A discussão sobre o adventismo ser ou não uma seita importa apenas às elites adventistas, que temem perder seus privilégios como denominação cristã na ascensão evangélica brasileira


Por Elias Batista Jr. e André Kanasiro | Editores-chefe da revista Zelota.

Frame (Fonte: Colônia Dignidade (2020).

No início de 2024, a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) brasileira experimentou um sentimento nostálgico desconcertante e indesejado: ela foi classificada por uma figura influente do evangelicalismo como “seita”, tanto por possuir crenças distintivas quanto por ser devota a Ellen G. White como profetisa. O início do debate ocorreu na postagem de André Valadão, pastor da Igreja da Lagoinha, em suas redes sociais, enquanto respondia ao questionamento de um seguidor acerca dos adventistas. Ao afirmar que estes eram reconhecidos como seita pelo mainstream evangélico, o palco se formou para um enxame de opiniões que tentaram dar credibilidade ou desmentir sua afirmação; ele conseguiu suscitar o descontentamento de figuras influentes no adventismo brasileiro e gerar debates que duraram mais de uma semana no contexto evangélico.

O susto foi grande, e a liderança adventista reagiu como quem corria o risco de perder um status importante entre os evangélicos e protestantes no Brasil. O Departamento de Comunicação da DSA, por exemplo, na pessoa de Carlos Magalhães, sugeriu que a discussão fosse evitada nos meios de comunicação institucional, mas entendeu a ocasião como oportunidade para reintroduzir a IASD aos evangélicos, de forma a minimizar os preconceitos. Até o Pr. Alberto R. Timm, editor-associado da Biblical Research Institute (BRI), participou de uma live com duas influenciadoras brasileiras intitulada “A verdade sobre o adventismo”, com o objetivo de responder à polêmica vigente. Inúmeras outras reações à fala de Valadão foram publicadas, de forma que o sentimento apologético adventista reviveu, por alguns dias, questões que os aterrorizavam em décadas passadas.

Essa discussão, obviamente, não é nova, mesmo no meio acadêmico. Na sociologia, por exemplo, há diversas tipologias propostas para classificar movimentos religiosos como denominações ou seitas. É claro que a tipologia discutida por nossos pastores-influencers não é nada acadêmica, e soa mais como adolescentes discutindo se uma caneca de sucrilhos com leite pode ser classificada como “sopa”: algo que depende de quais critérios escolhemos arbitrariamente para classificar nosso objeto. O que é uma sopa? Um alimento líquido com pedaços sólidos? Precisa ser salgado? Precisa ser quente? E o que é uma seita? Convencionou-se entre os interlocutores que não é cristã, é herege, e portanto é objeto de disputa política. Denominações são as únicas dignas de respeito, pois sabem usar talheres e conhecem as regras do jogo da civilização ocidental. 

Quem aceita a seita?

Uma semana depois do desespero generalizado dos adventistas, Caio Peres — também contribuidor da revista Zelotapublicou um interessante texto em seu blog pessoal sobre a origem sociológica das categorias atualmente utilizadas para distinguir igrejas e seitas. Apenas para retomar e reafirmar a amplitude que ele confere à discussão: o fundamento teórico para identificar tais categorias provém de Max Weber, Peter Berger e Ernst Troeltsch, todos de tradição protestante europeia na virada dos séculos 19–20. Para eles, e para a época, “igrejas” eram instituições religiosas reconhecidas pelo poder estatal, ao contrário das “seitas”, que seriam movimentos dissociados da oficialidade governamental.

Naturalmente, essa forma de validar as religiões não se aplica aos dias atuais, e ainda que Richard Niebuhr tenha atualizado tais categorias, acrescentando as “denominações” — como explicou Caio Peres — há dúvidas se a lógica proposta se aplica à realidade histórica adventista. De fato, algumas dessas categorias sociológicas foram aplicada por adventistas como Ronald Lawson — também contribuidor da Zelota —, ao explicar que seitas são movimentos em tensão ou conflito aberto com a sociedade que as rodeia, compostos geralmente por grupos marginalizados da sociedade, e que tendem a se tornar denominações conforme se acomodam à convivência com o mundo secular. Para Lawson, o adventismo é um exemplo deste movimento, começando como seita e aos poucos tornando-se uma denominação estabelecida.

Mas o problema de tipologias, sejam estas à la Weber ou Valadão, é a constante tentação de classificar seus objetos em esquemas metafísicos a despeito de sua concretude particular na história e na sociedade. A aplicação da tipologia sociológica ao adventismo, por exemplo, a despeito de seus critérios razoavelmente objetivos, deixa de considerar que os primeiros adventistas não estavam entre os grupos ”mais marginalizados”, mas eram pequenos proprietários rurais brancos do norte dos EUA, mais próximos de uma classe média1 e com líderes conectados à elite do país: John N. Andrews, por exemplo, passou parte de sua juventude na casa de um deputado; o avô de George I. Butler tinha sido governador de Vermont; Uriah Smith estudou na Philips Exeter Academy; e William W. Prescott era um ex-aluno da Dartmouth.2

Sabe-se, atualmente,3 que os adventistas estavam na vanguarda da religião popular de sua época. Isso significa que eles costumavam ignorar as formulações dos antigos concílios cristãos; eram, na prática, arianos, por acreditarem que a Bíblia não conferia margem à outra opção; e acreditavam que a expiação não ocorria na cruz, mas no céu, enfatizando a obediência à lei como meio de salvação. Não há evidências, nesse sentido, de que eles estivessem distantes da religião estadunidense mainstream; ou seja, em todas essas coisas, os adventistas não eram particularmente estranhos, ou “sectários”.

Os donos da plantação

Mas até que ponto a identificação do adventismo como “seita”, entre os evangélicos, é relevante? Conforme comentamos, para retirar dela alguma substância pragmática, é preciso entender as dinâmicas do adventismo brasileiro para além das abstrações doutrinárias ou sociológicas que o definem como movimento sectário. É preciso pressupor que a reação adventista não ocorreu a priori em defesa de um “credo protestante”, mas se manifestou num contexto de disputa de privilégios colocados em xeque. Afinal, por que o adventismo precisa, com tanta urgência, entender-se como parte do legado da Reforma Protestante, e alinhar-se aos sentimentos evangélicos atuais? Por que ele precisa fugir da categorização de seita e estabelecer-se como uma instituição cristã? 

Um fato que se repete na história do adventismo — e encontrou um eco peculiar na América Latina — é a tentativa de se alinhar às tendências culturais ou aos poderes políticos para garantir a manutenção e a promulgação de seus próprios interesses. Sabe-se, por exemplo, que a partir de 1920, a IASD se esforçou para fazer parte do movimento fundamentalista que se instaurava nos EUA. Essa ocasião foi marcada por uma reorientação controversa na história do adventismo, basicamente reconhecida na Assembleia Geral de 1922.4 Ainda que muitas das posições defendidas na época tenham sido abandonadas com o passar dos anos, a relação entre o adventistas e o fundamentalismo evangélico se atualiza e encontra, no Brasil, tons de certo “orgulho identitário”.

Contudo, o exemplo que mais nos interessa ocorreu por volta da década de 1950, com a ascensão do evangelicalismo estadunidense. Até então, entre muitos adventistas, o assunto da autoridade doutrinária era uma “simbiose” que não fazia distinções claras entre a Bíblia e Ellen G. White, isto é: ambos poderiam ser utilizados para identificar uma “verdade bíblica” como ferramentas para confirmações doutrinárias. No entanto, essa maneira de formular suas crenças não estava de acordo com as novas tendências do evangelicalismo, associado a figuras como Billy Graham e Donald Barnhouse. À época, os evangélicos tentavam libertar-se da imagem negativa do fundamentalismo e, ao mesmo tempo, enfatizar a Bíblia como o centro de suas formulações teológicas e missiológicas. Essa perspectiva observava com desconfiança a autoridade de Ellen G. White entre os adventistas, já que ela era utilizada para confirmar a veracidade doutrinária de suas crenças.

A princípio, as lideranças adventistas tentaram estabelecer algum diálogo com os representantes do evangelicalismo, mas sem muito sucesso: suas crenças eram taxadas como “não escriturísticas”. Em 1955, por exemplo, o pesquisador batista Walter Martin classificou os adventistas como uma “seita herética”, à semelhança dos Mórmons e das Testemunhas de Jeová. Essa “pejoração” foi o estopim para que a denominação buscasse um debate mais efetivo com os evangélicos, que, ao fim e ao cabo, deu origem ao livro Questões sobre Doutrina.5 Nessa obra, a autoridade de Ellen G. White foi diminuída, e seus ensinos restringidos à “religião pessoal”. Essa “foi uma das poucas vezes na história da denominação em que a Bíblia recebeu precedência inequívoca sobre Ellen G. White”,6 convencendo os cristãos da época de que o adventismo fazia parte da família evangélica. 

É impressionante como a história não cansa de recordar que o adventismo é flexível o suficiente para agregar opiniões diversas, úteis à sobrevivência da instituição. Vale destacar, no entanto, que o caso brasileiro, em particular, se articula como um interesse oriundo das elites adventistas. A membresia adventista, que desfila à margem da pobreza, não entende o sectarismo como um problema urgente, ao contrário: eles se organizam, muitas vezes, como pequenas “seitas” com o propósito de resgatar uma identidade adventista que julgam ter sido traída no casamento realizado entre adventistas e protestantes. 

Nos anos 2000, por exemplo, a instituição foi “vítima” de um ataque doutrinário proveniente de iniciativas populares. Lideranças alternativas, destacadas pela habilidade de manusear a Bíblia em suas comunidades, desenvolviam interpretações particulares das doutrinas adventistas: eles apregoavam principalmente o antitrinitarianismo, o perfeccionismo e acusavam a denominação de apostasia. Em São Paulo, popularizaram-se os “Nazarenos” e os “Adventistas Históricos”.7 Na época, a IASD articulou esforços multidisciplinares para minar os novos movimentos; ela promulgou o discurso de dois apologetas, Amin A. Rodor e Alberto R. Timm, conferindo a eles espaço para atuar nas igrejas locais e organizar material teológico impresso — tanto às academias quanto à Revista Adventista.   

Organizações populares do gênero ainda ocorrem no meio adventista brasileiro, e algumas carregam ainda a alcunha de “seitas dissidentes”, principalmente os movimentos que enfatizam a vida no campo. Outros, com algum esforço burocrático, conseguem caminhar ao lado da instituição como “ministérios independentes”, mas costumam ser igualmente desconsiderados nos relatórios e discursos oficiais da instituição. Para as elites, interessa apenas categorizar como “adventistas” os grupos que respondem suas demandas e encontram-se sob controle econômico, ideológico e doutrinário. Entre os leigos, no entanto, parece existir ainda latente o desejo de reviver o sentimento da renovação e da redescoberta do adventismo e, para tanto, não evitam a categorização sectária. 

O interesse por um status na elite evangélica brasileira fica ainda mais claro com a reação exagerada de Rodrigo Silva à polêmica de Valadão. O arqueólogo e professor do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP) se esforça, desde os anos 2000, para galgar um caminho ao cume da elite evangélica brasileira. Seu esforço, como sabemos, alcançou todas as expectativas, e ele chegou a posar com a ex-primeira dama Michele Bolsonaro. É provável que a polêmica iniciada por André Valadão não tomasse grandes proporções, não fosse o ressentimento de Rodrigo ao se ver identificado como “pastor de uma seita”. Em um ciclo de resposta, réplica e tréplica, foi o arqueólogo quem espalhou o fogaréu que incendiou as redes sociais evangélicas nas últimas semanas.

A conotação política e as alianças com a elite evangélica foram reconhecidas, inclusive, pelo editor da Casa Publicadora Brasileira (CPB), Michelson Borges. Ele entendeu que a direita tem o costume de se aliar ao Estado, e que ela identifica “seitas” entre os evangélicos. Ele também afirmou que a mesma direita foi aliada dos adventistas por questões políticas, mas que nem por isso estes eram partidários em termos doutrinários. Ao contrário de Rodrigo, o editor da CPB não usou argumentos que implicam os adventistas entre os evangélicos: ele comparou a acusação proferida aos primeiros cristãos, como “seita de Cristo” (At 28.22-23), à realidade adventista, pretendendo à instituição uma posição ainda mais elevada, com se os adventistas representassem a religião do próprio Cristo, e os evangélicos fossem relegados agora à margem de tal religião.

Portanto, é possível afirmar que o reclame da IASD pelo status de instituição evangélica expressa sua necessidade de desfilar ao lado de uma elite religiosa que implora para si o legado histórico da Reforma Protestante. Ela almeja ser protagonista na disputa política que pretende distinguir quem pode representar o “cristianismo verdadeiro”, e não admite estar à margem do evangelicalismo em ascensão no Brasil, relegada pejorativamente à categoria de seita. Os donos da plantação, capazes de separar o joio do trigo, já aplicam à denominação essas categorias quando intercepta suas divisões internas, conferindo à cúpula administrativa a alcunha do “verdadeiro adventismo”. Atualmente, o discurso antissectário no âmbito adventista não se restringe a questões doutrinárias: ele abrange grupos que pretendam uma relação mais flexível com a cultura e com a política, comumente chamados de “progressistas”.8

Por fim, estariam os evangélicos convencionais corretos ao chamar o adventismo de seita devido a suas crenças? Diz-se que o adventismo é uma seita por pregar a salvação pelas obras, ou por acreditar em uma profetisa; mas se o adventismo o faz, só está praticando às claras o que outras denominações protestantes fazem às escuras, chamando seus intérpretes autorizados das Escrituras — calvos, brancos, barbudos e ricos — de “homens de Deus” enquanto pregam a “salvação pela graça” somente a cis-heterossexuais de direita. Isso quer dizer que defendemos o status da IASD como denominação? Isso, na verdade, pouco nos importa; e tampouco importa a eles, pois na realidade material, no projeto para o Brasil, ambos seguem inseparáveis em sua marcha à destruição. Rodrigo Silva e André Valadão podem ter centenas de discussões acaloradas a respeito da classificação ontológica das refeições que compartilham, mas os dejetos que produzem seguirão caindo sobre nossas cabeças.

Notas:

1. GRAYBILL, R. Millenarians and Money: Adventist Wealth and Adventist Beliefs. Spectrum, v. 10, n. 2, 1979, p. 31-41.

2. BULL, Malcom; LOCKHART, Keith. Seeking a Sanctuary: Seventh-Day Adventism and the American Dream. 2. ed. Indiana University Press, 2006 (Edição Kindle), p. 105.

3. Ibid., p. 103-104.

4. CAMPBELL, Michael W. 1922: The Rise of Adventist Fundamentalism. Oakland: Pacific Press Publishing Association, 2022.

5. IASD. Questões sobre doutrina: o clássico mais polêmico da história do adventismo. TatuÍ: Casa Publicadora Brasileira, 2009.

6. BULL, Malcom; LOCKHART, Keith. Seeking a Sanctuary: Seventh-Day Adventism and the American Dream. 2. ed. Indiana University Press, 2006  (Edição Kindle), p. 31-32.

7. NEVES, E. C.Estudo das pressuposições da base teológica e filosófica dos principais movimentos dissidentes que combatem a Igreja Adventista do Sétimo Dia na última década no campo da Associação Paulistana. 95ff. Dissertação (Mestrado em Teologia Pastoral), Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia, Campus Engenheiro Coelho, Engenheiro Coelho, 2015.

8. Ver SOUZA, T. D. de. Ameaças contemporâneas ao adventismo: esses e outros ensaios. São Paulo: Editora Dialética, 2022; TIMM, A. R. Ventos de doutrina. Revista Adventista, out., 2019, p. 12-15; BENEDICTO, Marcos de. A arte de discordar. Revista Adventista, mar., 2019, p. 2; BENEDICTO, Marcos de; TONETTI, Márcio. Os novos críticos. Revista Adventista, mar., 2019, p. 12-1.