O Mercado é o principal responsável pela pobreza mundial, e não será o responsável por extingui-la


Por Vandana Shiva1 | Artigo publicado originalmente na Revista Pasos, do Departamento Ecuménico de Investigaciones (San José, Costa Rica), n. 124, março-abril de 2006.

“Uma rua da favela” (Foto: Eliseu Visconti, 1890).

O artigo principal de 14 de março de 2005 da Time Magazine foi dedicado a “como acabar com a pobreza”. Baseava-se em um ensaio de Jeffrey Sachs, “The End of Poverty” [O fim da pobreza], de seu livro com o mesmo título. As fotos que acompanham o ensaio retratam meninos sem casa, catadores de lixo em aterros, usuários de heroína. São imagens de pessoas descartáveis, pessoas cujas vidas, recursos e meios de vida foram arrancadas por meio de processos de exclusão brutais e injustos, que engendram pobreza para a maioria e prosperidade para poucos.

O lixo é o dejeto de uma sociedade de descarte – as sociedades ecológicas nunca tiveram lixo. Os meninos sem casa são consequência do empobrecimento das comunidades e famílias que perderam seus recursos e meios de vida. São imagens da perversão e das externalidades de um modelo de crescimento insustentável, injusto e sem qualquer equidade.

Em meu texto “Staying Alive” [Mantendo-se viva] havia me referido a um livro intitulado Poverty: the Wealth of the People [Pobreza: riqueza da gente], no qual um escritor africano traça uma distinção entre a pobreza como subsistência e a miséria como carência. É útil separar o conceito cultural de uma vida simples e sustentável entendida como pobreza da experiência material da pobreza como resultado da expropriação e da carência.

A pobreza percebida como tal a partir de uma perspectiva cultural não necessita ser uma pobreza material real: as economias de subsistência que satisfazem as necessidades básicas por meio da autoprovisão não são pobres no sentido carencial do termo. Contudo, a ideologia do desenvolvimento as declara pobres por não participar da forma predominante na economia de mercado, e por não consumir bens produzidos no mercado mundial e distribuídos por ele, ainda que estejam satisfazendo suas próprias necessidades por meio de mecanismos de autoprovisão.

O povo pobre é percebido como pobre se come painço (cultivado pelas mulheres) ao invés de porcarias processadas que são produzidas e distribuídas de forma mercantil pelos agronegócios globais. São vistas como pobres se vivem em hebitações feitas por elas mesmas a partir de materiais ecológicos como o bambu e o barro em lugar de fazê-lo em casas de cimento. São vistas como pobres se usam roupa feita à mão a partir de fibras naturais no lugar de sintéticas.

A subsistência percebida culturalmente como pobreza não implica necessariamente em uma baixa qualidade de vida física. Pelo contrário, como as economias de subsistência contribuem para o crescimento da economia da natureza e para a economia social, garantem uma elevada qualidade de vida em termos de alimentos e água, sustentabilidade dos meios de vida e uma robusta identidade e significado social e cultural.

Por outro lado, a pobreza de um bilhão de pessoas famintas e de um bilhão de pessoas com déficit nutricional, vítimas da obesidade, adoece tanto a pobreza material como cultural. Um sistema que cria a negação e a doença, enquanto acumula trilhões de dólares de megabenefícios para os agronegócios, é um sistema arquitetado para criar a pobreza para as pessoas. A pobreza é um estado final, não um estado inicial de um paradigma econômico, o qual destrói os sistemas ecológicos e sociais que mantêm a vida, a saúde e a sustentabilidade do planeta e das pessoas.

E a pobreza econômica é somente uma das formas da pobreza. A pobreza cultural, a pobreza social, a pobreza ética, a pobreza ecológica, a pobreza espiritual são outras formas de pobreza com maior relevância no assim denominado Norte rico que no Sul, denominado pobre. E essas outras pobrezas não podem ser apagadas com dólares. Necessitam de compaixão e justiça, cuidados e formas de compartilhamento.

Pôr fim à pobreza requer conhecer os mecanismos pelos quais ela é criada. De todo modo, Jeffrey Sachs considera a pobreza como o pecado original2 quando declara: “Há poucas gerações, quase todo o mundo era pobre. A Revolução Industrial criou novos ricos, mas grande parte do mundo foi deixada para trás.”

Essa é uma história da pobreza completamente falsa e não deve ser a base para uma história da pobreza. Jeffrey Sachs entendeu errado. Os pobres não são os que ficaram para trás, mas os que são empurrados para fora e excluídos do acesso a sua própria riqueza e seus próprios recursos.

Os “pobres não são pobres por serem vadios ou porque seus governos são corruptos”. São pobres porque outros se apropriaram de sua riqueza, destruindo sua capacidade de criá-la. As riquezas acumuladas pela Europa foram baseadas nas riquezas tomadas da Ásia, África e América Latina e Caribe. Sem a destruição da rica indústria têxtil da Índia, sem a aparição do comércio de especiarias, sem o genocídio dos povos originários americanos, sem a escravidão africana, a Revolução Industrial não teria criado novas riquezas para a Europa ou para os Estados Unidos. Foi a violenta absorção dos recursos do Terceiro Mundo e dos mercados do Terceiro Mundo que criou a riqueza no Norte – mas simultaneamente criou a pobreza no Sul.

Dois mitos econômicos facilitam a separação desses processos intimamente ligados: o crescimento da opulência e o crescimento da pobreza. Em primeiro lugar, vê-se o crescimento econômico apenas como crescimento do capital. O que passa despercebido é a destruição da natureza e da economia de subsistência das pessoas que criam esse crescimento. As duas “externalidades” do crescimento, criadas de maneira simultânea – a destruição do meio-ambiente e a criação da pobreza –, são vinculadas imediatamente de forma incidental, não aos processos de crescimento, mas entre si. Afirma-se que a pobreza cria a destruição do meio-ambiente. E se oferece a doença como remédio: o crescimento resolverá os problemas da pobreza e da crise do meio ambiente, aos quais inicialmente deu origem. Essa é a primeira mensagem da análise de Jeffrey Sachs.

O segundo mito que separa a opulência da pobreza é supor que se você produz o que consome, você não está produzindo. Essa é a base na qual são traçados os limites da produção para as contabilidades nacionais que medem o crescimento econômico. Ambos os mitos contribuem para a mistificação do crescimento e do consumismo, mas ainda assim escondem os processos reais que criam a pobreza.

Em primeiro lugar, a economia de mercado dominada pelo capital não é a única economia: não obstante, o desenvolvimento se baseou no crescimento da economia de mercado. Os custos invisíveis do desenvolvimento foram a destruição de outras duas economias: a dos processos da natureza e a da sobrevivência das pessoas. Ignorar ou descuidar dessas duas economias vitais é a razão pela qual o desenvolvimento tornou-se uma ameaça de destruição ecológica e uma ameaça à sobrevivência humana, ambas permanecendo, porém, como “externalidades negativas escondidas” do processo de desenvolvimento.

No lugar de se ver como resultado da exclusão, as vítimas destas externalidades são apresentadas como “deixadas para trás”. No lugar de se ver como os que pagam o maior preço de um crescimento injusto sob a forma de pobreza, são apresentados erroneamente como aqueles que não foram tocados pelo crescimento. Essa falsa separação entre os processos que criam a opulência e os que criam a pobreza encontra-se no coração da análise de Jeffrey Sachs. Por isso suas receitas agravarão e aprofundarão a pobreza no lugar de pôr fim a ela.

O comércio e a troca de bens e serviços sempre existiram nas sociedades humanas; não obstante, estavam sujeitos às economias da natureza e das pessoas. A elevação do domínio do mercado e do capital criado pelo ser humano à posição de princípios organizadores supremos levou nossas sociedades a descuidar e destruir os outros dois princípios organizadores – a ecologia e a sobrevivência – que mantêm e sustentam a vida na natureza e a sociedade.

As economias e os conceitos modernos de desenvolvimento cobrem apenas uma parte ínfima da história da interação humana com a natureza. Durante séculos, os princípios da sustentabilidade proporcionaram às sociedades humanas a base material para a sobrevivência, obtendo seus meios de vida diretamente da natureza através de mecanismos de autoprovisão. Os limites da natureza eram respeitados e demarcavam os limites do consumo humano. Na maioria dos países do Sul, uma grande quantidade de pessoas continua obtendo seu sustento da economia da sobrevivência, que permanece invisível ao desenvolvimento orientado para o mercado.

Todas as pessoas em todas as sociedades dependem da economia da natureza para sua sobrevivência. Quando o princípio organizador da relação entre sociedade e natureza é sustentável, a natureza se oferece como propriedade comum. Ela converte-se em um recurso quando os benefícios e a acumulação se tornam princípios organizadores e ditam imperativamente a exploração dos recursos para o mercado.

Sem água limpa, solos férteis e colheitas e diversidade botânica, a sobrevivência humana não é possível. Essa propriedade comum foi destruída pelo desenvolvimento econômico, dando lugar à criação de uma nova contradição entre a economia dos processos naturais e a economia de sobrevivência, porque as pessoas privadas de suas terras e meios de sobrevivência tradicionais por parte do desenvolvimento são obrigadas a sobreviver em uma natureza cada vez mais degradada.

As pessoas não morrem por falta de renda. As pessoas morrem por falta de acesso aos recursos. Também aqui Jeffrey Sachs erra, quando diz: “Em um mundo de abundâncias, bilhões de pessoas são tão pobres que suas vidas estão em perigo.” Os indígenas na Amazônia, as comunidades montanhesas no Himalaia, os camponeses cujas terras não foram expropriadas e cujas águas e biodiversidade não foram destruídas pela dívida para criar uma agricultura industrial, possuem riqueza ecológica, ainda que não ganhem um dólar por dia.

Por outro lado, mesmo com cinco dólares por dia, as pessoas são pobres se precisam comprar os produtos mais básicos por preços elevados. Os camponeses indianos, transformados em pobres e empurrados para a dívida durante as décadas passadas para criar mercados para as custosas sementes e produtos agroquímicos por meio da globalização econômica, estão pondo fim a suas vidas aos milhares.

Quando são patenteadas as sementes e os camponeses têm que pagar um trilhão de dólares estadunidenses sob a alcunha de royalties, sua pobreza aumenta em um trilhão de dólares. As patentes médicas aumentam os custos dos medicamentos para AIDS de US$ 200 para US$ 20.000, e os medicamentos para o câncer de US$ 2.400 a US$ 36.000 por um ano de tratamento. Quando se privatiza a água e as corporações mundiais ganham um trilhão de dólares estadunidenses por transformar a água em um bem negociável, os pobres aumentam sua pobreza em um trilhão de dólares.

Os movimentos contra a globalização econômica e o mau desenvolvimento são movimentos para pôr fim à pobreza, pondo fim às exclusões, às injustiças e à insustentabilidade ecológica, raízes da pobreza.

Os cinquenta bilhões de dólares estadunidenses de “auxílio” do Norte ao Sul são um dízimo dos quinhentos bilhões de dólares que fluem do Sul ao Norte sob o conceito de pagamento de juros e outros mecanismos injustos da economia global, impostos pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional. Com a privatização dos serviços essenciais e a globalização injusta imposta por meio da Organização Mundial do Comércio, transforma-se os pobres em mais pobres.

Os camponeses indianos estão perdendo anualmente vinte e seis bilhões de dólares estadunidenses pela queda de preços agrícolas devido ao dumping e à liberalização do comércio, resultados de uma globalização injusta que está fazendo com que empresas tomem conta da comida e da água. Mais de cinco bilhões de dólares estadunidenses serão transferidos pelo povo pobre aos países ricos, apenas pela comida e pela água. Os pobres estão financiando os ricos. Se levássemos a sério o “pôr fim à pobreza”, teríamos que pôr fim seriamente aos sistemas injustos e violentos que para criar riqueza criam pobreza, roubando dos pobres seus recursos, meios de vida e renda.

Jeffrey Sachs deliberadamente passa por cima desses atos de “tomar” e apenas fala em “dar”, porque a doação significa um mero 0,1% do que o Norte “toma”. Pôr fim à pobreza é mais uma questão de tomar menos do que de adicionar uma quantidade insignificante ao que se dá. Para transformar a pobreza em história, é necessário primeiramente elaborar uma história real da pobreza. E Sachs entendeu tudo errado.

Notas:

1. Física, filósofa e militante ambientalista indiana de relevância internacional. Diretora da Fundação de Pesquisas em Ciência, Tecnologia e Ecologia (Nova Déli, Índia) e diretora do Fórum Internacional Sobre Globalização.

2. Temos uma dupla referência de Vandana Shiva quando apresenta a pobreza como “pecado original” na sentença de Jeffrey Sachs. O primeiro, e mais claro, é à tradicional “teologia da queda” (formulada de modo consistente e hegemonizada a partir de Agostinho, e modernizada com o protestantismo expresso por Lutero) que responsabilizaria toda a maldade existente no mundo por uma herança natural originada na desobediência de Adão e Eva na narrativa do Éden (Gn 2—3). A linha tênue dessa teologia é que desloca todo efeito negativo das relações sociais à natureza humana tomada como essencialmente pecaminosa (ou, se preferirmos, má), de modo que constantemente se corre o risco da naturalização dos problemas sociais que criamos em nosso modo de organizar coletivamente a vida e, portanto, uma inércia em buscar soluções efetivas – mesmo que possíveis. A segunda referência é ao capítulo 24 do livro 1 d’O Capital, de Karl Marx. Após encerrar a discussão lógica sobre o processo de produção do capital no capítulo 23, Marx anexa uma discussão histórica que busca desmistificar a noção de “acumulação primitiva” que é assumida e pressuposta pela economia política burguesa. A ideia de que o capital sempre esteve acumulado e que apenas foi criado um novo modo de produzir esse capital, “desempenha na economia política aproximadamente o mesmo papel do pecado original na teologia. Adão mordeu o fruto e, com isso, o pecado se abateu sobre o gênero humano” (MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. 2ª ed. São Paulo: Boitempo – 2017, p. 785). A ideia de acumulação primitiva justifica a propriedade privada dos meios de produção e a imensa desigualdade entre trabalhadores e capitalistas, de modo que: “De fato, a legenda do pecado original teológico nos conta como o homem foi condenado a comer seu pão com o suor do seu rosto; mas é a história do pecado original econômico que nos revela como pode haver gente que não tem nenhuma necessidade disso […]. E desse pecado original datam a pobreza da grande massa, que ainda hoje, apesar de todo o seu trabalho, continua a não possuir nada para vender a não ser a si mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham deixado de trabalhar” (Idem, ibidem). Nota do tradutor.