Em tréplica aos textos de Bruno Reikdal, o autor sublinha algumas diferenças de abordagem e perspectiva para, então, abrir caminho para um novo terreno comum na crítica materialista da religião


“Via crucis de Tittmoning” (Hansen Bahia, 1960)

Para os que caminham nesse solo árido de ideias, os assim chamados “cristãos antifundamentalistas”, ouvir debates que vão para além dos prognósticos padrão dos meios progressistas é como ver um raio em céu azul. Reduzir as discussões à mera repetição de ideias comuns, entremeada com testemunhos de como a igreja evangélica é ruim e maldosa, parece ser a única contribuição possível daqueles que professam a fé cristã mas não se alinham com o projeto da extrema direita no Brasil. Posso soar saudosista, e talvez o seja, mas sinto inveja daqueles irmãos que puderam participar de debates como o de Geneva em 1974, o do México em 1977 ou o de São Paulo em 1980; se nosso quadro não mudar drasticamente, essa geração não produzirá grandes nomes como James H. Cone, Paulo Freire ou Ivone Gebara.

Há pequenos espaços, contudo, onde as ideias, em especial aquelas que nos auxiliam a interpretar o mundo, ainda têm primazia. Já em 1969 o velho Adorno dizia: “É evidente que o pensamento, ao qual difamam, fadiga inconvenientemente os práticos: ele dá muito trabalho, é demasiado prático. Aquele que pensa, opõe resistência; é mais cômodo seguir a correnteza, ainda que declarando estar contra a correnteza.” A revista Zelota é um desses esconderijos para opor resistência, com a certeza de que pensar é também agir; seguindo na confecção das armas da crítica, sem deixar de ter como horizonte a crítica das armas.

O início deste ano na revista foi marcado por um debate travado entre o escritor desse ensaio e Bruno Reikdal, ambos editores da revista; em quatro textos,1 dois de cada, seguimos tentando debater os rumos e descaminhos da tradição que nos deu chão para pensar, a Teologia da Libertação (TdL). Este texto, é uma tentativa de sistematizar aquilo que foi pensado, para que se possa ir mais longe; em certo sentido, se trata de uma tréplica. As tréplicas têm quase que naturalmente um tom de ressentimento, é claro; tenta-se tapar as rachaduras expostas pelo crítico, e para isso as mais diversas armas retóricas são usadas. Mas não será necessário fazer isso. Tentarei expor as argumentações que considero essenciais, que compõem o repertório dos dois lados da discussão. Em suma, tratarei de três tópicos, entre os quais tecerei breves comentários sobre o que considero mais relevantes, para apontar respostas e demonstrar contrastes. 

Sobre os fascismos

Uma das reivindicações de Reikdal é que o termo “bolsonarismo” não representa bem a dinâmica de classes do movimento. Aponta, portanto, que o termo mais completo seria “fascismo”. Ao escrever o primeiro texto desse debate, não usei o termo “fascista” ou “fascismo” para designar claramente o movimento. Para Reikdal, o termo “bolsonarismo” oblitera a relação real que existe ali. 

Não discordo de Reikdal que esse movimento possa ser lido como um fascismo; na realidade considero que isso não diz nada, ou muito pouco. Está correto que o movimento está para além de Bolsonaro, e ele agora é só uma figura; mas tratá-lo como mero fascismo não nos ajuda a entender o que se passou nos meandros da vida social, onde essa ideologia fez sentido. A referida luta de classes é então usada para explicar o movimento

Podemos denominar esse processo de “rebelião das elites” (ou hiperpotestas, em diálogo com a filosofia política de Enrique Dussel), que se dá como uma reação imediata de quem detém o monopólio sobre os instrumentos de execução do poder contra o avanço de vitórias advindas de lutas populares.

Não há quem olhe para o Brasil e diga que não existem classes sociais, mas dizer isso não diz nada sobre as motivações para aderir aos movimentos. Além disso, pressupõe que a nascente extrema direita em todo o mundo é só um aparelho ideológico da burguesia, contra as supostas “vitórias” das lutas populares. As ditas vitórias já foram derrubadas há bastante tempo, mas o processo no qual o bolsonarismo se gestou parece só estar começando. 

Reikdal também reafirma que o movimento não é “revolucionário”, já que não pretende mudar a estrutura econômica da nossa sociabilidade. É claro, nunca pretendemos supor que o bolsonarismo é um movimento revolucionário de esquerda, nem que ele queira superar o capitalismo; supõe-se o exato oposto. É uma revolução por ser o inconsciente do processo de desintegração social que nos circunscreve desde 1980. É o movimento que não só brota da crise estrutural, mas que internaliza essa crise enquanto projeto político. Pretende-se libertar o Brasil, diz a Michele, enquanto se destrói todo e qualquer vínculo social que não seja a pura violência do mercado. Reiteramos, portanto, que sim, o bolsonarismo é revolucionário, não porque queira mudar algo, mas porque quer apertar ao máximo o acelerador rumo à barbárie pura, e para isso precisa destruir inclusive as próprias barreiras internas da democracia burguesa.

Mas há algo que se revela na reivindicação de Reikdal. Seu texto aponta que na realidade o bolsonarismo é uma “rebelião das elites”, uma revolta contra as “vitórias populares”, porque tem que salvar a classe trabalhadora, que para ele é o sujeito revolucionário. Se a conclusão de que o bolsonarismo é um projeto revolucionário está correta, há de se entender que aquilo que um dia foi a classe trabalhadora forjou esse projeto. Reikdal quer salvar a classe, que já nem existe mais2, para poder apontar na sua conscientização a solução para a situação que enfrentamos. Reiteramos que o que propomos ter deixado de existir foram as condições que propiciavam a construção de uma identidade de classe, resultado da própria reestruturação do capitalismo. E o que o bolsonarismo expõe é que existem outros nexos imanentes à nossa sociabilidade que dizem mais sobre a sobrevivência de todos contra todos do que de uma possível organização centralizada da classe trabalhadora. 

Laços comunitários 

Um segundo ponto que creio ser pertinente comentar diz respeito à interpretação do surgimento da TdL. Aponto no meu texto que a TdL brota junto com alguns sujeitos políticos da época, e que tem íntima relação com a forma do desenvolvimento desigual e combinado de então. Reikdal reitera que a particularidade da TdL deveria ser entendida a partir das relações comunitárias que eram seu pressuposto:

Por isso, com razão, Castro pode sustentar em seu texto que o contexto fecundo para a TdL não existe mais. Contudo, não porque “o contexto que dava razão e sentido à TdL era a luta social que permeava o projeto de sociedade salarial”, mas porque a destruição da forma comunitária de organização, subsistência e reprodução social, que era vigente e entrava em contradição com o processo de modernização capitalista, foi suprimida.

A supressão dessas relações, contradição do próprio processo de modernização, é sim um dos fatores que não discuti no meu texto; mas não são eles os determinantes centrais da TdL. A própria forma comunitária que então brotava em contradição com a modernização foi produzida em diversas experiências religiosas. As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) eram somente mais uma das organizações religiosas que brotavam nas periferias de todo o Brasil. Boa parte da sociologia nacional da religião,3 inclusive, começa a pensar a partir dessas experiências religiosas que brotavam às margens da sociabilidade de então; foi o boom do crescimento do pentecostalismo, da umbanda e das CEBs. As CEBs, porém, ganharam proeminência política e particularidade histórica, porque integravam em sua experiência religiosa a luta que permeia os conflitos sindicais e rurais, mobilizados socialmente a partir de um projeto de sociedade salarial. Aquilo que dava forma particular à TdL, portanto, entre as diversas experiências religiosas que brotavam dessa forma comunitária, era a sua interiorização das expectativas, da luta social pelo projeto de sociedade popular que ganhava forma econômica no programa do desenvolvimento socialista.

Modos de reprodução do capital 

Creio que a mudança na forma de reprodução do capital a partir dos anos 1980 seja o núcleo de divisão entre as nossas interpretações. Para a tradição da qual tento dar conta, a terceira revolução industrial, em paralelo e consonância com a globalização da economia, leva o capitalismo a uma crise constitutiva, que agora mostra sua face política. As formulações políticas do sindicalismo, forjadas nos conflitos dos anos 1960-1980, já não dão conta da realidade nacional. Mudou-se a realidade da reprodução do capital, e isso incide decisivamente na vida social de todo o mundo; algo notado primeiro na crise da dívida nacional. Reikdal segue lendo o atual processo como modernização, que está como que em uma recessão periódica; para mim, o próprio projeto de modernização há muito tempo já perdeu o fio da meada, e aí mora o nosso problema. A falta de relevância histórica da TdL é então resultado da falta de capacidade dos herdeiros de pensarem os novos desafios da modernização:

A questão dos limites da TdL em seu movimento não está em não questionar, mas por seus herdeiros terem parado de realizar as perguntas e se adequado às respostas dadas ou às resoluções históricas que surgiram dos conflitos da reprodução social sob o projeto de modernização industrial capitalista.

Por isso, ao fim do seu texto, Reikdal pode propor que a TdL deu meramente uma pausa, e está em nossas mãos o trabalho de fazer as atualizações necessárias para o novo tempo. Reiteramos, contudo, que já não estamos mais no processo de modernização industrial que dava chão ao desenvolvimento nacional; nossa modernização se truncou em um país sem saída para seu próprio desenvolvimento, diria Francisco de Oliveira.4 Não vivemos, portanto, mais um dos capítulos da modernização, mas sua crise constitutiva, e por isso as formulações e imaginações mítico-teológicas que davam razão para a luta por outro mundo dentro da modernização já não dão conta de um mundo social que se desconstrói em nossos olhos. Há de se dar conta das dimensões do nosso tempo, o tempo do fim dessa forma social, que não promete nada além da barbárie que sempre foi seu fundamento, para que nossas palavras sejam palavras de ação em meio àqueles que são despejados em todo o mundo por um modo de acumulação que já não precisa de trabalhadores. Aos despedaçados por um mundo que já não precisa deles há esperança na sua destruição, resta-nos saber articular essas esperanças, pois o outro lado já começou seu trabalho, enquanto nós repetimos velhos lemas que não têm mais razão nem lugar. 

Apesar das discordâncias da atual situação, os textos que estamos tentando comentar têm em comum uma crítica materialista da religião, baseada na nossa realidade latino-americana, onde as diferenças evidenciam um terreno compartilhado. Os diagnósticos e as propostas de ação política que divergem entre si encontram um ponto em comum, e é nesse aspecto que reside a oportunidade de debate. Somente o tempo dirá sua relevância.

Notas:

1. Nota do Editor: Os textos mencionados são: “Da Teologia da Libertação ao bolsonarismo”, de André Castro, com a réplica “Mais que perdedores”, de Bruno Reikdal. E, em seguida, “O que resta da Teologia da Libertação?”, de André Castro, com a réplica “Do passado nos resta a luta”, de Bruno Reikdal. Este texto constitui uma tréplica ao segundo ciclo do debate.

2. A afirmação é polêmica, dentre as diversas linhas teóricas que debatem a situação da classe trabalhadora, recomendo dois trabalhos de Francisco de Oliveira: O elo Perdido, classe e identidade de classe (1987) e A era da indeterminação (2007).

3. Estamos falando aqui dos trabalhos que giraram em torno da figura de Procópio Camargo, e podem ser verificados nessas obras do autor: Kardecismo e umbanda: uma interpretação sociológica (1961); Igreja e desenvolvimento (1971) e Católicos, protestantes, espíritas (1973).

4. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica da Razão Dualista/O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.