Diferentes movimentos surgem na igreja adventista como iniciativas de autocrítica, embora sejam interpretados como rebelião ou dissidência pela liderança.
Por Alvin Masarira | Adventist Today – Traduzido e adaptado pela equipe da revista Zelota.
A pandemia da nova COVID-19 está trazendo consigo desafios sem precedentes a todos. Diante de problemas pessoais seríssimos que reduzem os recursos à disposição, as pessoas começam a se questionar sobre o que é crítico e central em suas vidas, e a julgar o que é opcional ou periférico. Esses recursos não necessariamente são monetários. Podem ser coisas como tempo, alianças, devoção, fidelidade e lealdade.
Crises pessoais levam a questionamentos sobre relações, carreira, a sociedade e até mesmo crenças e afiliações religiosas. “Pelo que realmente vale a pena lutar? Será que eu estou direcionando meus recursos para o lugar correto? Essa coisa que ocupa uma parte tão considerável do meu tempo realmente é digna da minha atenção? Será que algumas áreas da minha vida deveriam mudar? O que, de fato, importa? Do que eu posso me desfazer?” Responder essas perguntas é um exercício altamente pessoal e subjetivo.
Questões existenciais
O risco de infecção é tão presente em nossas vidas que, no fundo, ninguém se sente absolutamente seguro. E na ausência de uma cura, todos sabem que a infecção pode levar à internação hospitalar ou até mesmo à morte. Essa realidade tem levado as pessoas a analisar suas almas profundamente, perguntando-se questões existenciais.
“Se eu adoecesse e morresse (o que é uma possibilidade perfeitamente razoável), eu teria gastado minha vida e meus recursos em coisas que agradam a Deus? Será que eu tenho sido fiel ao chamado que Ele me fez?” Essas questões existenciais são direcionadas também para nossas organizações, sistemas de crença, fé e prática religiosa. “Será que os ensinamentos e práticas que eu recebi e segui estão de acordo com a vontade e o propósito de Deus para minha vida? Ou será que eu estive apenas seguindo tradições humanas disfarçadas de religião?” Não existem vacas sagradas; por fim, percebemos que tudo termina em nós. No dia do juízo, face a face com o Senhor, nossas vidas serão revistas, e não poderemos nos esconder por trás da fachada de nossas organizações. Eu e você seremos responsabilizados individualmente diante de Deus.
Mesmo assim iremos examinar a fundo a organização, na medida em que ela desempenhou um papel importante em moldar nosso sistema de crença. Tendo isso em vista, não deveria ser surpresa pra ninguém que há uma espécie de revolução velada, uma “rebelião interna”, entre os membros de igrejas ao redor do mundo. Essa realidade tem sido especialmente desconfortável para líderes religiosos de diversas organizações, já acostumados a um alto padrão de lealdade e apoio incondicional e sem questionamentos por parte de seus seguidores.
Alguns líderes creem que essas conversas são ataques pessoais a si mesmos; mas eles não percebem que as pessoas estão, na realidade, perguntando a si mesmas sobre suas crenças e o que prezam mais profundamente. Seriam essas crenças de tantos anos de fato verdadeiras? Sua lealdade foi dirigida a Deus, ou a homens sob o estandarte de organizações religiosas? Eles estavam comprometidos com Deus ou com a igreja? Embora os líderes levem essas perguntas para o lado pessoal, esse processo de questionamento é mais sofrido e doloroso para os indivíduos que se perguntam do que para suas organizações e líderes. A conclusão de se estar errado (mesmo que de maneira sincera) por muitos anos pode ser avassaladora.
A Igreja tem a capacidade de se auto-examinar?
A Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) foi fundada sob a crença de que Deus a convocou para a realidade dos últimos dias, daí o nome “igreja remanescente”. Ou seja, não virá outra igreja pregadora da Verdade depois de nós. Nosso entendimento de Apocalipse 14 nos posiciona na “unha do dedão” da estátua de Daniel 2. Alguns membros da igreja, e até alguns líderes, declaram publicamente que “só houve um Martinho Lutero e uma única Reforma; não haverá outra.” Isso leva à crença de que a igreja já obteve a verdade completa.
Munida dessa visão, é grande a dificuldade que a IASD possui em levantar a possibilidade de, possivelmente, existirem muitos aspectos em nossa estrutura, organização e sistema de crenças que precisam de um escrutínio profundo. Mas isso leva a uma estranha contradição, tendo em vista nossos ensinamentos de que a igreja contemporânea é a Laodiceana. Apocalipse 3:17 afirma: “Você diz: Estou rico, adquiri riquezas e não preciso de nada. Não reconhece, porém, que é miserável, digno de compaixão, pobre, cego e que está nu.” As riquezas aqui referidas não se referem necessariamente ao material, mas podem incluir riqueza em conhecimento e entendimento.
É possível que a IASD tenha se iludido com a ideia de que não há nada mais a aprender nem mudar? Mesmo a despeito das diversas falas de Ellen White apontando o contrário disso?
“Termos a verdade é um fato e devemos manter firmemente as posições que não podem ser abaladas; mas não devemos olhar com suspeita sobre qualquer nova luz que Deus possa enviar, dizendo: não vemos nenhuma necessidade de mais luz além da antiga verdade que recebemos até aqui e sobre a qual estamos firmados. Enquanto mantivermos essa posição, o testemunho da Testemunha Verdadeira aplica-se a nossos casos como reprovação: ‘E não sabes que és um desgraçado, e miserável, e pobre, e cego, e nu’ (Ap 3:17). Aqueles que se sentem ricos e crescendo em bens, sem de nada necessitar, estão cegos em relação à sua verdadeira condição diante de Deus e não têm consciência disso” (Review and Herald, 7 de agosto de 1894).
“Um espírito de farisaísmo tem se arvorado sobre aqueles que professam seguir a verdade nesses últimos dias. Eles estão satisfeitos consigo mesmos. Dizem, ‘Temos a verdade. Não há mais nova luz para o povo de Deus.’ Mas não estamos seguros quando assumimos uma posição em que não aceitaremos mais nada além do que estabelecemos como verdade. Devemos tomar a Bíblia e investigá-la profundamente por conta própria. Devemos cavar fundo no conhecimento da palavra de Deus em busca da verdade. ‘A luz é concedida para os justos, e alegria aos puros de coração’. Alguns me perguntaram se eu acreditava que havia mais luz para o povo de Deus. Nossas mentes se tornaram tão estreitas que parecemos não entender a grandiosidade do trabalho que o Senhor fará por nós. Uma luz crescente brilhará sobre nós; pois ‘o caminho do justo é como uma luz brilhante, que brilha mais e mais até o amanhecer pleno’” (Review and Herald, 7 de Agosto de 1894).
“Ao que está em viva comunhão com o Sol da Justiça, sempre se revelará nova luz sobre a Palavra de Deus. Ninguém deve chegar à conclusão de que não há mais verdades a serem reveladas. O que busca a verdade com diligência e oração encontrará preciosos raios de luz que ainda hão de brilhar da Palavra de Deus. Ainda se acham dispersas muitas gemas que devem ser reunidas para tornar-se propriedade do povo remanescente de Deus” (Conselhos sobre a Escola Sabatina, p. 34, 1892).
Espaço para crescimento
Muitos adventistas, quando leem essas afirmações, têm dificuldade em acreditar que estas se aplicam a eles mesmos. A quem pensam que Ellen White estava se referindo? Esses e outros escritos de Ellen White implicam que a fé Adventista deveria estar em constante autocrítica, pois há sempre espaço para crescimento — tanto em nosso conhecimento humano falho, quanto na aplicação da verdade.
Onde precisamos crescer? Talvez no que alguns creem ser nossa interpretação exageradamente eurocêntrica da profecia do fim dos tempos, ou em nossa liturgia, e na percepção de quais estilos musicais são apropriados para o louvor (pela qual somos acusados de ignorar a diversidade cultural). A estrutura organizacional da igreja, seu sistema hierárquico e as decisões dele favorecem ou atrapalham a missão? Ou então: como a igreja respondeu historicamente aos problemas de discriminação racial e de gênero na sociedade? Será que a igreja tem sido fiel a Miquéias 6:8 (“Ele mostrou a você, ó homem, o que é bom e o que o Senhor exige: Pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus”)? Muitas questões podem ser levantadas sobre a resposta da igreja ao movimento Black Lives Matter. Na realidade, existem problemas sociais em diversas partes ao redor do mundo — e como a igreja tem agido contra esses problemas, no tocante ao entendimento e à aplicação da verdade, pureza, misericórdia e justiça?
Existe um perigo real de que a igreja se comporte tal como os judeus de antigamente, convencidos de que já tinham entendido tudo sobre Deus, e de que eram seu povo. No entanto, quando o próprio Deus encarnou diante deles, Ele foi rejeitado. Na realidade, eles O mataram.
Como já dito anteriormente, estamos em um momento de autoanálise: existe uma barreira entre o indivíduo e Deus? Estamos começando a entender a admoestação de Paulo “ponham em ação a salvação de vocês com temor e tremor” (Fp 2:12). Nós percebemos que um dia estaremos diante do Santo Deus, que nos pedirá contas das coisas que cremos e fizemos. Nesse dia, não bastará dizer “Senhor, foi minha igreja que me disse isso”. Mesmo assim, não deveria nos surpreender que em momentos de crise pessoal, quando a própria mortalidade das pessoas é trazida à tona, muitas coisas que sempre foram consideradas corretas são questionadas, incluindo a igreja como organização e seus posicionamentos. Como os millennials estão ocupando lugares de cada vez mais destaque na IASD (e também em outras organizações religiosas), veremos a instituição ser desafiada. Muitas perguntas estão sendo feitas, não necessariamente sobre Deus, mas sobre como a organização representou ou refletiu Deus. Minha pergunta é: Será que o centro vai aguentar? Será que a igreja como instituição sairá ilesa de toda essa crítica?
Uma autocrítica necessária
Eu estou pessoalmente convencido de que toda essa análise é boa para a igreja, porque só pode fazer dela um veículo melhor em favor da missão. Eu também espero que a liderança abrace esse movimento ao invés de olhá-lo com suspeitas. Embora a liderança da igreja tenha uma tendência generalizada a levar os ataques para o pessoal, isso não é sobre eles. A igreja é maior que eles. O lockdown durante o COVID-19 moveu a igreja dos templos para os lares das pessoas. Esse movimento levou a um crescimento exponencial de conversas entre membros leigos, em plataformas on-line como o Zoom. Com as possibilidades tremendas que a internet oferece, os membros estão tendo conversas e entrando em assuntos que jamais seriam ministrados pela liderança e estrutura da igreja. Esse movimento também criou redes de relacionamento globais entre os adventistas na América do Norte, África, Europa, Ásia etc. — como o próprio seminário aos sábado da Adventist Today. Muitas das perguntas que as pessoas têm feito, ao redor do mundo, são sobre a instituição Adventista.
Eu sempre tive a opinião de que, apesar da tremenda dor que a pandemia do COVID-19 causou nas pessoas, nas organizações e nas nações, ela também trouxe uma grande oportunidade à igreja como instituição e aos membros como indivíduos: a de fazer uma profunda introspecção sobre quem somos, nosso propósito, e se ainda estamos focados na nossa missão. A pandemia nos fez entender que muitas coisas que antes considerávamos essenciais são, na realidade, periféricas. Eu espero que usemos sabiamente essa janela de oportunidade para, reconsiderar, voltar atrás e nos perguntar: com o que a igreja vai se parecer quando finalmente chegarmos ao outro lado? Será que a instituição vai aguentar?