Conservadores oferecem críticas razoáveis à política norte-americana, mas tropeçam em seus preconceitos


“Esse púlpito não será lugar de politização.” Essa frase, proferida pelo Pr. Gilson Grüdtner, pastor do UNASP-SP, no último sábado (30), ecoou ironicamente ao longo de seus dois sermões escatológicos, nos quais o pastor juntou Biden, o Papa Francisco, jesuítas, China, Davos e homossexuais numa grande conspiração satânica mundial. O objetivo dessa conspiração? A implantação de uma nova ordem mundial sob o número da besta, que agora não mais se resume ao decreto dominical, mas também inclui o que Gilson chama de pautas “progressistas”.

Eu poderia dedicar este texto a uma verificação dos fatos e das ‘inovações’ teológicas em suas pregações, mas fazê-lo não responderia minha principal pergunta: o que leva o pastor responsável por um centro universitário de excelência acadêmica a usar sua posição privilegiada para difundir teorias da conspiração por todo o país? Por mais que não seja possível para nós desvendar o que está na alma do Pr. Gilson, certas ironias e armadilhas retóricas em seu discurso denunciam pelo menos parte de suas motivações — e o colocam numa posição a princípio paradoxal.

O paradoxo ao qual me refiro é o de que suas motivações declaradas sobre o púlpito — isto é, sua preocupação com o imperialismo estadunidense e sua desconfiança quanto a declarações falsas e vazias de caridade e justiça social — são partilhadas por muitos na esquerda e na direita, na Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) e em outras denominações. Eu mesmo, enquanto adventista do sétimo dia, marxista e zelota, tenho as mesmíssimas preocupações que o Pr. Gilson. Ele age como um zelota e como muitos marxistas ao enfatizar a ameaça representada pelo imperialismo e pelo militarismo norte-americano. De fato, ao falar do “imperialismo cultural, político, militar e econômico”, Gilson está citando um trecho de artigo da Unisinos que encaminha os leitores a outro artigo, o qual, ao discutir o conceito, usa consequências da Lava-Jato e a agressão internacional contra a Venezuela como exemplos de imperialismo. Seria Gilson Grüdtner um pastor nacionalista e antiimperialista, crítico da Lava-Jato e do envolvimento dos EUA com o governo venezuelano? Caso seja, eu o saúdo como camarada. Mas a pergunta fica no ar.

A desconfiança de Gilson quanto às boas intenções de Joe Biden também seria, a princípio, bastante razoável — como confiar, afinal, em um político que já defendeu políticas de segregação racial nos anos 70 e que foi diretamente responsável por tornar a população carcerária dos EUA a maior do mundo, numa proporção de 5 negros presos para 1 branco? Desconfiar do Fórum Econômico Mundial, que se reuniria em Davos esse ano, também é natural para quem conhece sua atuação sistemática a favor dos interesses mundiais da burguesia e seu capital — agenda já conhecida para aqueles que olham com um pouco mais de atenção para o Relatório de Competitividade Global, por exemplo. Mas, infelizmente, o pastor desconfia de bilionários pelos motivos errados: o Grande Reset, título dado ao próximo encontro do Fórum e grande fonte dos temores de Gilson, só segue a tradição de fazer seus participantes bilionários parecerem-se mais preocupados com a população de seus países do que realmente estão. O encontro de 2012, por exemplo, chamava-se A Grande Transformação, mas não vimos qualquer transformação que não fosse no sentido que já conhecemos: mais riqueza aos ricos, mais pobreza aos pobres. Estaria Gilson preocupado com essa falsa demonstração de caridade por parte dos ricos? Caso esteja, eu o saúdo como camarada. Mas a pergunta fica no ar.

Suas motivações e afiliações ficam mais claras, no entanto, quando o pastor tenta conectar preocupações aparentemente razoáveis ao perigo das pautas “progressistas”. Citando “seu amigo” Michelson Borges, cujo alinhamento com a extrema-direita já foi demonstrado pela Zelota, Gilson parte de uma base promissora para tropeçar em seus próprios preconceitos. Biden, então, não estaria preocupado com a expansão do capital norte-americano e com a realização de mais golpes de Estado pelo mundo, e sim com a imposição da aceitação LGBTQIA+ às igrejas — tudo isso em aliança com o Papa, é claro. “E quando essas leis chegarem às escolas e igrejas? Qualquer garoto vai dizer assim, ‘eu me sinto menina’, e vai no banheiro das meninas”, denuncia o pastor, indignado. Sua grande evidência de tais planos seria uma ordem executiva ‘contra a discriminação’ emitida pela Casa Branca.

Suas preocupações, tanto com o Grande Reset quanto com o avanço de direitos para a população LGBTQIA+, são compartilhadas por conhecidas figuras políticas da extrema-direita, como o Ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo e os comentaristas políticos Ben Shapiro e Glenn Beck. Gilson, no entanto, jura neutralidade política: o “altar politizado” seria sintoma de uma sincronia da igreja com o “trono do mundo”, como implica o título de seu segundo sermão. Sua prioridade, afinal, não é “a defesa de um partido ou outro”; seria ela, então, o combate a cristãos adventistas que ele já apelidou de “filhos do demônio”? A pergunta fica no ar. Mas impressiona a pressa com que o pastor e seus amigos recolhem todo tipo de evidência que dê um verniz teológico a suas ideologias e fobias. O próprio “acordo secreto da China com o Vaticano”, cujas contrapartidas a favor da China seriam, de acordo com Gilson, desconhecidas, deixariam de sê-lo caso o pastor terminasse de ler os artigos que ele mesmo indica: enquanto a China reconheceu a autoridade do Vaticano para a nomeação de bispos em seu território, o Papa Francisco readmitiu sete bispos chineses que tinham sido excomungados anteriormente.

Gilson Grüdtner, como alguns de seus colegas de extrema direita, manifesta muitas vezes preocupações legítimas. Mas suas ideologias e seu medo de movimentos que desconhece — sejam estes feministas, antirracistas, ou pró-LGBTQIA+ — servem-lhe como trave nos olhos e o fazem tropeçar. Será que algum dia o UNASP se abrirá ao diálogo e deixará de difundir mentiras em rede nacional? No dia em que o fizerem, eu os saúdo como camaradas.

Mas a pergunta fica no ar.