A lealdade dos adventistas norte-americanos às políticas de direita propaga a violência e afeta a identidade da igreja no mundo inteiro


Por Jeanne Mogusu | Adventist Today — Traduzido por André Kanasiro para a Revista Zelota

Apesar dos estadunidenses não estarem sempre cientes, a política norte-americana tem um impacto enorme sobre o que acontece em outros países ao redor do mundo. Por isso foi com total fascinação e descrença que nossos olhos se fixaram na TV enquanto se desdobravam os eventos no dia 6 de janeiro. Mesmo hoje, muitos de nós ainda tentam assimilar a realidade do que aconteceu.

Talvez o mais perturbador em meio à fúria e violência foram as placas e cartazes de “Jesus Salva” e “Jesus 2020”, associadas a símbolos de ódio de longa data, tais como a bandeira confederada e uma forca. Deveria ser particularmente interessante aos adventistas o fato de que cópias do Grande Conflito foram encontradas no entulho daquele dia, o que indica nossa presença naquele espaço.

Há muitos que colocam a culpa de tudo nas costas do ex-presidente Donald Trump — mas fazer isso seria desculpar totalmente um grupo muito mais amplo de pessoas que contribuíram com um ambiente no qual tais eventos poderiam ocorrer. Alguns estão nos Estados Unidos (EUA), sem dúvida, mas quero me focar aqui na culpabilidade de todos nós como cristãos ao redor do mundo; pois mesmo aqui no Quênia, a religião e a política norte-americana nos afetou e nos moldou.

A obstinação crescente do cristianismo

Como alguém de fora, conquanto tenha passado uma década da minha vida nos EUA, é notável ver a infiltração sutil e constante da política na igreja dos EUA e ao redor do mundo. Esta se transformou a tal ponto que a identidade cristã hoje é sinônimo de certas afiliações políticas, e as duas são tão intercambiáveis que atacar uma equivale a atacar a outra.

Este casamento é fortalecido por anos de uma dieta constante de ódio e intolerância, proveniente de púlpitos, do apoio financeiro de membros, do apoio público de igrejas, e de um foco insistente na profecia e na piedade correta. Tudo isso deu à luz a um sentimento de privilégio e de maiores direitos entre muitos cristãos. Muitos acham que seus pontos de vista estão certos, e só os seus, e qualquer desafio ou questionamento a essas opiniões equivale a blasfêmias, devendo portanto ser exterminados.

Tanta piedade e superioridade religiosa são razões pelas quais é fácil para alguns cristãos ao redor do mundo se alinhar e justificar ações hediondas contra os “outros” além deles. Mesmo que agora tenhamos nosso foco nos eventos da semana anterior, a fúria, o ódio e a violência testemunhados não são novos. Os cristãos estão na vanguarda dos ataques contra muçulmanos, clínicas de saúde reprodutiva, membros de comunidades LGBTQIA+, entre outros. Quando questionados sobre o porquê desses grupos merecerem sua ira, suas respostas inevitavelmente voltam ao cristianismo e ao seu direito de serem os executores da justiça em nome de Deus.

Isso também foi demonstrado publicamente no verão de 2019, quando líderes cristãos nos Estados Unidos condenaram os protestos contra os injustificáveis assassinatos de negras e negros desarmados, e até mesmo justificaram o uso da força contra os manifestantes, sem sequer pensarem duas vezes a partir de sua postura pró-vida de longa data.

Curiosamente, a paixão usual dos cristãos ao proteger o nascituro não se traduziu em uma paixão similar ao proteger outras vidas, já que defenderam os tiros injustificados contra negros desarmados — uma erosão irônica do valor do “outro”.

Influência no mundo

É importante que compreendamos como a confluência de política, religião e identidade nos EUA influencia o cristianismo, não só nos Estados Unidos, mas também em outras partes do mundo. Mesmo que esses eventos possam parecer isolados aos Estados Unidos, houve casos de violência reportados fora dos Estados Unidos que podem estar ligados ao que estava acontecendo lá. Considerem, por exemplo, os assassinatos bem conhecidos de pessoas LGBTQIA+ em Uganda, alimentados com orgulho por ativistas evangélicos anti-LGBTQIA+ norte-americanos.

No Quênia, a confluência de religião, identidade e política existe, mesmo que em moldes um pouco diferentes. Não há linhas partidárias definitivas a serem traçadas, porque as linhas são fluidas, mas definitivamente há associação e uma forte aliança com a ideologia da direita norte-americana. Muitos estão impregnados da crença de que essa ideologia é inerentemente divina. Esse pensamento é manifestado na rejeição e difamação fervorosa contra quaisquer desafios à sua ideologia.

Infelizmente, como a maior parte dessa ideologia passa despercebida pela liderança da igreja nos EUA, e é adotada pela liderança nas fileiras mais baixas, ela permeia as igrejas nos níveis mais baixos, e criou raízes muito profundas. Por exemplo, como a liderança da Associação Geral, a maior parte da liderança adventista na África assume uma postura passiva em questões de injustiça social, e suas vozes permanecem em silêncio mesmo quando há altos clamores provenientes de outras religiões.

Deus pede que nos posicionemos em favor daqueles que são mais vulneráveis entre nós. Por que não o fazemos?

A mensagem bíblica

Talvez o mais desanimador entre os que  usam a violência contra os “outros” desses grupos, como um instrumento para defender o que erroneamente acreditam, é que eles se esquecem do que é fundamental nas Escrituras, as Escrituras que são o próprio alicerce da fé cristã.

Por exemplo, conforme apontado por Olive Hemmings, não são atividades simples e agradáveis que são condenadas em Isaías 58 — texto no qual Deus alerta contra fazermos nossa própria vontade no sábado. Naquele contexto, a “vontade” é injustiça para com os trabalhadores. Não é por acidente que o centro desse tratado a respeito de atividades religiosas, tais como o jejum sabático, seja Deus dizendo:

Porventura não é este o jejum que escolhi,

que soltes as ligaduras da impiedade,

que desfaças as ataduras do jugo

e que deixes livres os oprimidos,

e despedaces todo o jugo?

Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto,

e recolhas em casa os pobres abandonados;

e, quando vires o nu, o cubras,

e não te escondas da tua carne?

Mesmo a missão de Cristo, conforme articulada em Isaías 61, repudia a injustiça social, que é abraçada pelo egoísmo capitalista, pelo nacionalismo e por outros males associados aos que reivindicam erroneamente Seu nome.

Novamente, todo cristão conhece João 3:16, uma expressão da salvação pessoal como um presente de Deus. Mas o verso 17, uma continuação do anterior, é tipicamente ignorado: “Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele.”

Essa passagem não parece ser tão significativa para cristãos, pois força-os a compreender que a condenação nunca foi parte da missão do Salvador. Nós parecemos ter certa afinidade pela condenação do “outro”, que nasce de nosso exclusivismo incipiente.

Um tempo de prestação de contas

Desde aquele fatídico dia 6 de janeiro o ar está repleto de questões: como chegamos a esse ponto? Parece que todo mundo tem uma ideia de onde está a culpa. Mas aqueles entre nós que professam lealdade a Deus acima de tudo devem admitir que foi nossa aceitação silenciosa, sutil e às vezes não tão sutil do nacionalismo, da homofobia, da xenofobia, da intolerância, do racismo, da supremacia branca, e de outros tipos de males sociais e morais, que nos trouxe até aqui.

Estes não são males restritos aos Estados Unidos, mas males que deram um jeito de entrar em outras partes do mundo de formas diferentes, mas igualmente mortais. Conforme os cristãos norte-americanos chegam à sua prestação de contas por seu papel na reprodução de ódio e violência que levaram a uma insurreição, também precisamos de nosso próprio dia de prestação de contas em outros lugares do mundo. Precisamos examinar como nossas ações passivas e nosso silêncio reproduziram ódio e intolerância em nosso próprio território.

E não é porque nosso ódio e intolerância não foram colocados na vitrine como no capitólio norte-americano que estamos em uma situação melhor do que eles, que agora precisam colher o que plantaram.

Mateus 25:40 diz, “E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.”

Mas essa passagem é sobre mais do que o que é feito. Ele é igualmente sobre o que não é feito: “E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando não o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim não o fizestes.”

Precisamos tomar tanto cuidado com o que não fazemos quanto com o que fazemos — o que ignoramos, o que sancionamos inadvertidamente por nosso silêncio e nossa inação.

Não podemos mais alegar ignorância. Precisamos tomar esse evento como um chamado a despertarmos, nos examinarmos, nos livrarmos do apoio a quaisquer leis cruéis que tornam o Salvador à nossa imagem: alguém rígido, furioso, esperando o inatingível. Ao invés disso devemos apresentá-Lo pelo que Ele é: nosso Salvador caloroso e amoroso que deu Sua vida por todos nós — pretos, pardos, brancos, imigrantes, muçulmanos, lésbicas e gays, pobres e ricos, homens, mulheres e todos no meio dos dois.

James Baldwin coloca dessa forma em Da Próxima Vez, o Fogo:

“Eu imagino que uma das razões pelas quais as pessoas se apegam tão teimosamente aos seus ódios é porque sentem que, assim que o ódio se for, elas serão forçadas a lidar com a dor.”

E não se enganem, há dor com a qual temos que lidar. A dor de que todos nós somos de fato criados verdadeiramente iguais, a dor de saber que são nosso orgulho e sentimento de superioridade — e não nossa boa natureza — que estão no coração de tudo que fazemos, e, acima de tudo, a dor de que nós não somos melhores do que aqueles que mais odiamos. A questão é, estamos prontos para aceitar essas duras verdades e sermos completa e verdadeiramente libertos pelo amor do Salvador?