A violência que o evangelho sofre se traduz na violência que ele comunica, de forma que o Reino de Deus não é apenas dos pacificadores, mas também dos brutos
O título desta reflexão precisa ser explicado, embora possivelmente tenha afastado leitores mais imediatistas. Ele não é publicitário, é literal. Mas precisa ser compreendido na sua integralidade. Para isso, vale a pena considerar o verso bíblico utilizado como inspiração para o título, Mateus 11:12, que em si é muito mais curioso e esclarecedor.
Antes do verso 12, contudo, há um pequeno contexto literário que precisa ser relembrado: nesta ocasião, João Batista está preso, e logo sofrerá as consequências destinadas a um pregador itinerante do Reino de Deus: a decapitação (cf. Mt 14:1-12), ato de violência ordenado pelo tetrarca Herodes como agrado à filha de Herodias. Antes de sua morte, contudo, o Batista tem a oportunidade de enviar a Cristo um questionamento pessoal, comunicado por meio de seus discípulos: “És tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro? (Mt 11:3).
Cristo não envia respostas vazias a seu primo, mas lhe confere o benefício do julgamento e da opinião, testando-o com fatos: “Ide e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos veem, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o evangelho” (Mt 11:4-5; cf. Lc 7:22). As boas novas, no discurso de Cristo, são reconhecidas pelos seus frutos; naturalmente, frutos que beneficiam as populações condenadas. De sorte que o evangelho é facilmente expresso na concretude de suas ações e na urgência de sua resposta às mazelas político-sociais. De todas as possibilidades de resposta, aquela que possui aspecto imediato e pragmático é a preferida para exemplificar a chegada do Reino de Deus. Como não há réplica, subentende-se que ela bastou para o profeta condenado.
Após responder aos mensageiros de seu primo, Jesus passa a discursar sobre João Batista. A sua fala, contudo, ocorre como resposta a um sentimento que flutua quase imperceptível no texto: o triste destino violento daqueles que se dedicam à pregação das boas novas. O Batista estava condenado à morte pelas autoridades por causa de sua vocação profética. Seria esse o destino dos revolucionários que os seguiam? Até quando o grupo poderia dar livre expressão a seus discursos e ações? Seria Jesus, o carpinteiro, o próximo condenado? Momentos antes, Cristo já havia advertido a seus discípulos: “Não penseis que vim trazer paz à terra, não vim trazer paz, mas espada” (Mt 10:34). E o aprisionamento de seu primo, versos depois, é a prova de que ele não estava usando metáforas.
Num momento explosivo, provavelmente tomado por sentimentos de profunda indignação, nos versos 7-8, Jesus confronta sua audiência com questões desafiadoras a respeito de João Batista: “Que saístes a ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? Sim, que saístes a ver? Um homem vestido de roupas finas?” (Mt 11:7-8). Em outras palavras, Jesus questiona o que o povo imaginava encontrar no ministério profético de seu primo: João não é um “caniço agitado pelo vento”, isto é, uma planta frágil, flexível e quebradiça, facilmente arrebentada pela brisa do Jordão e pisada pelos homens (Is 42:3; 1Rs 14:15; 2Rs 18:21); ele também não veste “roupas finas”, como aqueles que vivem luxuosamente ao lado das autoridades, porque “os que se vestem bem e vivem no luxo assistem nos palácios dos reis” (Lc 7:25; cf. Mt 11:8). Com essas palavras, Jesus sugere que João é um bruto que vive com o povo e, assim, “muito mais que um profeta”.
A descrição que Jesus faz de João Batista o coloca na mesma posição de muitos militantes políticos guerrilheiros, e não é oferecida à toa: a pregação do evangelho, como é evidente na narrativa, exige de seus adeptos condições físicas e psicológicas para enfrentar a perseguição, a tortura, o abandono da família, a condenação da cruz (cf. Mt 10:34-39), entre outras infinitas formas de violência aplicadas pelo império contra ameaças de insurreição. Se há um discurso insistente nos evangelhos é a realidade da perseguição e da condenação aplicada aos discípulos de Cristo pelas autoridades políticas e religiosas.
É neste contexto que surge, brilhante, o verso que inspira esse texto:
“Desde os dias de João Batista até agora, o Reino dos Céus é tomado à força, e os que usam de força se apoderam dele” (Mt 11:12, NVI).
Entre os estudiosos do Novo Testamento, muito se debate sobre esse verso devido à natureza combativa que ele comunica. Não por acaso, essa discussão é intensificada por causa dos verbos utilizados na sentença: βιάζεται (biazetai), por exemplo, traduzido como “tomado à força”, comunica uma ação realizada de maneira esforçada ou até violenta; no final do verso, a expressão grega ἁρπάζουσιν αὐτήν (harpazousin auten), “se apoderam dele”, abrange ações que comunicam o desde o ato de “agarrar” até “saquear”. Como higienizar o texto de forma que transpareça passividade e reduza seu tom combativo? O mesmo verbo, biazetai, é utilizado em Lucas 16:16 (NVI): “A Lei e os Profetas profetizaram até João. Desse tempo em diante estão sendo pregadas as boas novas do Reino de Deus, e todos tentam forçar [biazetai] sua entrada nele”.
Desconsiderar essa faceta na fala de Cristo torna pouco revolucionário o ministério de João Batista e maquia as adversidades ocasionadas pela combatividade do evangelho. Mais do que isso, fortalece a noção de um discipulado “neutro”, que se dedica à contemplação passiva; reforça uma vida cristã de caniços ao vento, todos bem vestidos para o banquete luxuoso regado por boa música e profundas reflexões existenciais. Mas o Reino de Deus é estranho a medidas pouco intencionais, pois “a sabedoria é justificada por suas obras” (Mt 11:19).
O discurso de Cristo em torno de Mateus 11:12 dá a entender que o Reino de Deus é conquistado à força, com ferocidade, insistência, impetuosidade, brutalidade, rigor, perseverança e violência contra as ações demoníacas predatórias que oprimem os filhos de Deus. Vale ressaltar, como o fez o falecido poeta Ernesto Cardenal, em 1979, que a violência do reino não é uma ação planejada, mas protetiva; ela é resposta inevitável a um mundo administrado por esse método. Cardenal sofria com o povo, em Nicarágua, às custas de uma oligarquia truculenta, sob influência estadunidense, que resultava num enorme contingente de excluídos e miseráveis. Por isso, para ele:
“Não se cria a violência: ela existe há quarenta anos, de forma brutal, sobre o povo nicaraguense. O sistema capitalista, no qual a Nicarágua e quase toda a América Latina – à exceção de Cuba – encontram-se integradas, é intrinsecamente violento.”
É fato que o evangelho também é dos pacificadores; daqueles que oferecem o outro lado face; dos que, a todo custo, buscam a paz e a reconciliação. Quando afirmo que o Reino de Deus é conquistado com ações radicais, violentas e imperativas não nego o seu aspecto amoroso e paciente: na verdade reconheço que paz, amor e paciência não são privilégios de todos, em todo tempo. E que o Reino de Deus não se conquista apenas por meio da diplomacia, como atuam os que vestem roupas finas nos palácios, e o fazem muito bem. O Reino de Deus também é dos brutos.