Documento adventista sobre política confunde terminologias, contradiz posicionamentos e aliena membresia


A Igreja Adventista do sétimo dia (IASD) adota a postura de oficializar posições e instruções sobre temas não doutrinários através de declarações e documentos oficiais.  Muitos desses documentos são elaborados conforme a necessidade de esclarecer questões que são temas de debate na sociedade, como é o caso da declaração sobre imunização, publicada recentemente pela igreja mundial como resposta ao crescimento do movimento anti-vacina e às suspeitas ao redor do imunizante contra a Covid-19.  

Apesar de expressarem um tom de aconselhamento e instrução, os documentos apresentam uma diretiva clara para membros, servidores e servidoras das igrejas locais, instituições de ensino, hospitais e meios de comunicação oficial.  Algumas dessas declarações e documentos de caráter mais político trazem esclarecimentos extremamente relevantes para nossa comunidade e posicionam a igreja de forma institucional perante o debate político, como no caso citado acima.  

Outros, no entanto, falham em instruir a igreja em alguns temas, e, evidenciando a falta de conhecimento do autor ou autores do documento, transmitem uma posição confusa, estereotipada e com pouco embasamento bíblico, trazendo mais conflitos do que esclarecimentos sobre o tema.  Um ótimo exemplo é o documento oficial que instrui a respeito da postura dos adventistas em relação à política, que foi atualizado em agosto de 2020 e que se posiciona sobre a relação dos adventistas com a política. O documento, que existe desde 2017, e dá diretrizes para líderes e membros da América do Sul, foi elaborado e votado pela igreja (Divisão Sul Americana), segundo reportagem do site oficial de notícias, devido à necessidade da igreja em orientar seus membros que vivem em uma democracia e participam de eleições.  

Tendo em mente que esse é o objetivo do documento, gostaria de apresentar aqui uma leitura crítica do mesmo, pontuando falhas no que diz respeito aos conceitos políticos apresentados pelo texto e às contradições geradas por essas concepções equivocadas.

Conforme o documento declara logo no início, seu objetivo não é “substituir os conselhos divinos, mas sim expressar claramente a compreensão que a Igreja tem no momento acerca do relacionamento institucional com os poderes públicos e os assuntos políticos, bem como os deveres de seus membros como cidadãos.” Apesar de estabelecer esse objetivo, o documento utiliza passagens da Bíblia sem levar em conta seu contexto político e social. Ele também não possui clareza em diversos conceitos que aborda, como os conceitos de separação entre Estado e Igreja, liberdade religiosa, política partidária e política de governo.  Esses conceitos, infelizmente, não são acessíveis para grande parte da nossa membresia e também da nossa liderança. 

Portanto, mais do que sugerir uma crítica ao documento, este texto propõe uma reflexão aos líderes e membros da IASD sobre a necessidade de não só atualizar o documento para que ele seja mais claro e conciliador no que se refere à política dentro da igreja, mas de fato buscar mudanças na prática política adventista. Também pretendo com este texto provocar uma reflexão sobre o papel da IASD no contexto político e social em que vivemos hoje no Brasil: um contexto de extrema bipolaridade nos discursos políticos, de aumento da pobreza, da violência no discurso e nas práticas políticas e o aumento da vulnerabilidade social das famílias brasileiras.

Os adventistas e a política partidária

O primeiro ponto do documento, intitulado “ Os adventistas e a política partidária”, aborda questões gerais sobre política e política partidária. Uma das instruções apresentada nesse ponto é que os pastores e servidores da IASD não devem se filiar a partidos políticos, e que nos ensinamentos de Jesus não há base segura para militância político-partidária institucional; isto é, a IASD não tem e nem deve ter vínculo com partidos políticos. 

Na prática, a igreja não consegue se filiar a partidos enquanto instituição. Os partidos são compostos por pessoas físicas. Essas instruções sugerem, então, que a igreja não apoiaria ou demonstraria apoio a nenhum partido. Também fica clara a regra de que pastores e demais servidores da obra devem se afastar do seu cargo na igreja caso queiram tomar posse de um cargo público. Nesse ponto, a postura do documento condiz com uma ética política e religiosa de separar a igreja e suas crenças das disputas ideológicas partidárias. 

O que propomos para a reflexão, no entanto, é: em que medida a igreja e suas diversas ramificações, como os centros universitários, têm seguido essa orientação? Temos como exemplo o Estado de São Paulo, onde apenas nos últimos anos ocorreram regularmente palestras, aulas inaugurais, ou mesmo espaços reservados durante o culto para que políticos falassem à congregação. O UNASP em especial, tanto no campus Engenheiro Coelho quanto em São Paulo, aparenta ter uma conexão com políticos do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB). 

Em diversas ocasiões (fevereiro de 2013; maio de 2015; agosto de 2017), por exemplo, o ex-governador do Estado de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB) esteve presente no campus São Paulo, conduzindo aulas inaugurais e também discursando em datas comemorativas da IASD — como o culto de ação de graças pelos 100 anos do internato adventista em São Paulo. Já o campus de Engenheiro Coelho, que também recebeu o então governador Geraldo Alckmin (PSDB) em 2003 e três ministros da educação — Paulo Renato de Souza (2001), no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Rossieli Soares (2018), no governo de Michel Temer (PMDB) e Milton Ribeiro (2020), no atual governo de Jair Bolsonaro (sem partido) —  recebeu, em agosto (21) de 2019, o vice-presidente da República Antônio Hamilton Martins Mourão (PRTB). 

Em todas essas ocasiões, há uma polêmica em torno da necessidade da igreja em trazer tais figuras ao púlpito. A presença desses políticos em si não fere o princípio da laicidade. No entanto, ao abrir espaço dentro das programações e cultos para o discurso de um político, as igrejas devem atentar para que isso seja feito de forma democrática. Nesse sentido, aponto para o fato de que até hoje as autoridades políticas presentes nesses eventos são em maioria filiadas ao PSDB ou a outros partidos de direita, como o PMDB (atual MDB).  Gostaria de saber se esses convites também são estendidos a governos de outros partidos tidos como de esquerda. Por exemplo, Fernando Haddad (PT) foi ministro da educação por 8 anos. Em quantas ocasiões os convites para esses eventos foram estendidos a ele? Enquanto era prefeito da cidade de São Paulo, na ocasião do aniversário de 100 anos do UNASP, em 2015, Haddad recebeu o convite para falar no culto de ação de graças?  

O comprometimento da igreja em não demonstrar preferência por partidos políticos é uma postura oficial e louvável da IASD, mas esta não deve ser apenas uma postura de documentos oficiais; deve ser demonstrada na prática. Caso sejam necessários, tais convites oficiais poderiam ocorrer apenas como cerimônias da igreja de cunho comemorativo, ampliados às autoridades de todos os partidos. Os convites poderiam ser divulgados para a membresia, de forma transparente, para que fique claro se há ou não preferência por partidos. 

Além da falta de pluralidade política nesses eventos e cultos, é importante questionar o formato fechado dessas programações. Se abrimos espaço e convidamos um político para dentro da igreja, deveríamos tomar alguns cuidados: primeiramente, reforçamos a posição de que o discurso da autoridade política não deveria ocorrer durante cultos. Em segundo lugar, as programações com a presença de autoridades políticas deveriam ter um espaço de diálogo, de modo que sejam menos um palanque e mais um espaço de interação entre comunidade e autoridade. Esse diálogo não deveria ser um incômodo para nenhuma autoridade eleita. 

Em geral, quando um político vai visitar uma fábrica, uma unidade educacional ou de saúde, essa visita é um espaço de diálogo. Esses espaços de diálogo funcionam não só para que a população apresente demandas, mas para que autoridade e público possam expressar suas opiniões em relação às políticas públicas em curso no governo e conversar sobre os problemas enfrentados pela comunidade local.  

Com a informação dos recipientes dos convites, a membresia tem condições para entender que caso só haja um partido representado na cerimônia, não é por falta de convite às demais autoridades de outras legendas partidárias. Além disso, através de um formato de evento que permita o diálogo entre a autoridade e a membresia, a igreja se afirma democraticamente como uma instituição que dialoga com o poder público e não simplesmente apoia indiscriminadamente determinados políticos. 

A mudança de postura em relação à presença de autoridades políticas dentro das igrejas, como proposto, contribuiria para que, na prática, assim como consta no documento oficial, a IASD não demonstre compromisso com legendas partidárias, conforme consta no trecho abaixo que extraímos do texto do documento:

“A Igreja encontra nos ensinos do Senhor Jesus e dos apóstolos base segura para evitar qualquer militância político-partidária institucional (a). O cristianismo apostólico cumpriu sua missão evangélica sob as estruturas opressoras do Império Romano sem se voltar contra elas. (b) O próprio Cristo afirmou que Seu reino “não é deste mundo” e que, portanto, os Seus “ministros” não empunham bandeiras políticas (João 18:36) (c). Qualquer posicionamento ou compromisso com legendas partidárias dificultaria a pregação do evangelho a todos indistintamente (d)”  (indicações a, b, c, d são grifos nossos).

Seguindo com a leitura do documento, gostaria de comentar especificamente o trecho supracitado, que aborda aspectos importantes sobre política de forma pouco clara. Nesse ponto, o documento, que até então se dedicava a falar da relação da igreja com partidos — o que de fato o trecho faz, porém apenas na primeira (a) e última frase (d) — introduz uma  nova dimensão da relação entre a IASD e política. 

Com a  frase: “ O cristianismo apostólico cumpriu sua missão evangélica sob as estruturas opressoras do Império Romano sem se voltar contra elas”, o documento não fala mais sobre a relação da IASD ou dos cristãos com partidos políticos; ele está falando da relação da IASD com o governo. E para pensar qual a relação ideal da igreja e sua membresia com o governo, é preciso entender o que o governo representa institucionalmente no nosso país. Se é necessário citar a Bíblia como fonte de inspiração para nosso comportamento diante do governo, é preciso entender o contexto bíblico do que foi e era o governo no Império Romano, assim como o contexto atual de governo no Brasil.

Este é o próximo ponto sobre o qual gostaria de refletir: a relação entre Igreja e governo. E para entender o que é essa relação, é preciso primeiro entender o que é a relação entre Igreja e Estado, para então diferenciá-la da relação entre a Igreja e os governos. Está confuso? Não desista do texto ainda! Esses são temas complexos, mas que devemos procurar entender para melhor compreendermos nosso papel e o papel da igreja no sistema político em que vivemos. Por isso, vamos separar as próximas sessões do texto em: os adventistas e o Estado; os adventistas e o governo; os adventistas e a política. 

Os adventistas e o Estado – Laicidade e liberdade religiosa

O documento afirma o apoio da IASD ao princípio da separação entre Estado e Igreja — o princípio da laicidade. Um Estado é laico quando promove oficialmente a separação entre Estado e religião. Dentro desse princípio, o Estado (poderes legislativo, executivo e judiciário) deve tratar cidadãs e cidadãos de forma igual e não privilegiar nenhuma crença em detrimento de outra; respeitar o direito de não crença dos seus cidadãos e cidadãs; e garantir a liberdade de cada indivíduo para não adotar nenhuma religião de forma compulsória. 

Nesse modelo, o Estado deve se abster da interferência de qualquer corrente religiosa em assuntos  estatais. Isso quer dizer que as leis e as políticas públicas devem ser formuladas de forma a pensar no bem amplo da população, e não de forma a defender os interesses e princípios de determinada religião.  Isso não significa que o Estado seja ateu ou agnóstico, e é justamente por isso que a liberdade religiosa tem um papel fundamental e complementar ao princípio do Estado Laico, o qual deve, então, garantir e proteger a liberdade de crença e a prática religiosa de cada cidadã e cidadão.  

A Igreja Adventista do Sétimo Dia preza pela divisão institucional entre Igreja e Estado desde sua fundação, principalmente por entender a importância da liberdade religiosa para o exercício pleno da religião de todo adventista. Nesse sentido, é compreensível que a IASD mantenha um ativismo político em defesa da liberdade religiosa e do Estado Laico. Nesse caso, a relação da Igreja com o Estado deve se limitar ao cultivo do diálogo com todas as esferas estatais, visando garantir que a laicidade e a liberdade religiosa sejam promovidas pelos poderes executivo, legislativo e judiciário. É o que faz a IASD, por exemplo, ao interceder por todos os sabatistas para que estes tenham dias e horários alternativos em concursos públicos, vestibulares, no ENEM e etc., mantendo inclusive um corpo jurídico pronto a interceder diante de empresas e universidades pelo direito à guarda do sábado.

Um papel que não cabe à IASD dentro dos princípios de laicidade e liberdade religiosa é o de defender, promover ou militar de forma ativa através de pastores, publicações e programas de rádio e TV a favor de leis que promovem nossas crenças religiosas em detrimento da liberdade de crença de outros compatriotas. Este é o caso, por exemplo, de ativismos políticos que defendam a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Por mais que a igreja tenha uma visão oficial contra o casamento igualitário, não é papel da igreja implementar através de leis essa proibição para todo o país. Isso por si só fere a liberdade de crença de outros grupos. 

É necessário garantir a liberdade de crer enquanto igreja nos nossos princípios e regras de vida, mas é nosso dever igualmente respeitar as decisões que o Estado toma e que ampliam os direitos de outras pessoas. Em tais casos, não fica claro até que ponto o documento oficial da igreja consegue transmitir corretamente o princípio da liberdade religiosa. 

Não há como defender, ao mesmo tempo, a liberdade religiosa e a separação entre Estado e Igreja e logo depois instruir seus membros a votar em candidatos que tenham valores cristãos sem especificar quais são esses valores, como faz o documento. Instruir a membresia a votar em candidatos que estejam de acordo com os princípios divinos é subjetivo. Isso permite que pastores e líderes entendam que podem instruir seus membros a votar em candidatos que defendem a implementação de crenças adventistas através de leis elaboradas pelo Estado. O que, novamente, não condiz com a liberdade religiosa e com a laicidade que defendemos. 

Nesse sentido, o discurso mais coerente a ser feito pela IASD é o de instruir seus membros para que votem de forma consciente, com base numa pesquisa ampla de propostas das candidaturas, e para que busquem candidatas e candidatos cuja vida condiz com seus discursos, os quais devem obviamente defender a liberdade religiosa e a laicidade. A IASD tem falhado em resolver estas ambiguidades e em instruir seus líderes e pastores a adotarem posturas que, de fato, defendam a liberdade religiosa e a laicidade; conforme ficou evidente no texto publicado recentemente pela revista Zelota, há uma tendência de pastores e outras figuras públicas da igreja em defender pautas de extrema direita, a qual pouco está preocupada com a liberdade religiosa ou a defesa de um Estado Laico.  

Os adventistas e o governo – Quem é a autoridade estabelecida no Brasil?

Para compreendermos a relação que a Igreja pode e deve ter com o governo dentro dos princípios bíblicos, e levando em conta o tipo de democracia que vivemos, precisamos definir quem é o governo, sua função, e com qual autoridade ele governa, do ponto de vista da nossa Constituição Federal. 

O governo, ou poder executivo, é uma das instituições que formam o Estado Brasileiro.  O governo em uma república federativa (como é o Brasil) possui três esferas: Federal, Estadual e Municipal. Ao contrário do que se acredita popularmente, não há hierarquia entre esses entes da federação. Há uma divisão de competências nos diversos setores das políticas públicas. Estados e municípios cooperam entre si e dividem funções conforme suas complexidades, enquanto o governo federal executa as políticas nacionais — como as políticas econômicas e monetárias — e dá diretrizes para programas nacionais. 

Se há uma hierarquia, ou um poder que de fato é a autoridade no Brasil, essa é a Constituição. Todos os poderes no Brasil estão sujeitos à Constituição; nossa Constituição foi elaborada de forma  representativa, e é ela que não só garante nossos direitos e deveres, como também define os deveres do governo para com a população. Nossa Constituição define as regras do jogo democrático, desde como serão as eleições até o direito à saúde pública gratuita, o direito ao trabalho e diversas outras garantias, que vão desde regular o direito à propriedade privada até condicionar o mesmo ao seu uso social. 

O governo brasileiro tem em primeiro lugar, então, o dever de respeitar a Constituição. A autoridade do governo só é válida enquanto esta age dentro da constitucionalidade. Uma das funções do poder legislativo é fiscalizar se o governo está agindo conforme a Constituição, e o poder judiciário deve fiscalizar ambos os poderes (sistema que conhecemos na ciência política como sistema de pesos e contrapesos, termo que tem origem no inglês checks and balances). 

Outro controle que é muito importante a ser exercido sob o governo é o controle social. O controle social é exercido através da cobrança que nós, enquanto cidadãs e cidadãos, fazemos ao governo, e que também é feita por movimentos sociais, partidos políticos que formam a oposição e pela sociedade civil organizada: ONGs, OSCIPs e outras organizações sem fins lucrativos. Outras instituições que pressionam o governo, quase sempre de forma negativa, são as empresas. Um exemplo dessa pressão negativa são as empresas de tabaco, que dedicaram (e ainda dedicam) grande esforço na atividade de lobby, para prevenir que o governo impusesse taxações sobre o tabaco, e também  para  impedir  a exigência de advertência contra os malefícios do fumo nos pacotes de cigarro, atrasando em anos a política de redução do consumo do tabaco na sociedade brasileira.

Há ainda um outro grupo que pode exercer o controle social sobre o governo: as igrejas. Por sermos um país de maioria católica, onde historicamente a Igreja sempre interferiu muito no Estado, pode parecer contraditório que a Igreja também tenha o papel de exercer algum tipo de controle sobre o governo. Porém, é importante lembrar que, em um Estado laico, esse controle não serve para que a Igreja defenda seus próprios interesses — como fazem as empresas privadas — mas para que elas usem sua influência e exerçam controle em forma de cobrança social ao governo. Por exemplo: as igrejas podem cobrar que o governo se preocupe com os pobres e vulneráveis através da implementação de políticas públicas de educação, saúde e saneamento básico, por exemplo. Podem cobrar políticas mais eficientes para o combate a violência sexual contra mulheres e vulneráveis, o fim do trabalho escravo, promover a liberdade religiosa e outras pautas que a igreja creia serem importantes para aliviar o sofrimento dos mais vulneráveis na terra. E finalmente, as igrejas podem e devem cobrar o governo quando ele falha em garantir direitos básicos como o de respirar, somando sua voz à reivindicação por abastecimento de oxigênio nos hospitais públicos de Manaus durante a pandemia. 

Nesse ponto, a relação com o governo difere radicalmente da relação que a Igreja deve ter com os partidos políticos. Enquanto a Igreja deve manter uma postura neutra em relação aos partidos políticos, ela não deve mostrar apatia ou neutralidade em relação ao que faz o governo. No Brasil, um governante tem a função, assim que eleito, independentemente do partido, de governar para todas e todos e de implementar e praticar a justiça social que estabelece nossa Constituição. É por isso que acreditamos na diferenciação dessas esferas de influência da Igreja como um ponto de partida fundamental, e que ainda não se faz claro nos documentos oficiais da IASD e nem em sua postura.

Um exemplo que já parece estar claro para a IASD de quando deve cobrar ou ir contra o governo é quando ele fere as questões de liberdade religiosa, ou quando, por exemplo, o governo impõe a prática de preceitos que seriam antibíblicos. Nas questões de liberdade religiosa é visível o protagonismo da IASD em mobilizar seu time jurídico e cobrar o governo de forma a interceder em favor da liberdade religiosa dos sabatistas. E por isso há certa incoerência na postura da igreja quando esta utiliza versos bíblicos, como no trecho que já destacamos, para defender que ela ou seus membros não devem ir contra o governo.  

Essa postura fica clara no documento, como por exemplo neste trecho: O cristianismo apostólico cumpriu sua missão evangélica sob as estruturas opressoras do Império Romano sem se voltar contra elas.” Conforme já exposto acima, o governo não representa uma autoridade absoluta no Brasil; muito pelo contrário, representa um poder que deve ser controlado pela sociedade. Nosso caso é muito diferente do que era o Império Romano, por exemplo, que estava distante da ideia de democracia que temos hoje e subjugava as nações que estavam sob seu domínio. Não havia uma Constituição estabelecida de forma democrática como é o caso no Brasil. 

A própria interpretação de que não havia revolta ou de que havia pleno respeito à autoridade romana pelo cristianismo da época é questionável, e demonstra desconhecimento dos debates entre especialistas na área. Há diversos episódios de aparente subversão às regras e instituições romanas no Novo Testamento, principalmente os que estão relatados no livro de Atos dos Apóstolos, de onde  Paulo e Pedro são miraculosamente libertos de prisões romanas. Se ser preso por um soldado romano e liberto por um anjo de forma secreta e miraculosa, como acontece com Pedro e está relatado em Atos 12, não é desafiar as estruturas de um Império, não sabemos qual é a definição de subversão para quem escreveu essa frase no documento.

O texto ainda diz que somente quando essas autoridades humanas não respeitam as leis de Deus é que não devemos respeitá-las, e que devemos manter uma relação saudável com o governo. Mas o que é essa relação saudável? É uma relação de neutralidade que compreende apenas convites para cerimônias e inaugurações de prédios de escolas e hospitais adventistas? Se levarmos ao pé da letra, a investida contra o governo quando este fere princípios bíblicos podemos facilmente autorizar à igreja o papel de se opor ao governo quando este é perverso ou injusto. Isso de forma alguma feriria os princípios bíblicos ou desrespeitaria as autoridades, pois toda autoridade eleita no Brasil deve aceitar fiscalização da sociedade e seus representantes, conforme prevê nossa Constituição. 

O problema é que muitas vezes reproduzimos dentro da IASD as relações clientelistas que a Igreja Católica (e agora as igrejas evangélicas) sempre manteve com os governos. Nos comportamos com uma falsa neutralidade, onde nos interessa as relações com políticos conservadores que oferecem uma série de favores à IASD, desde a presença em Camporis e eventos da igreja até a doação de terrenos para escolas adventistas; ou, ainda, através da relação com vereadores, que propõem o “dia do jovem adventista” ou o “dia do desbravador” nas câmaras municipais dos interiores do Brasil. 

Quando é preciso garantir sua liberdade religiosa, a igreja abre todos os caminhos de diálogo com o governo, mas fica em silêncio diante de perversidades que ameaçam a vida de diversas brasileiras e brasileiros. É o caso, por exemplo, do genocídio cometido pelo Estado contra a população jovem e negra das periferias em São Paulo. Quando foi que aproveitamos uma visita do ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB) para exigir-lhe que a polícia pare de matar jovens negros e pare de agir com brutalidade contra as populações pobres? Quando o ex-prefeito de São Paulo, João Dória (PSDB), atual governador do Estado, propôs a implementação de ração humana nas merendas escolares, onde estavam nossos pastores, líderes e jornalistas adventistas para escrever cartas, notas e declarações se pronunciando em defesa da alimentação saudável? Esta agenda, além de ser um princípio valioso para a IASD, é uma mensagem que não agride nenhuma outra crença; pelo contrário, promove o bem comum e afirma seus princípios bíblicos.    

Os Adventistas e a política — Para além das eleições

O segundo ponto do documento, intitulado “Os adventistas e as eleições”, também apresenta contradições. Após defender no ponto 1 o não envolvimento com partidos políticos, o texto declara que a IASD deve apoiar candidatos que promovam os mesmos princípios que a igreja. Essa visão entra em conflito com a declaração anterior de que a igreja não se envolve com partidos. 

No Brasil, não possuímos candidaturas livres de partidos. Todo candidato ou candidata está vinculado a um partido político e ao programa político-partidário do mesmo. No caso do poder legislativo, por exemplo, quando votamos em um determinado candidato, seu partido é quem está de fato recebendo o voto. No caso de o candidato não poder assumir por algum motivo, o partido envia seu suplente para assumir. Partidos que recebem muitos votos conseguem colocar no poder legislativo candidatas e candidatos que tiveram poucos votos; isso porque a legislação eleitoral utiliza os conceitos de “quociente partidário e eleitoral”, que permitem que o excedente de votos obtidos por um candidato em relação ao que ele precisaria para se eleger vá para outros candidatos da mesma legenda. 

Essas orientações expostas no documento não promovem o voto consciente do cidadão, e sim um voto facilmente manipulável por discursos enganosos que visam unicamente atrair o voto de evangélicos. É o caso, por exemplo, da própria orientação de voto em candidatos que defendem o “modelo bíblico de família”, algo que, na prática, frequentemente significa apoiar candidatos contrários ao casamento igualitário. Conforme já dito acima, a IASD, ao defender a liberdade religiosa, não deveria apoiar ou promover discursos de candidatos que ferem este mesmo princípio, pois defender uma legislação com motivações religiosas fere o direito do outro de não crer como a IASD. Políticos como esses, que defendem a imposição de uma moral religiosa via leis, estão em sua maioria envolvidos em escândalos de corrupção e de abuso de poder (tanto pastoral quanto político), como é o caso de figuras como Eduardo Cunha, Silas Malafaia, Marco Feliciano, Flordelis de Souza Flávio Bolsonaro e Jair Bolsonaro, entre tantos outros nomes. 

Mais uma vez, como já mencionado no texto, há um fator que não parece estar claro para os líderes e pastores da IASD: se a liberdade religiosa serve para que o Estado não seja oficialmente católico ou islâmico e assim não persiga sabatistas, ela também serve para que o Estado não seja protestante ou evangélico e persiga outros cristãos, ou outras crenças que não sigam o modelo de família defendido pelos adventistas como sendo o bíblico. Nessa visão, não há espaço para que se defenda dentro da IASD o uso do voto cristão ou da existência de um “voto adventista”, no qual a membresia deva eleger candidatos ou candidatas que se digam cristãos e supostamente defendam os interesses da IASD. É uma questão básica como essa que tem infelizmente dividido a igreja. 

Durante as eleições presidenciais de 2018, em muitas igrejas adventistas, pastores e líderes defenderam, de forma explícita ou implícita, o voto no candidato Jair Bolsonaro, por ser alguém que supostamente defendia a família nos moldes bíblicos. Mas o então candidato, já em seu terceiro casamento, usava a Bíblia para promover ainda mais a violência contra mulheres, indígenas, negros e negras e contra a comunidade LGBTQ+ no Brasil.  

Um dos grandes problemas na sociedade Brasileira hoje é o abandono paterno. Segundo pesquisa do IBGE divulgada pelo IPEA, em 2015 cerca de 40,5% dos lares brasileiros eram monoparentais e chefiados apenas por mulheres. Na realidade do nosso país, o que tem destruído a estrutura familiar há muitos anos são homens que abandonam suas famílias, homens que não assumem a paternidade — causa para qual a IASD, por exemplo, poderia olhar e promover na sociedade.

A igreja deve promover o voto consciente, não estimulando de forma alguma seus membros a procurarem candidatos que defendam os interesses da IASD para toda a sociedade. A igreja deve também promover entre os pastores, líderes, futuros pastores e figuras públicas uma ética política que evite o “voto de cajado”, ou o “voto de rebanho”, fenômeno presente em diversas denominações no Brasil, no qual igrejas possuem candidatos próprios ou cujos pastores indicam em qual partido ou candidato seus membros devem votar. 

A IASD também deve promover e orientar seus pastores no respeito à diversidade de opiniões políticas, preservando de fato o direito individual de cada membro de exercer sua cidadania para votar de forma consciente. E, por fim, cada indivíduo deve formar sua opinião política baseada em seus estudos, sua vivência em relação à realidade do nosso país, e, principalmente, olhar para a vida e ensinamentos de Jesus, desenvolvendo individualmente sua consciência política. Por isso, toda tentativa de forjar uma consciência política comum para a membresia da IASD, ou seja, uniformizar o que seria o pensamento político do cristão ou adventista verdadeiro, só gera mais conflitos e divisões dentro da igreja.   

O quarto ponto do documento é uma novidade em relação ao documento anterior, e instrui líderes e pastores com relação ao seu posicionamento nas redes sociais. Nesse ponto, obviamente não é papel da igreja censurar as postagens de membros nas redes sociais. No entanto, para alguns casos, como de líderes e pastores que são figuras públicas da igreja e ocupam não só os púlpitos, mas programas de TV da Novo Tempo, e usam o nome da IASD na produção de conteúdo para seus canais privados de comunicação, a igreja deve orientar esses pastores e figuras públicas a não falar em nome da igreja e sempre se posicionar de forma a ratificar que essas falas devem ser tomadas como opiniões pessoais, não representando o que a IASD promove enquanto estudo e informação para sua membresia.

No quinto e último ponto do documento, intitulado “a igreja e as manifestações públicas”, a rebelião contra as autoridades constituídas é novamente identificada com a rebelião contra o governo. Conforme já exposto acima, quando nos rebelamos contra as injustiças sociais e perversidades cometidas por qualquer governo eleito no Brasil não nos rebelamos contra as  autoridades; pelo contrário, estamos utilizando nosso direito e autoridade enquanto cidadãs e cidadãos para  exercer controle social sobre nossas e nossos políticos eleitos.

O documento também menciona que a ADRA, os colégios e hospitais adventistas cumprem uma função social e que através deles a igreja mostra sua preocupação com a desigualdade e solidariedade. Sem dúvida alguma, a IASD tem um papel fundamental e mundialmente reconhecido com o serviço social. Mas é importante destacar que os colégios e hospitais adventistas, apesar de filantrópicos, são instituições privadas que têm seu acesso limitado através da cobrança de mensalidades, e de forma alguma substituem o papel do governo em oferecer educação e saúde de qualidade para a população — em especial para quem não tem condições de pagar pelo ensino ou saúde privados. 

O papel da IASD em oferecer assistência social está ligado ao princípio da caridade, amor e serviço ao próximo. Por mais que a solidariedade demonstrada aos pobres e miseráveis do nosso país seja de grande ajuda, não podemos igualar nossos serviços à responsabilidade constitucional que o governo tem em promover justiça social. Muitos dos impostos que pagamos como cidadãs e cidadãos devem ser redistribuídos à população em forma de políticas de saúde, educação, redistribuição de renda e  etc. São essas as políticas que têm condições de diminuir as desigualdades sociais — o fruto de um sistema capitalista que se baseia e se expande através dessas desigualdades — muito mais efetivamente do que as ações que a ADRA pode oferecer.  

Uma das frases mencionadas nesse ponto do documento e que citamos: “Para os adventistas, muito mais do que protestar e reivindicar, a missão é proclamar. Nossas energias não devem ser postas em manifestações, mas em trabalhar pelo bem das pessoas e anunciar a volta do Senhor Jesus.”

Quando o documento afirma que a missão de proclamar é mais importante que a de protestar e reivindicar justiça social, ele ignora completamente o papel que protestos e reivindicações têm na nossa sociedade. Protestar e reivindicar não são fins em si mesmos. Eles são instrumentos que a população tem para exercer controle social sobre o governo eleito. Uma democracia sem controle social não é plena. E é por isso que o direito à manifestação é garantido pela Constituição. 

Oposição ao governo não significa desrespeito à autoridade, assim como a neutralidade e o silêncio não significam respeito; significam conivência. Na política, a máxima que diz ‘quem cala, consente’ muitas vezes é verdadeira. Quando a igreja instrui seus membros a não fazerem oposição de forma alguma ao governo, e a não desempenharem nenhuma forma de controle social, ela prega um discurso de alienação em relação ao que podemos mudar na nossa sociedade para aliviar o sofrimento de nosso próximo, e promove uma falsa ideia, em que não seria possível ao mesmo tempo pregar o evangelho e estar engajado socialmente com as lutas e reivindicações históricas tradicionalmente defendidas pela esquerda. Essa ideia contribui para uma cultura de intolerância que demoniza qualquer posição política que não seja a conservadora, tradicional da direita religiosa.

Pensemos em um caso prático: os protestos  promovidos pelo movimento Vidas Negras Importam que denunciam e lutam contra a brutalidade policial sofrida pela população negra no Brasil. Participar de um movimento como esse é dizer aos nossos irmãos e irmãs negras que a vida deles importa, que a segurança e integridade de suas vidas são importantes. Como bater à porta de um jovem negro na periferia, que sofre diariamente com a brutalidade de uma sociedade racista, para entregar um livro sobre Cristo e seu radical amor pela humanidade se não nos dispomos a ser antirracistas?

A ruptura de sociedades com grandes ciclos de opressão a determinados grupos só foi possível porque existiram movimentos de resistência a essa opressão e de luta por direitos.  Foi o caso da luta contra a política segregacionista nos Estados Unidos, do movimento abolicionista em toda América, do movimento contra a ditadura militar no Brasil, e dos movimentos que hoje lutam pelo fim da violência contra mulheres, negros e negras, indígenas, e outras minorias e populações mais vulneráveis.

Jesus não incomodava os fariseus, a classe de judeus que tinha certa autoridade político-religiosa na sua época, porque vivia em plena conformidade com as autoridades. Ele as incomodou por apresentar às pessoas o Reino de Deus em Sua pessoa. Este Reino que não precisaria estar só em um futuro distante, mas que chegaria para cada um através da salvação a partir do aqui e agora. Essa salvação chamava as seguidoras e seguidores de Cristo a viver de forma diferente. De forma a não se conformar com as coisas perversas desse mundo.

Meu intuito não é que a igreja estabeleça que a membresia deve ir para a rua protestar contra a injustiça social, mas sim que promova a livre consciência política entre seus membros, fomentando a tolerância e o respeito à diversidade de pensamento político entre a membresia. O cuidado com o próximo não pode entrar na lógica da bipolaridade dos discursos políticos. A igreja não deve impor uma contradição entre a missão do cristão de pregar o amor de Cristo e a busca da justiça e do alívio da opressão do nosso próximo. As orações pelas autoridades e pelo poder público, por fim, de nada adiantam se não virem acompanhadas de um comportamento ético e honesto em relação à política, de tolerância às diversas posições políticas e de promoção do diálogo e respeito ao próximo.