extensa pode ser lida no segundo capítulo e no anexo do livro Fascismo como religião (2020).

Apesar de suas trajetórias particulares, as diferentes denominações evangélicas no Brasil têm um movimento de expansão similar. As igrejas reformadas e adventistas, que chegaram ao país na segunda metade do século 19, eram constituídas por imigrantes e por um longo período ficaram relativamente restritas a esses grupos, que compuseram as classes médias da sociedade. Mesmo as diferentes denominações pentecostais ao início do século 20 chegam ao país por meio de imigrações e sob projetos eugenistas de modernização baseados no “embranquecimento” da população, sob o interesse de uma parcela da burguesia nacional que buscava instalar pequenas indústrias e mesmo mecanizar produções existentes para ganhos em produtividade.

O século 20 é caracterizado por uma grande marcha de “modernização” da sociedade brasileira, com diferentes etapas e transformações no processo produtivo. A assimilação do modo de trabalho capitalista – isto é, a troca da força de trabalho por um preço na forma de salário – não absorvia toda a população, que progressivamente perdia suas terras para latifúndios demarcados sob a propriedade privada, não conseguia competir com a produção mecanizada no campo e era obrigada a ir para terrenos menores e menos férteis ou migrar para as cidades, que cresciam sem planejamento em torno da industrialização (que, novamente, não absorvia produtivamente a chegada massiva dessa mão de obra). 

Além disso, o abandono e marginalização da população negra que fora escravizada agravava ainda mais as condições de subvida, trabalhos informais, improdutivos, e mesmo superexploração de trabalho. O “exército industrial de reserva” (a massa de força produtiva não utilizada, ou seja, pessoas sem acesso às condições necessárias para sua própria reprodução na sociedade capitalista: salário que garanta a cesta básica para a reprodução da vida familiar) apenas aumentava e se aglomerava nas cidades. Tensões no campo, crescimento urbano desordenado e condições desequilibradas de produção marcaram nossa sociedade e nosso subdesenvolvimento do período (e até hoje).

É no decorrer dos conflitos políticos, econômicos e sociais do período que surgem as condições para a Teologia da Libertação, que enfrenta as situações de fome, precarização e pobreza fruto das contradições da modernização capitalista, especialmente no campo (no caso católico). É também nesse contexto que as igrejas evangélicas começam a se expandir, prioritariamente nas cidades, agregando pessoas a partir do território que ocupam (centro ou na periferia) e as classes sociais alocadas de maneira diferente no espaço urbano. 

Enquanto no campo há uma luta popular pela terra e para diminuir os efeitos do capitalismo naquela população, nas cidades há uma luta pela sobrevivência e pela criação de novos laços sociais, já que os tradicionais foram destruídos. No ambiente urbano, em que cada novo habitante é um desterrado que migra sozinho ou com seu núcleo familiar reduzido, não há garantia de emprego, condições de vida, moradia etc. Com os laços sociais quebrados, novos espaços institucionais se tornam refúgio e garantia de acesso a condições de vida, comunitárias e de solidariedade. As igrejas evangélicas veem um crescimento de membresia significativo e progressivo. A evangelização e o novo modo de vida das cidades criam condições propícias para esse novo movimento espiritual. É uma religião adequada à cidade e ao novo modo de organização da reprodução social.

A partir dos anos de 1980, todas as denominações (mas, em absoluto, as pentecostais) crescem vertiginosamente com a consolidação do modo de vida urbano e, na primeira década dos anos 2000, encontram o “pico” de sua curva de crescimento. É interessante como este é um padrão nas diversas denominações. As novas dinâmicas de oferta de serviços (mesmo que improdutivos) absorvem melhor a mão de obra, e a facilitação de crédito mediante a financeirização da economia global garante um aumento relativo de renda, na capacidade de consumo etc. (fenômeno por vezes chamado de ascensão da classe C ou de formação de novas classes médias). As políticas do governo petista foram muito importantes para esse processo. 

Sem maiores explicações das políticas específicas ou mesmo da conjuntura que tornava possível as condições para aumento de renda e facilitação de crédito, a resposta disponível era a relação religiosa de oferta e retorno, na qual os fiéis realizavam suas orações, dízimos e doações sob a promessa de que Deus traria novas bençãos – que estavam se concretizando dentro de certas condições históricas, sociais e econômicas específicas. Como comentamos em Fascismo como religião:

“A aquisição de bens de consumo e mesmo a possibilidade de um micro, pequeno ou médio empreendimento de perseverar em um determinado momento de conjuntura nacional favorável, assim como políticas de governo e de Estado que promoviam a possibilidade de ascensão social (mensurada e comemorada pelo padrão de consumo) estavam ligadas às bênçãos de Deus e ao mérito individual, legitimado e explicado pela moral individualista e pela justificativa para acumulação de riquezas. Dessa maneira, a cada conquista no mercado realizada por um indivíduo, havia o reforço do papel institucional das igrejas e da fé que tornaram possível esse êxito. As condições históricas, os fatores produtivos e a macro-economia eram papo exclusivo de especialistas e internos aos governos, que desenvolvia suas estratégias sem se dar conta de que uma massa contente por suas realizações não devotavam a graça alcançada para a conjuntura e sabendo o que é que está acontecendo, e sim à liderança religiosa e a autoridade divina, que recompensava o esforço de cada pessoa que se submetia às leis do mercado capitalista.”11

As mudanças significativas na vida das pessoas, a consolidação geracional nas cidades, e ainda o papel de garantia de laços sociais onde não existem, assim como a oferta de serviços voluntários onde nem o Estado e nem o Mercado chegam, acompanham esse processo de agigantamento evangélico. A posição das igrejas é, nessa dinâmica, de defesa da manutenção das relações produtivas e sociais nas quais está fundada, em relação às quais está adequada e com as quais se potencializa ou se potencializava até então. Sua função institucional é de manutenção das relações sociais capitalistas oriundas dos processos de modernização do século 20. Com ela, também temos os elementos teológicos e doutrinários, disputados em torno da manutenção, reforma ou revolução da ordem vigente.

As igrejas de centro, mais tradicionais, escolarizadas e compostas por pessoas com acesso garantido ao mercado formal, são mais burocratizadas e têm na manutenção de sua ordem seu terreno de disputas e garantia de permanência da própria instituição. Já nas igrejas de periferia, o crescimento é mais desordenado e não planejado, mas também mais potente e exponencial. Cresce das bordas para o centro, até se institucionalizar em grandes convenções e organizações, que passam a gerir ou dar as diretrizes para as igrejas das periferias. Há uma mudança no modo de coordenar o crescimento da igreja, mas sem a estrutura fundamentalmente burocratizada, o que torna determinante o papel da liderança carismática que sabe administrar sua influência.

Assim, vemos que a estrutura produtiva dá as condições para novas dinâmicas espirituais e organizações eclesiásticas. A nossa fé se transforma historicamente e responde às necessidades e às condições de nossos tempos. Do mesmo modo, as igrejas são compostas por pessoas que nascem de uma determinada sociedade fundada em seu modo de produção, em sua estrutura produtiva, e por isso não estão livres dos problemas gerados pelas transformações nas dinâmicas produtivas que comentamos ao início. Pelo contrário, estas transformações as constituem. As tensões de manutenção, reforma ou revolução requerem uma posição dos fiéis, das lideranças e das instituições em suas próprias organizações.

O fascismo, as igrejas e o fascismo como religião

Se as igrejas são constituídas por pessoas que dependem e estão socialmente organizadas em torno de um modo de produção que dá condições para a existência das pessoas e das próprias igrejas, os conflitos, tensões, transformações e desenvolvimentos que ocorrem na sociedade fazem parte da vida dos fiéis e da instituição religiosa – queira ela ou não. Diariamente ela precisa responder a questões e tomar posições diante da estrutura produtiva e das demais organizações sociais nesta fundadas. A partir das definições que indicamos em nosso primeiro tópico, diariamente ela precisa tomar uma posição ideológica (consciente disso ou não, querendo ou não).

É claro que essas decisões não partem do nada. Elas precisam ser coerentes com a tradição e com a comunidade existente. Ambas são fruto do desenvolvimento histórico brasileiro e sua reprodução social. Respondem, portanto, dentro de certas organizações de classe, raça, gênero, cumprindo certos papéis fundamentais para que a própria reprodução social seja possível no dia seguinte. Há internamente uma organização institucional que acompanha em termos gerais a própria organização de classes da sociedade na qual a igreja está imersa.

O fascismo é histórica e caracteristicamente um movimento de classe média.12 Classe média, no caso, não diz respeito à renda em um primeiro momento, mas à posição de monopólio por certos privilégios no âmbito da “superestrutura”: na gerência de instituições e empresas, no acesso à escolarização formal e qualificada, com tempo e incentivo a lazer e cultura etc. Trata-se da classe que aspira acesso ao privilégio de controle de capital, restrito às elites que são proprietárias dos meios de produção e coordenam direta e indiretamente a divisão social do trabalho. Contudo, a classe média não acessa o topo da pirâmide social, pois sob a coordenação da divisão social do trabalho sua função é privilegiada em relação à classe de trabalhadores pobres e miseráveis, mas necessariamente precisa estar subordinada à classe responsável pela coordenação da divisão social do trabalho.

Assim, a classe média trabalha pela garantia e manutenção de seus privilégios (sempre em risco, especialmente em situações de crise), enquanto sonha em ser capitalista. Tem uma melhor capacidade e qualidade de consumo, melhor renda, acesso a serviços mais qualificados dentro da dinâmica de mercado capitalista – enfim, precisa lutar por sua posição enquanto prepara sua prole como uma ninhada de “campeões”. O desejo por ascensão social (entendida como crescimento da renda e de cargos mais altos nas funções de gestão) orienta a própria reprodução dessa classe, que, para querer acessar o lugar do capitalista, precisa implicitamente defender que este lugar seja mantido. Mesmo para manter seu privilégio, ela precisa defender a propriedade de quem garante seu cargo bom ou sua renda mais alta dentro da divisão social do trabalho.

A chamada ascensão da classe C ou ampliação da classe média dentro das dinâmicas produtivas recentes e sob a organização urbana já “modernizada” (ainda que desequilibrada) acompanha também o crescimento das igrejas. Setores das periferias com maior poder de consumo, acesso a espaços de privilégio e disputando com a “velha classe média” entram na dinâmica de classes médias com um grau muito maior de fragilidade. Não é preciso enumerar a quantidade de conflitos deflagrados entre esses grupos e as contradições ideológicas que decorrem dessas novas situações. Uma nova classe, que aparece incluída no acesso aos privilégios de uma divisão social do trabalho em uma sociedade desequilibrada e desigual, luta por seu espaço – o que implica ter que decidir se mantém a defesa da propriedade privada, do acesso restrito a privilégios, do monopólio sobre os meios de produção, ou se busca sua transformação ou revolução.

A ocorrência de crises e de frustrações no interior das classes médias (seja a “nova”, seja a “velha”) requer a busca por uma solução para tornar viável a realização de seus projetos. Aqui entra o espaço de manobra do fascismo enquanto um movimento que funciona, como indica Mariátegui, não como partido, mas como máquina de guerra. Como explicamos em nosso livro já citado:

“Fascismo é um fenômeno do mundo capitalista. Seja na Itália ou Alemanha na primeira metade do século XX, seja o bolsonarismo ou o golpismo na Bolívia no século XXI. É um movimento destruidor. Não é um partido, como falava Mariátegui na Itália dos anos de 1920, é uma “máquina de guerra”. Uma guerra social cujos inimigos são os opositores e os dissidentes, comumente taxados de “comunistas” (mesmo que não o sejam). Toda solução se reduz à potencialização da violência, permitida aos participantes do movimento e negada a toda outra parcela social, que pode ser ‘legitimamente’ combatida se aparecer como violenta ou como risco à ordem social. Militarização, religião, ritos simbólicos em torno de bandeiras, gestos e imagens são fundamentais. Como escreveu Mussolini em um artigo certa vez, os brigadistas fascistas tinham aprendido nas trincheiras o valor fundamental das religiões: a obediência.”13

A defesa da ordem social é, na verdade, a defesa dos privilégios ou das condições de privilégio ameaçadas de alguma maneira. A solução não é direcionada para o modo de produção e para a organização da divisão social do trabalho, mas para um inimigo comum ao qual é direcionada a culpa de todos os males, de todas as frustrações, da impossibilidade da ascensão planejada no interior da sociedade capitalista. As classes médias, portanto, é onde o fascismo cresce e se dissemina – podendo ou não ser aderido pela elite, com apoio explícito ou implícito.14

A aproximação entre o evangelicalismo e o fascismo não se dá primeiramente por uma organização doutrinária ou de valores, mas sob o próprio desenvolvimento interno da sociedade brasileira e sua divisão social do trabalho. As bases estão no processo produtivo e na organização das classes sociais e de seus conflitos. A tão temida “luta de classes” não é um projeto marxista, e sim um recurso teórico para compreender os efeitos das contradições das divisões sociais de trabalho e o modo como essas divisões são coordenadas (e por quem). 

O fascismo é fruto do acirramento da luta de classes e entra na igreja por meio dele. A instituição, contudo, age consciente ou inconscientemente, explícita ou implicitamente, em defesa ou não do modo de produção que sustenta as classes e seus conflitos. No geral, dadas as posições das igrejas e de seus membros, dos privilégios garantidos a quem defende a manutenção da estrutura produtiva, a defesa da ordem se torna a primeira e majoritária reação. O maior tensionamento de toda essa dinâmica fortalece o fascismo e, sob seu modo de organização, a adesão das igrejas a ele.

Marátegui comenta, por exemplo, que na Itália dos anos de 1920 o fascismo, em seu movimento violento constante e sem programa claro, aproveitando a crise generalizada e as frustrações sociais nas classes médias e entre operários, era capaz de agregar sob o misticismo reacionário e nacionalista grupos de todos os tipos e ideais. O próprio movimento não tinha um apego religioso específico; pelo contrário, de “republicano, anticlerical e iconoclasta em suas origens, o fascismo se declarou mais ou menos agnóstico ante o regime, e à Igreja quando se tornou um partido”.15 O que importa é a mobilização contra o inimigo (comunista, claro) em defesa da ordem.

A escalada fascista aumenta o número de vitimados, assassinados, de violência e perseguição. Suas ações precisam, portanto, passar por um tratamento de “ética” e “moral” para serem aceitáveis às massas. O papel desempenhado pelas religiões, nesse momento, é fundamental. Assim, aproximam-se do fascismo garantindo espaços privilegiados nas trincheiras internas contra os dissidentes e opositores, contra as ameaças selecionadas como culpadas pelos males do mundo. Em defesa da fé, da pátria e da família, marcham na briga pelos privilégios e pela manutenção da ordem social “benéfica”.

Os sacrifícios humanos são justificados pela necessária ação da mão de Deus na purificação da nação. Um projeto de sociedade se passa por um projeto divino, a palavra das lideranças pela voz de Deus. O eleito escolhido como líder na Cruzada fascista precisa ser, nesse sentido, um Messias.

Em 2022 essas relações estão mais que escancaradas. O genocídio programado (por parte das elites e do governo fascista que faz o cálculo de morte em uma gestão de guerra contra seu próprio povo) e o genocídio consentido (de parcelas populares que aceitam explícita ou implicitamente a aparente “inevitabilidade” da violência e legitimam a sabotagem contra a vida)16 da pandemia não interrompeu a força do fascismo. Um terço da população está efetivamente engajado na defesa do movimento fascista. Parcela majoritariamente composta pela classe média, que ocupa os lugares privilegiados na administração e gerência das instituições. Com o monopólio dos mecanismos de produção cultural (desde postos em universidades, escolas até os meios de comunicação), ela tem maior poder na disputa ideológica propriamente dita.

A campanha fascista de 2018 apelava para a defesa da Pátria, da fé e da família. Em 2022, para se manter vivo, o movimento nacionalista e reacionário precisa potencializar sua ofensiva. Sua posição precisa ser de perseguir ou caçar dissidentes, assim como sua ameaça maior: o comunismo. Para que suas ações possam ser mais violentas, explícitas e ininterruptas, ela precisa insuflar a necessidade da guerra. O anticomunismo é seu último recanto.

Obviamente, o anticomunismo não diz respeito a quem efetivamente é comunista. O mecanismo do anticomunismo funciona como legitimador da perseguição, seja de quem for. Basta a taxação de “comunista”. Claro, esse precisa ser seu inimigo, dado que é o grupo que explícita e declaradamente se opõe à estrutura econômica estabelecida, que busca uma revolução no modo de produção que requer necessariamente uma transformação nas demais organizações sociais. A bandeira comunista coloca em questão a necessidade de desestabilizar a ordem vigente, e isso interfere na vida de todas as pessoas – em especial das classes que possuem algum privilégio. Logo, atacar o comunismo dá duas vantagens ao movimento fascista: 1. realizar seu projeto de manutenção e fortalecimento da estrutura econômica vigente; 2. disseminar o medo como combustível para a aparente necessidade da violência que promove.

Mais uma vez, todos esses processos precisam de justificação moral. A aliança com as religiões populares é fundamental, portanto. No caso das igrejas evangélicas, sua composição histórica e social, a forma como se insere e se beneficia da reprodução social brasileira, facilitam sua aproximação com o fascismo. Somem-se a isso as disputas internas próprias das dinâmicas institucionais (tema que tratamos no artigo “Mudar as igrejas: para quê?”) e uma histórica influência da teologia estadunidense que se tornou ferramenta doutrinária anticomunista no período da Guerra Fria, e temos condições ótimas para que a ferramenta de perseguição se institua – contando ainda com o apoio direto ou indireto de liberais e progressistas que não se identificam como comunistas, mas que não percebem as dinâmicas que temos tratado até aqui.

Nesse sentido, e por fim, o papel das igrejas aumenta nessas eleições. A necessidade de justificar a manutenção do fascismo coloca as instituições religiosas em um lugar privilegiado nas disputas ideológicas dentro do acirramento da luta de classes. Desempenhando sua função de legitimação moral da violência escalada e das perseguições, da subida de tom e, como gostariam muitos dos que compõem o fascismo brasileiro, de um golpe cívico-militar, o caráter religioso do fascismo precisa ser reforçado.

Notas:

1. Intelectual peruano que, estando na Itália durante a década de 1920, vivenciou a ascensão do fascismo e publicou vários artigos para jornais, revistas e folhetins italianos e peruanos sobre a realidade política do período.

2. Ver MARIÁTEGUI, José C. As origens do fascismo. Editora Alameda, São Paulo – SP, 2010, p. 309.

3. Ver LIMA, Bruno R. Fascismo como religião. Edirota Pajeú, São Paulo – SP, 2022, p. 7.

4. Ver MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política (1859). Editora Expressão Popular, São Paulo – SP, 2008, p. 47. Grifo nosso.

5. Ver nossos artigos “Sobre ideologia”, tradução de um texto de Franz Hinkelammert e “Bíblia e Ideologia”.

6. Ver LIMA, Bruno R.; PIZA, Suze. Neoliberalismo e conservadorismo brasileiro. Editora ICL, São Caetano – SP, 2022.

7. Ver SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: Editora Leya, 2015.

8. Ver SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: Editora Leya, 2015, p. 18.

9. Ver ASSMANN, Hugo, A idolatria do Mercado: ensaios sobre economia e teologia. Editora Vozes, 1989 , p. 305.

10. Ver LIMA, Bruno R. Fascismo como religião. Edirota Pajeú, São Paulo – SP, 2022, p. 8.

11. Ver LIMA, Bruno R. Fascismo como religião. Edirota Pajeú, São Paulo – SP, 2022, pp. 86-87.

12. REICH, Wilhelm. A psicologia das massas do fascismo. Martins Fontes, São Paulo – SP, 1998. O segundo capítulo, em especial, tem um tópico específico sobre a composição de classes da base do fascismo, na qual se destaca a classe média como base do movimento em suas diferentes expressões em diferentes países. Um fenômeno próprio do capitalismo.

13. Ver LIMA, Bruno R. Fascismo como religião. Edirota Pajeú, São Paulo – SP, 2022, p. 26.

14. Ver nosso artigo Fascismo como religião e eleições no Brasil em 2018.

15. Ver MARIÁTEGUI, José C. As origens do fascismo. Editora Alameda, São Paulo – SP, 2010, p. 310.

16. A respeito dos conceitos de “genocídio programado” e “genocídio consentido”, ver o artigo “A irracionalidade do mercado total, a ideologia conservadora brasileira e a legitimação do genocídio durante a pandemia”.