No Chile da década de 1970, o caráter “apolítico” do cristianismo refletia os mesmos mecanismos da ideologia burguesa para legitimar as contradições sociais, tornando-se irrelevante e inviável à transformação social


Por Pablo Richard | teólogo e biblista chileno, foi cofundador do Departamento Ecumênico de Investigações (DEI), na Costa Rica. Texto1 traduzido e adaptado por André Castro à revista Zelota.

“Pregando a Cruz: Não se pode servir a Deus e ao dinheiro (Mateus 6.24)” (Por Adolfo Pérez Esquivel, 1992).

“50 anos depois”: Introdução de André Castro

No ano seguinte à publicação deste texto (1973), a experiência política que criaria as condições para o surgimento do primeiro grupo de Cristãos pelo Socialismo foi derrotada por uma sanguinária ditadura militar. Essa ditadura foi o laboratório das políticas de austeridade neoliberais que hoje se efetivam no Brasil. São textos de uma outra época, um momento de expectativas e apostas com o futuro. Tivemos a impressão, pelos menos por um curto espaço de tempo, de que o socialismo finalmente chegaria ao poder de forma democrática e não violenta, mas a burguesia mostrou novamente que não tem problema algum com a barbárie. Se, quando esses textos foram produzidos, vivia-se uma efervescência revolucionária em toda a América Latina, hoje estamos enfrentando a mesma barbárie que sempre nos afrontou, mas sem o ânimo de classes e sem a construção real de uma transformação radical. A experiência chilena produziu diversas novidades, e a intensa relação de cristãos, sacerdotes e leigos com a construção do socialismo talvez tenha sido uma das mais importantes.2

O texto é uma leitura de conjuntura feita por Pablo Richard, que foi um teólogo chileno de primeira importância para a Teologia da Libertação (TdL); ele estaria entre os fundadores do Departamento Ecumênico de Investigações (DEI), e publicaria uma vasta obra de teologia bíblica nos anos seguintes. Sua interpretação abaixo explica como as novidades do Concílio Vaticano II são na realidade atualizações que encobrem as milenares estruturas de dominação católicas, agora se organizando para caber dentro da ideologia burguesa moderna. É um texto antifetichista por excelência, negando o discurso vigente e demonstrando que a materialidade revela outra coisa. E é exatamente na vida material, na vida real dos homens e mulheres, que ele encontra o poder e a importância histórica da fé cristã. A racionalidade socialista não é nada além da aceitação das coisas como são na realidade, acompanhada da decisão corajosa de estar ao lado dos que querem a renovação do mundo, a revolução. 

Não há dúvidas de que os tempos são outros; os ares que aqueciam os pulmões que clamavam por revolução parecem ter se esfriado. Como o profeta que anuncia que o exílio não vai acabar, e que devemos plantar árvores e fazer famílias no meio do cativeiro, vivemos como se nos faltasse o ar. Em Richard, ao menos temos uma memória de como era viver enquanto havia esperança.

Introdução

O processo de construção do socialismo no Chile, na sua atual fase de desenvolvimento, tem gerado uma série de polêmicas e estudos sobre o conflito ideológico e a mobilização política. Nesse contexto, queremos indicar a problemática do cristianismo no interior desse processo de articulação de interesses de classe e restruturação do poder social. Entendemos que o cristianismo, para além das aparências, se articula como elemento constitutivo da ideologia burguesa dominante. Se isso é verdade, o cristianismo significa um bloqueio estrutural e profundo ao processo de construção do socialismo, e uma força oculta que se mobiliza em prol do sistema estabelecido.

O problema permanece oculto e sem análise, posto que a ideologia burguesa encobre sua aliança estratégica com o cristianismo, reduzindo-o a um âmbito “espiritual” e “apolítico”. Os movimentos de esquerda, por outro lado, movidos pela urgência de encontrar nos cristão aliados táticos na revolução, também ocultam esse problema, reduzindo o cristianismo ao âmbito da consciência privada.

A amplitude e a complexidade de um estudo sobre a articulação ideológica do cristianismo no contexto atual de luta política nos obriga a ficar nos objetivos e limites do nosso trabalho. Estamos propondo dois objetivos que complementam um ao outro:

  • Primeiro: demonstrar o caráter ideológico de um tipo de pensamento cristão e teológico atual, que tenta definir a “especificidade cristã” em uma proposta “apolítica” e “espiritual”.
  • Segundo: buscar um caminho de reflexão teológica a partir da racionalidade histórica da práxis social da luta de classes. O cristianismo encontrará nessa racionalidade socialista um novo horizonte histórico, e também a sua verificação, na medida de sua desideologização e articulação significativa com o atual processo revolucionário.

Teologia e racionalidade da ideologia burguesa 

Uma das características fundamentais do pensamento teológico católico das últimas décadas tem sido a busca por sua própria identidade. O crescente reconhecimento da “autonomia do tempo” tem levado o pensamento teológico a voltar-se sobre si mesmo na busca da “especificidade cristã”, retornando às suas fontes bíblicas, patrísticas e litúrgicas. A institucionalidade eclesial quer renunciar ao seu poder temporal, de tipo feudal e clerical, e deseja, frente ao “mundo”, ocupar o lugar que lhe corresponde e prestar o serviço específico de sua missão “espiritual”. O Concílio Vaticano II3 foi a maior expressão desse esforço de renovação da Igreja Católica. Esse movimento de renovação, concretamente aqui no Chile, tem gerado uma “nova” forma de “consciência política cristã” e uma “nova” mentalidade sobre a relação socioeconômica da nossa sociedade. Para analisá-la, estudaremos uma produção teológica4 produzida recentemente, que entendemos como um resumo claro e representativo desse movimento de “renovação” presente nos meios cristãos.

Uma das características notáveis dessa produção teológica é o esforço constante de definir a “especificidade cristã universal”, recorrendo à distinção de dois níveis diferentes: o nível da opção fundamental e universal e o nível das opções particulares. A opção fundamental seria por Jesus Cristo, pelos valores evangélicos de Deus5, do homem e da sociedade. Nesse nível, não se optaria por um grupo determinado de pessoas, mas por todas as pessoas. Todos os cristãos  devem concordar com essa opção fundamental; é um campo comum de encontros, que superou o nível político-conflitivo das diferentes opções particulares. Esses valores que estruturam e definem esse campo comum devem ser “encarnados” pelos cristãos, nas pessoas e nas estruturas. Esses são valores que devem vivificar, humanizar e libertar os homens e os sistemas sociais. O outro nível seria o das opções particulares diferenciadas. Se na opção fundamental os cristãos devem concordar com tudo, nas opções particulares os cristãos teriam liberdade para escolher. Nesse nível se admite o pluralismo e o conflito, a oposição entre as propostas. As diferenças entre os cristãos não seriam quanto ao Evangelho, que é o critério supremo e comum, mas sobre juízos técnicos e escolhas teóricas que dizem respeito aos diversos sistemas econômicos e políticos vigentes. A distinção entre esses dois níveis permite definir claramente a “especificidade cristã universal”, por cima de todas as determinações particulares e contingentes. Permite também, uma vez definida a “especificidade cristã universal”, garantir a liberdade dos cristãos. Na medida de sua fidelidade fundamental aos valores do Evangelho, eles teriam liberdade para escolher e atuar no plano político contingente. A distinção entre esses dois níveis qualificaria os cristãos, enquanto se definem assim, a prestar serviços à unidade e ao diálogo entre os homens.

Centramos nossa crítica a esse tipo de reflexão “teológica”, bastante difundida nos meios cristãos, em dois pontos que parecem fundamentais.

A) Essa busca por uma “especificidade cristã” é uma inversão ideológica da realidade social na “consciência política” dos cristãos. Os valores do Evangelho adquirem uma existência autônoma e são eles que determinam a existência dos homens, na medida em que se encarnam, humanizam e dão sentido à história. Os valores se apresentam como sujeitos transformadores da existência humana, a qual aparece reduzida à condição de objeto. Há uma inversão ideológica de sujeito-objeto que gera um imperativo na “consciência política cristã” — não de mudar a ordem contraditória existente, mas de ser fiel aos valores eternos do Evangelho. É produzida uma moral de conservação, e não de ruptura e transformação. Os cristãos assumem uma atitude passiva em relação ao processo de transformação da sociedade. A ordem social existente, reduzida à condição de objeto, se apresenta aos cristãos como algo já dado. Sua missão não se define no processo de transformação social, mas em torno dos valores do Evangelho, que devem defender e encarnar no sistema social em que vivem, qualquer que seja, com a sua ação evangelizadora. A contradição fundamental entre esse tipo de “consciência política cristã” está entre o mundo socioeconômico e o mundo dos valores do Evangelho. As contradições que ocorrem, na relação entre os humanos e a natureza e nas relações sociais, são causadas e explicadas pela ausência dos ditos valores do Evangelho no mundo. Se os valores do Evangelho fossem totalmente encarnados no mundo, e fossem o fundamento real de toda ordem social, desapareceriam todas as contradições. Com isso se relativizam, e, portanto, se ocultam todas as contradições. A contradição entre empregados e donos dos meios de produção é analisada e julgada a partir dos valores evangélicos. O que interessa é saber se entre eles existe “amor fraterno”, “respeito”, “generosidade”, “cumprimento de dever” etc. A contradição é ocultada e relativizada, pois existem donos de meios de produção que são “bons”, “generosos”, “pobres de espírito”, “desprendidos”; por outro lado, existem assalariados que são “ricos de espírito”, “ambiciosos”, “materialistas”, “egoístas” etc. O problema não está no tipo de relações sociais geradas pelos sistema de produção. O importante é que não existam contradições entre as relações sociais, quaisquer que sejam, e o mundo dos valores do Evangelho. Os sistemas de produção são igualmente relativizados. A contradição entre o sistema capitalista e o sistema socialista é secundária e quase sem importância. O fundamental é que os valores evangélicos estejam presentes e sejam vividos pelos homens. Se esses valores não estão presentes na vida dos homens, não adianta nada mudar de sistema. Por outro lado, na medida em que se julga um sistema com os valores do Evangelho, não há sentido em substituí-lo por outro.

A inversão ideológica que gera essa busca por uma “especificidade cristã” na opção fundamental, universal e apolítica por Jesus Cristo, pelo valores do Evangelho e por todo o povo do Chile, encobre as contradições sociais existentes, e identifica politicamente o “cristão” com a ideologia burguesa dominante. Configura um tipo de “consciência política cristã” que se articula a partir dos interesses da classe dominante.

B) A inversão e a consequente negação (ou encobrimento) das contradições sociais que geram a busca por uma “especificidade cristã” permanece oculta em uma aparente “apoliticidade”. É necessário revelar não somente o caráter ideológico dessa busca “teológica”, mas também revelar os mecanismos de ocultamento e legitimação dessa inversão ideológica. É preciso revelar as aparências “teológicas” ou cristãs que ocultam e legitimam tal inversão ideológica da realidade. Para revelar essa função legitimadora e ocultadora da inversão ideológica realizada pelo “cristianismo” fundamentado nos interesses das classes dominantes, é necessário descer um degrau na história e analisar a situação do cristianismo no passo entre o degrau da sociedade feudal e o da sociedade capitalista. Descreveremos primeiro a situação como aparece. Depois vamos submetê-la a uma análise crítica.

Na sociedade feudal, onde o poder da institucionalidade eclesiástica e a força do cristianismo tinham um peso sociológico considerável, a aliança do poder religioso com o poder civil era suficiente para legitimar os esquemas ideológicos dos grupos dominantes. Essas formas feudais e clericais de legitimação, pelo cristianismo, das ideologias dos grupos dominantes, são aparentemente rejeitadas, na medida em que surge a sociedade capitalista moderna e o peso sociológico e político do cristianismo diminui. Primeiro o laicismo e o anticlericalismo, e depois a própria igreja, repudiaram todas essas formas de legitimação. A igreja aceitará perder seu poder político, clerical e feudal, e, reconhecendo a autonomia do temporal, assumirá a função de “fermento da massa”, de “servidora do mundo”. Essa transformação da igreja culmina no Concílio Vaticano II. A burguesia progressista já não pode, como no período feudal, legitimar seus esquemas ideológicos de dominação recorrendo à autoridade da igreja ou à revelação. Ela recorre agora ao poder do pensamento; não o religioso, mas o laico e progressista. Legitima sua própria ideologia em uma concepção política e jurídica da sociedade, fundamentada nos valores “universais” e “eternos” de liberdade, igualdade e fraternidade.

Aparentemente se separa o poder político do poder religioso, cada um reconhece sua devida “autonomia”, e ambos proclamam a morte do clericalismo feudal e anacrônico. A ruptura entre política e cristianismo, adotada e proclamada pela institucionalidade eclesiástica e pela burguesia dominante, será mantida e conservada zelosamente por ambas. A burguesia, enquanto desenvolve suas forças produtivas e aumenta continuamente a agudização das contradições de classe do sistema capitalista, precisará fundamentar suas convicções políticas legitimadoras de seus esquemas de dominação com mais força. Para isso desenvolverá uma “ciência social” que apoie “cientificamente” suas concepções políticas e jurídicas. A igreja, por outro lado, desenvolverá uma “nova teologia”, baseada na distinção do âmbito “político-temporal” e do “cristão-espiritual”. Toda forma de clericalismo e triunfalismo será respondida. Foi afirmada como valor positivo a autonomia do poder político, do processo de “secularização” etc. A igreja buscará seu âmbito específico e próprio. Buscará despojar-se de todo poder temporal e político, definindo-se e definindo sua natureza como serviço ao mundo. Para isso, a Igreja e a teologia se voltam para si mesmas e buscam sua definição em um retorno a suas “fontes originais”. A burguesia saúda com gozo essa transformação da igreja. O Concílio Vaticano II é comentado com interesse e entusiasmo pela imprensa capitalista em todo o mundo. O espírito anticlerical é reduzido, já que a própria igreja rechaça o clericalismo e toda forma de domínio temporal e político.

Devemos submeter a uma análise crítica esse esboço histórico da situação da igreja e do cristianismo na transição entre a sociedade feudal e a sociedade capitalista. Em primeiro lugar, podemos perceber em muitos países da América Latina a subsistência de um tipo feudal e clerical de relação entre a Igreja e o Estado. A Igreja, cujo peso sociológico nesse país é considerável, aparece claramente aliada com a base dominante, cumprindo uma função de legitimação evidente. A “renovação” do Concílio Vaticano II encontra resistência, ou só é aceita formalmente, resultando em transformações secundárias ou intraeclesiais que não têm nenhum significado histórico.

No Chile, a situação é diferente. O crescimento das forças produtivas do sistema capitalista, a existência de uma burguesia progressista e “secularizada”, aberta ao pensamento e à cultura europeia, a existência de uma Igreja “progressista” que em sua grande maioria tem aceitado a renovação do Concílio Vaticano II, e outros fatores econômicos e culturais, têm instaurado um novo tipo de relação entre ideologia burguesa e cristianismo. Vale perguntar, contudo, se a burguesia, ao recorrer aos valores jurídicos e políticos para legitimar seus esquemas ideológicos de dominação, realmente recusou a função legitimadora do cristianismo, ou se simplesmente a internalizou em uma forma aparentemente “secularizada”. Devemos questionar se a ruptura que se produziu entre política e religião e o mútuo reconhecimento de suas próprias autonomias foi um fenômeno real ou somente aparente; se as produções de uma “nova teologia” conciliadora sobre a “especificidade do cristianismo”, a “apoliticidade da instituição eclesiástica” etc., são ou não reconfigurações “avançadas” dos antigos esquemas teológicos de corte feudal e clerical. Acreditamos que o caráter “apolítico” do cristianismo e o caráter “secular” e “secularizante” da ideologia burguesa representam o mesmo mecanismo ideológico de legitimação e ocultação da inversão ou negação das contradições de classe pela burguesia dominante. O cristianismo, ao buscar sua própria “especificidade” no âmbito dos valores evangélicos sobre Deus, o homem e a sociedade, supera o âmbito das racionalidades políticas antagônicas. A “especificidade cristã” encontra sua validação no “Evangelho” e não na análise política racional das contradições de classe. A ideologia burguesa, ao legitimar seu projeto ideológico de dominação de classe, recorre também a certos valores que fundamentam toda a sua concepção política da sociedade. Esses valores encontram sua validação aparente em um complexo de ideias jurídico-políticas, elaboradas e sistematizadas pela “ciência social burguesa”. Mas não acreditamos que seja esse tipo de validação que dá força e autoridade a estes valores. Pode ser que o seja no nível da intelectualidade burguesa, mas não no nível das massas. Esses valores adicionam à consciência política um caráter mítico, universal, totalizante, eterno e necessário. Enquanto possuem esse caráter, esses valores são apresentados como o fundamento para a construção de toda ordem social. São o critério absoluto e supremo da ação. Na medida em que se salvam esses valores, se salva o Chile, o progresso acontece, há tranquilidade, trabalho e bem-estar para todos. Temos aqui uma versão “secularizada” de um “cristianismo” que define a si mesmo a partir dos valores do Evangelho. A articulação dos valores “jurídicos-políticos” com os valores “cristãos” é a reedição “moderna” do antigo mecanismo de legitimação da ideologia burguesa dominante. Essa articulação de valores legitima e oculta, na consciência política das maiorias, a inversão e a negação das contradições de classe realizadas pela ideologia dominante. Para que esse “novo” método de legitimação continue oculto, é necessário que o poder político se declare “laico” e “secularizado”, e que o “cristão” defenda sua completa “apoliticidade”.

Com isso queremos demonstrar, ao menos como uma suspeita que exige uma verificação posterior, que toda busca por uma “especificidade cristã” na opção universal e apolítica pelos valores do “Evangelho”, se identifica, para além das aparências, com a ideologia burguesa dominante, seja na inversão ou na negação da realidade, no ocultamento e na legitimação da dita inversão ideológica da consciência.

Teologia e racionalidade socialista 

A) O cristianismo entende a si mesmo e encontra seu sentido libertador na medida da sua inserção real no processo histórico de transformação da sociedade. Uma experiência ou uma compreensão deformada desse processo esvazia o cristianismo de todo o seu conteúdo, e este perde seu significado histórico radicalmente. A ideologização do cristianismo nos apresenta o problema, não somente da sua “funcionalidade”, mas fundamentalmente do problema da verificação histórica. Na medida em que o cristianismo exerce uma função de legitimação ou validação ideológica que inverte a realidade e oculta as contradições sociais existentes entre os homens, ele trai a si mesmo e perde sua razão de ser.

Na primeira parte do nosso trabalho concluímos que a busca por uma “especificidade cristã”, isto é, a opção fundamental pelos valores do Evangelho que pretende superar o âmbito das opções particulares, a autonomia do temporal e outras “renovações” teológicas funcionais ao neocapitalismo europeu, não é nada além de uma reconfiguração “moderna” e “avançada” de antigos esquemas feudais e clericais, de encobrimento e legitimação ideológica. Tudo isso configura diferentes tipos de “consciência política cristã”, cujo tronco comum é um cristianismo profundamente “bloqueado” pela sua articulação estrutural com a ideologia dos grupos dominantes. Esse bloqueio profundo do cristianismo adquire, na mediação das diferentes institucionalidades eclesiásticas, educacionais e políticas que se adjetivam “cristãs”, um significado político no atual rearranjo dos interesses de classe e na restruturação do poder político.

Nessa segunda parte da nossa análise propomos um novo tipo de busca teológica e cristã que assegure uma radical desideologização do cristianismo. Como dissemos anteriormente, a desideologização do cristianismo não é somente um problema de “funcionalidade política”, mas é fundamentalmente o problema da verificação histórica do sentido próprio do cristianismo. Esse novo tipo de produção teológica toma como ponto de partida, e como instrumento científico de sua própria reflexão, a racionalidade histórica da práxis social que tem como sua expressão concreta a racionalidade socialista. Não nos referimos diretamente à realização determinada de modelos ou projetos socialistas, mas à racionalidade histórica originária que está na base desses sistemas — a racionalidade da práxis social, enquanto revela e interpreta adequadamente a realidade histórica do processo de transformação social e expõe os mecanismos ideológicos legitimadores de uma compreensão falseada dessa realidade. Ela se apresenta para nós como a única racionalidade verdadeira e capaz de uma verificação histórica do cristianismo. Seu caráter histórico coloca o problema de sua verificação como um processo essencialmente anti-ideologizante. Na medida em que o cristianismo aparece determinado ideologicamente, ele não pode ser verificado por si mesmo, em uma racionalidade “cristã” ou “teológica”, pois tal racionalidade apenas reproduziria seus próprios esquemas ideológicos. A racionalidade da práxis social enquanto racionalidade histórica oferece ao cristianismo um ponto de referência e um instrumental científico adequado para seu processo de desideologização. Nossa avaliação da racionalidade socialista como a única racionalidade verdadeira e a única que permite uma verificação histórica do cristianismo não se fundamenta em um juízo “teológico”. Fundamenta-se em si mesma e a partir de si mesma. A utilização “teológica” dessa racionalidade, por outro lado, não corresponde a uma pura exigência tática de mobilização política em prol do sistema socialista. Não se trata de justapor ou de estabelecer uma concordância entre a racionalidade socialista e o cristianismo, mas mostrar como unicamente a partir dessa racionalidade socialista o cristianismo encontra — na medida de sua desideologização — sua articulação significativa com o processo de transformação histórica de nossa sociedade.

Não nos interessa, dentro dos limites deste artigo, desenvolver o conceito corrente na tradição do socialismo científico, da racionalidade da práxis social. Mas queremos insistir em um aspecto dela: é uma racionalidade que compreende as contradições sociais existentes na sociedade, na medida em que se compromete com a luta real pela supressão dessas contradições. Como dizia Mao Zedong: “se quiseres conhecer, tens que participar da prática que transforma a realidade. Se quiseres conhecer o sabor de uma pera, tens que transformá-la comendo-a… Se queres conhecer a teoria e os métodos da revolução, tens que participar na revolução. Todo conhecimento autêntico nasce da experiência concreta”.6

B) Elaboraremos agora algumas linhas de produção teológica — em hipóteses — tomando como ponto de partida e como instrumental científico de reflexão a racionalidade histórica da práxis social, da racionalidade socialista.

A primeira linha é a aceitação da primazia fundamental do homem concreto sobre o homem abstrato; da existência sobre a consciência, da história sobre os valores “eternos” e “transcedentais”. O homem concreto, enquanto produz e forja sua própria existência, é o sujeito responsável pela história, na medida em que luta para superar as contradições existentes entre ele e a natureza e entre ele e os demais homens. A práxis nos revela o sentido do homem concreto na negação de suas contradições, na negação da alienação e da exploração. A partir da práxis social que luta para superar toda contradição existente, surge um projeto histórico, uma esperança, uma utopia. O homem encontra seu sentido nessa práxis social, e não no modelo abstrato e antecedente do homem e da sociedade, que “deve ser” afirmado, confirmado e realizado. Não é esse homem abstrato que “faz a história”, mas o homem concreto.

A partir dessa racionalidade da práxis social, devemos afirmar igualmente que não é a imagem “evangélica” de Deus, do homem e da sociedade que dá sentido e o fundamento último à história. Não são os “valores evangélicos” que dão sentido à práxis social, mas o contrário: é a partir da práxis social que encontramos sentido nestes “valores evangélicos”. O Evangelho se “revela” a nós na medida em que, por meio da racionalidade da práxis, assumimos a realidade contraditória e conflitiva do homem concreto. Não são os “valores evangélicos” que, ao encarnar-se, transformam o homem e a sociedade, mas é o homem o sujeito histórico que luta pela superação de toda alienação e opressão. O homem é sujeito criador da sua história, e não objeto de um mundo de valores que “devem ser” encarnados. Não a partir do “Evangelho”, mas somente a partir da racionalidade da práxis poderá a teologia superar a inversão do sujeito-objeto que explicita o caráter ideológico do cristianismo, bloqueando os cristãos de assumir a práxis social de libertação. Muitos cristãos, por exemplo, se sentem impedidos de assumir a práxis social da luta de classes por entendê-la como contrária aos valores evangélicos da unidade, paz e fraternidade. Esses cristãos dizem que os homens devem amar uns aos outros e não lutar uns contra os outros. Nessa afirmação se dá a primazia ao “deve ser” sobre o que “já é”. Dá-se primazia aos valores abstratos de unidade e fraternidade sobre a existência concreta da exploração. Esta primazia significa atribuir aos valores abstratos, e não ao homem concreto, a responsabilidade e a capacidade de transformar a realidade social. Vê-se a causa de “todos os males” na ausência dos valores do Evangelho e projeta-se na consciência social dos cristãos a solução dos conflitos no “dever ser” do amor, da fraternidade e da unidade. As transformações sociais e a luta política organizada passam a um segundo plano; são inclusive “ruins”, porque “fomentam o ódio”. É a “caridade” que transforma tudo, não a política.

Dessa forma vemos que a raiz que impede a consciência política dos cristãos de assumir a práxis social da luta de classes está na inversão da realidade. O homem concreto passa a ser “objeto” do homem abstrato ou dos “valores evangélicos”. O cristianismo recupera sua historicidade somente a partir da racionalidade da práxis social, e não partindo dos “valores do Evangelho sobre Deus, o homem e a sociedade”. Isso significa o abandono de toda predefinição “cristã”, ou toda busca de uma “especificidade cristã” que antecede a práxis social. A práxis social se define por si mesma a partir de sua própria racionalidade. Não existe uma “práxis social cristã”. Se existe, o adjetivo “cristão” não expressaria uma qualidade dessa práxis, mas uma demanda, um defeito dessa práxis. Uma contribuição “cristã” para a práxis significa uma deformação ideológica. Os cristãos não assumem a práxis social por “crer no Evangelho”, ou por ter uma “racionalidade social cristã”. Ou se assume a práxis social unicamente a partir de sua própria racionalidade, ou não se assume. O “cristão” não é significativo para a práxis social, mas o contrário: a práxis social, na medida em que se assume em sua própria racionalidade, é significativa para o cristianismo. O cristão não deve redefinir a práxis social a partir do Evangelho, mas encontrar o significado histórico do Evangelho a partir da práxis social. Isso não significa uma desvalorização do Evangelho ou do cristianismo, mas exatamente o contrário: valorizá-los a partir da racionalidade histórica da práxis social. Significa devolver ao Evangelho e ao cristianismo seu significado histórico, na medida de sua desideologização.

C) Para concluir, queremos enumerar algumas das características principais de uma teologia que toma como ponto de partida, e como instrumental científico de sua reflexão, a racionalidade histórica da práxis social, a racionalidade socialista.

Em primeiro lugar, será uma teologia politicamente comprometida. Na medida em que assume a racionalidade histórica da práxis social, a teologia não poderá se limitar a interpretar o mundo, mas deverá se comprometer com o processo de sua transformação. O teólogo poderá “interpretar os sinais dos tempos” na medida em que é ator e não um simples espectador de tais tempos. Será uma “teologia política” na medida em que o teólogo se compromete politicamente, e não somente “reflete” sobre os temas políticos. A separação tradicional entre teologia e política, ou a “apoliticidade” da teologia, desaparecem na medida de sua desideologização. Quando falamos de uma teologia politicamente comprometida, não nos referimos indiferentemente a qualquer tipo de compromisso político. Essa teologia, em sua articulação com o processo de transformação da sociedade, ao assumir a racionalidade histórica da práxis social, pela sua própria natureza, entra em conflito com a ideologia burguesa dominante. Essa teologia, na busca de sua verificação histórica, assume a luta de libertação da classe dominada.

Em segundo lugar, será uma teologia não institucional. Será não institucional enquanto nasce e se desenvolve, e não definirá sua institucionalidade na busca de sua “especificidade cristã”, mas nascerá e se desenvolverá a partir das tentativas de produzir um novo tipo de institucionalidade a partir da racionalidade histórica da práxis social. Não se trata de negar de forma absoluta e a princípio qualquer tipo de institucionalidade “cristã”, mas verificar historicamente seu sentido. O adjetivo “cristão”, que instituições eclesiásticas, educacionais e políticas carregam, encontra seu verdadeiro sentido na medida de sua desideologização. Propomos nesse momento, como pauta futura de investigação, a possibilidade e as características de uma institucionalidade cristã gerada e definida a partir da racionalidade histórica e da práxis social.

Notas:

1. Artigo originalmente publicado em Cuadernos de la realidad nacional, CEREN, março 1972.

2. Para um sumário da experiência chilena, cf. WINN, Peter. A revolução chilena. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

3. N.E.: O Concílio Vaticano II foi um importante encontro que toda a comunidade católica romana fez para debater o espaço e o papel da igreja na sociedade moderna. Para maior aprofundamento, conferir: LIBANIO, João B.. Concílio Vaticano II: Em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2005.

4. A produção teológica que citamos está em um documento apresentado pelos Bispos do Chile, em maio de 1971, com o título: Evangelho, política e socialismo.

5. N.E.: Evangélico aqui não tem relação com o movimento evangélico, que é conhecido hoje no Brasil, mas com os evangelhos que estão no Novo Testamento.

6. ZEDONG, Mao. “Acerca de la pratica”. In: ZÚNIGA, Ricardo B. ed. Psicología social, no. 12. Valparaíso: Ed. Universitarias, 1971. Disponivel em: https://www.marxists.org/portugues/mao/1937/07/pratica-ga.htm