A ideologia, como compromisso implícito ou explícito com uma estrutura, precisa ser entendida como consciência falsa para ser útil a uma sociedade livre


Por Franz Hinkelammert1 | Excerto extraído da introdução ao livro de Franz Hinkelammert, Ideologías del desarrollo y dialéctica de la história, do qual suprimimos os dois últimos parágrafos, que têm como objetivo apresentar a estrutura e as teses fundamentais da obra. Texto original: HINKELAMMERT, Franz. “Introducción”. Em: Ideologías del desarrollo y dialéctica de la história. Ediciones Nueva Universidade/Universidad Católica del Chile: Santiago, 1970, pp. 9-11.

“Pessoas distorcidas na água” (Foto: ilustrativa)

A discussão sobre o problema do desenvolvimento na América Latina tem se ampliado cada vez mais nas últimas décadas. Começando com abordagens bastante economicistas, passou para a discussão das estruturas sociais no processo de desenvolvimento e das estruturas políticas, chegando a atualmente abordar cada vez mais a problemática do desenvolvimento como um problema global vinculado a todas as estruturas da sociedade e com a consciência cultural dentro da qual estas se desenvolvem. Sem menosprezar a análise das estruturas propriamente destas, o problema chave parece ser a formulação de uma consciência social e cultural adequada ao processo estrutural do desenvolvimento. Com respeito a esse problema, falaremos das ideologias do desenvolvimento. Entendemos que tais ideologias são parte integrante do próprio processo de desenvolvimento e que têm uma importância especial. Embora não se possa reduzir esse processo a um processo ideológico, torna-se cada vez mais evidente que as ideologias de desenvolvimento podem ser uma espécie de gargalo para a mudança da sociedade subdesenvolvida para uma sociedade em vias de desenvolvimento. Por essa razão, apresentamos o seguinte estudo.

Antes de entrar na problemática mesma, é conveniente esclarecer alguns pontos prévios que podem justificar a abordagem geral e o uso de certos conceitos básicos. Se empregamos o conceito de ideologia, ele deve ser entendido em um sentido um pouco mais limitado que o usual. Comumente, ideologia é um conceito usado em relação a fenômenos parciais e gerais da sociedade ao mesmo tempo. Nesse sentido, fala-se de ideologias de pessoas, de ideologias de grupos (por exemplo, ideologias de monopólios) e ideologias que se referem à sociedade como um todo. Para nós, interessa aqui apenas esse último ponto. Nesse sentido, pensamento ideológico é um pensamento que se refere à sociedade como totalidade e que a explica. Por outro lado, ideologia não é tampouco pura explicação. Não é somente teoria, mas é uma teoria pensada em relação com a sociedade como uma totalidade, olhando-a a partir do ponto de vista da ação de suas estruturas. A ideologia, portanto, pode ser conservadora, reformista ou revolucionária. Como conservadora, afirma e estabiliza a estrutura social existente tal qual é; como reformista, foca mudanças dentro da estabilidade dessas estruturas, e como revolucionária tende a negar às estruturas existentes sua legitimidade, com o objetivo de mudá-las por outras ou destruí-las por completo. Nesse sentido, o pensamento ideológico é sempre um pensamento comprometido, mesmo que muitas vezes não se apresente como tal. Isso vale, por exemplo, para as abordagens positivistas ou ainda técnicas das estruturas sociais que conscientemente negam o compromisso com certas estruturas, mas que de fato implicam em uma tomada de posição frente a elas.

No sentido exposto, a ideologia é um fenômeno que acompanha necessariamente a estrutura e que guia tanto os processos de sua estabilização como de sua mudança. Partindo de tal definição, não podemos aceitar a distinção cômoda entre teoria e ideologia em um sentido taxativo, que dá à teoria um caráter de ciência e de exatidão, e à ideologia um caráter pré-científico e ambíguo. Nossa abordagem será distinta. Entendemos a teoria como parte integrante da ação da estrutura e a ideologia como explicação do compromisso implícito dessa teoria. A ideologia, portanto, é científica exatamente no mesmo grau que a teoria, e o grau de racionalidade de ambas reproduz com exatidão o grau de racionalidade da estrutura. A diferentes estruturas, portanto, correspondem diferentes teorias e ideologias, ou, para dizer em outras palavras, existe necessariamente uma homologia entre esses distintos níveis.

Disso decorre que é possível falar de tipos de teoria e tipos de ideologia em relação com uma dada estrutura. Nem todas as teorias ou ideologias são compatíveis com qualquer estrutura. A vigência de uma estrutura implica a vigência das teorias e ideologias correspondentes. Isso não exclui, é claro, o surgimento de teorias e ideologias que não correspondam à estrutura vigente. Ao contrário, a tomada de consciência das contradições internas de uma estrutura, com suas teorias e ideologias implícitas, leva necessariamente ao surgimento dessas teorias e ideologias não correspondentes. Mas esses novos pensamentos somente entram realmente em vigência quando conduzem à mudança da estrutura. A correspondência, assim, tem duas faces: à estrutura lhe corresponde certos pensamentos, mas ao mesmo tempo a certos pensamentos correspondem certas estruturas. Contradições de uma estrutura vigente, a tomada de consciência dessas contradições, o nascimento de novos pensamentos não correspondentes à estrutura e a revolução conseguinte da estrutura descrevem a dinâmica da história.

Por todas essas razões, é possível abordar as ideologias como tipos. Nascem como tipos junto à estrutura correspondente. Isso nos permite distinguir entre os pensamentos individuais e os pensamentos tipos. Essa distinção é fundamental para a análise que se segue. Se é verdade que todo pensamento não pode nascer a não ser como pensamento de um indivíduo, pode-se considerá-lo como contribuição ao pensamento tipo correspondente à estrutura. Apenas nesse último sentido nos interessarão os pensamentos individuais. Consequentemente, nossa abordagem se distingue essencialmente da abordagem do historiador ou do biógrafo. O historiador seguirá o pensamento individual em todos os passos para determinar seu desenvolvimento em função do pensador. O historiador individualiza um pensamento. Para nós, trata-se do contrário. O pensamento individual é considerado como contribuição ao nascimento do pensamento tipo e unicamente nos interessam as expressões individuais dos autores que expressam contribuições dessa índole. Nosso estudo, assim, não pretende apresentar uma história de pensamentos individuais. Não pode e não quer ser isso. Pretende na verdade uma abordagem de pensamentos tipos que reproduzem e mudam estruturas. 

Por isso podemos prescindir por completo de uma pesquisa das intenções individuais dos autores. Portanto, nossa interpretação não tem por que ser correta no sentido do historiador. Interessa-nos exclusivamente o efeito de um pensamento e sua conexão com a estrutura vigente em relação com a qual exerce sua influência. Apenas esses efeitos nos indicam os marcos categoriais dentro dos quais uma estrutura existe e entra em ação ou chega a ser mudada. O pensamento individual não é mais que a ponte para a construção desses marcos categoriais, e não o próprio marco categorial. A ideologia vigente, contudo, é esse marco categorial, que não é redutível a nenhum pensamento individual. Só pode ser entendido como o compromisso implícito ou explícito de certos pensamentos com certas estruturas. Como consequência, apenas pode haver tantos marcos categoriais quantas estruturas houver, ao passo que pode existir um sem-número de diferenças sutis entre si.

Conceber a ideologia nesses termos significa estabelecer uma diferença entre ideologia estéril e ideologia como consciência falsa. Mas essa diferença tampouco pode ser totalmente taxativa. Definimos a ideologia como o compromisso implícito ou explícito com uma estrutura. Enquanto à estrutura lhe corresponde uma ideologia determinada, esta tem uma função de estabilização. Essa função nunca pode desaparecer, pois toda estrutura é contraditória e, portanto, exposta ao perigo da perda de tal estabilidade. Mas como estrutura contraditória ou conflitiva, qualquer estrutura tem o destino de ser superada. Isso significa que, nesse sentido, a ideologia sempre e necessariamente é consciência falsa. Isso nos obriga a recolocar o conceito que tinha Marx da ideologia como consciência falsa. Marx vinculou a consciência falsa com estruturas sociais alienadas e capitalistas às quais contrapunha a possibilidade de uma ordem social definitiva em relação com a qual a consciência pode ser puramente afirmativa e, consequentemente, perder seu caráter ideológico. 

Na atualidade, já é impossível conservar uma concepção desse tipo. O próprio pensamento de Marx deu origem a novas ideologias socialistas que de acordo com seu próprio critério não podem ter outra denominação que o de consciência falsa. O critério de consciência falsa, consequentemente, perde sua especificidade, e com ela a capacidade para distinguir diferentes abordagens da estrutura. Não há e não pode haver estruturas sem ideologia, ou seja, sem consciência falsa no sentido de Marx. Se agora se quer devolver ao conceito de falsa consciência sua especificidade, é preciso ir além do conceito de Marx. A superação da consciência falsa já não pode ser um ato definitivo que é realizado mediante a revolução total, mas que se converte em um esforço contínuo e permanente de mudança e em uma luta contínua em favor da conscientização que se contrapõe à ideologização. 

Com isso, muda também o conceito da nova sociedade. Não pode ser o conceito de uma ordem definitiva e nem de uma estrutura determinada, mas somente a exigência de uma remodelação da sociedade em termos tais que seja a mais adequada possível para esse esforço permanente de desideologização. Isso leva a repensar o conceito de democracia socialista. Unicamente nesses termos a ideologia como consciência falsa pode voltar a ter especificidade. Isso permite, então, distinguir entre sociedades ideologizadas e sociedades livres. Mas essa liberdade já não é definida por uma estrutura e sua ideologia correspondente, e sim pelo esforço de desideologização ao qual a estrutura social dá lugar.

Notas:

1. Economista, filósofo e teólogo alemão radicado na América Latina desde 1963 (Chile, Guatemala e Costa Rica). Participou dos debates e da formulação da Teoria da Dependência e dos debates da Teologia da Libertação, sendo o principal expoente da chamada “Escola do DEI” e do eixo “economia-teologia”. Vencedor da primeira edição do Prêmio Libertador al Pensamiento Crítico (Venezuela, 2005) e da premiação Arquileo Echeverría (Costa Rica, 2003), foi laureado com títulos de Doutorado Honoris Causa pela Universidad Nacional de Costa Rica (2002), Universidad Bolivariana de Chile (2007), Universidad de La Habana (2012) e Universidad de Cuyo (2015).