O romance Jane Eyre mostra o arquétipo da mulher louca aprisionada no sótão por não se adequar às normas sociais, e o mesmo ocorre com as mulheres na igreja quando privadas de seu protagonismo


Por Elle Berry | Adventist Today — Traduzido e adaptado por Mariana Rocha para a Revista Zelota

Minha primeira introdução ao clássico literário Jane Eyre veio através de uma adaptação cinematográfica de 1996. Minha irmã e eu tínhamos uma amiga da família que nos convidava frequentemente para as matinês de domingo, e foi num domingo de primavera que eu fiz minha primeira incursão no mundo do romance gótico. Minha principal lembrança é que meu eu de 13 anos de idade, inicialmente, não estava impressionado com o título, mas mesmo assim Jane era uma heroína.

Antes de continuar, acredito que uma recapitulação da trama seja provavelmente necessária. O que se segue é um grande spoiler de Jane Eyre — no entanto, como se trata de um livro de 173 anos, considero o estatuto de limitações fechado para tal violação. Por isso, se por alguma razão você não o leu e não quer o final estragado, agora é sua chance de lê-lo. Vá em frente, eu espero.

Jane Eyre, uma recapitulação 

Jane Eyre é a história de uma órfã chamada Jane. Após uma infância de negligência e abuso, Jane aceita um emprego como governanta em Thornfield Hall, onde é apresentada ao misterioso Sr. Rochester (Sr. R). Lá, durante a noite, Jane ouve sons perturbadores vindos do sótão de um fantasma misterioso, que provoca incêndios, e também encontra a insípida pretendente do Sr. R, Blanche Ingram. Apesar desses obstáculos, Jane e o Sr. R desenvolvem uma relação intrigante.

Conforme a inevitável história de amor avança, o Sr. R tenta usar Blanche para antagonizar Jane, fazendo-a sentir ciúmes. Entretanto, Jane contorna os planos do Sr. R e confessa autenticamente seu afeto por ele, encorajando-o assim a afirmar seu afeto mútuo. (Descartando Blanche como nada mais do que o peão que ela era — o que possivelmente é merecido, mas também rude.) Jane e o Sr. R ficam noivos e está tudo pronto para ser um “felizes para sempre”, mas é aí que vem uma reviravolta na trama.

Quando as núpcias começam, elas são interrompidas por um homem estranho que veio para lembrar ao Sr. R uma verdade incômoda e urgente: o misterioso fantasma acima mencionado é na verdade a esposa do Sr. R. Sim, enquanto o Sr. R estava ocupado cortejando outras mulheres, ele tinha uma esposa o tempo todo. O nome dela é Bertha e ela é mentalmente doente, então ele a trancou em seu sótão.

Jane está realmente dividida neste ponto porque ama o Sr. R, mas não pode se casar com ele, porque… bigamia. O Sr. R tenta convencê-la de que ela pode basicamente continuar como sua amante, mas em um dos momentos mais belos da literatura (passado ou presente), temos acesso ao monólogo do conflito interno de Jane, em que ela se compromete com sua resolução de integridade e autorrespeito.

Consciência e razão tornaram-se traidoras contra mim, e me acusaram de crime ao resistir-lhe… ‘Pense na infelicidade dele’… diga-lhe que o ama e será dele. Quem, neste mundo, se interessa por você, ou será prejudicado pelo que fizer?” Contudo, a resposta era indômita: “Eu me interesso por mim. Quanto mais solitária, mais sem amigos, mais desamparada eu for, mais respeitarei a mim mesma. Manterei a lei dada por Deus; sancionada pelo homem.”1

Jane escapa de Thornfield durante a noite, abrindo seu caminho para um novo mundo solitário. Mas não se preocupe, porque Jane faz uma boa vida para si mesma, conhece novos amigos e herda uma fortuna de um parente desconhecido. Em contraste, o Sr. R é deixado com sua esposa, Bertha, que eventualmente coloca fogo em Thornfield. E apesar do Sr. R ter tratado Bertha de forma tão desumana, quando ele percebe que ela está presa no telhado do prédio em chamas, é ele quem corre para as chamas para resgatá-la; assim, seu arco redentor é completado.

Jane, sentindo intuitivamente que algo mudou, retorna ao Sr. R, mas o encontra cego por causa do fogo, sem casa, sem riqueza e viúvo (pois não conseguiu salvar Bertha apesar de suas tentativas abnegadas). Assim, com a sorte invertida, eles se casam, e vivem (esperançosamente) felizes para sempre. Fim da recapitulação. 

A mulher louca do sótão

Quando eu terminei de ler o livro, acabei gostando do Sr. R, apesar de todas as suas falhas (eu amo um arco redentor). No entanto, admito que sempre foi Jane, com sua sólida integridade e enorme coragem, que faz do livro um favorito. Ultimamente tenho voltado ao livro com um interesse diferente: e Bertha Mason, a mulher louca no sótão? A ideia de uma mulher louca no sótão é uma metáfora tão potente que não surpreende o fato de que livros inteiros foram escritos usando-a como um símbolo do aprisionamento da mulher.

Embora esteja implícito que a doença mental de Bertha Mason é genética2, ainda é tentador pensar nela como uma vilã (embora, ao ler de perto, eu não sinta que resumi-la a vilã seja a intenção). Ela é referenciada como demoníaca, um duende, um vampiro ou uma hiena. Mas então, novamente, você pode culpá-la? No final do livro, ficamos sabendo que Bertha chegou a Thornfield por meio de um casamento arranjado. Apesar de saberem de sua condição mental, a família dela enganou o Sr. R (suas palavras) para o casamento. Nunca foi amor, e nenhuma das partes se beneficiou. No entanto, para piorar a situação, o Sr. R responde à situação, e à sua condição mental, trancando Bertha no sótão enquanto corteja jovens mulheres que ele entretém em sua casa.

Enquanto os contemporâneos do romance teriam considerado trancá-la no sótão uma gentileza (na época era comum institucionalizar os doentes mentais nos hospícios), os leitores modernos acharão com razão que o argumento “mais gentil que a alternativa” é uma defesa pobre para o Sr. R. Talvez ele estivesse fazendo o melhor que podia para um homem de seu tempo, mas ainda é horrível. E além disso, se há algo que eu sei, é o seguinte: Quer deixar alguém louca e furiosa? Case-se com ela, tranque-a em seu sótão e depois continue a cortejar outras pretendentes em sua sala de estar. Bertha está legitimamente furiosa e (doença mental à parte) está legitimamente louca.

A grande ironia é que, enquanto inicialmente ela é um empecilho à história de amor, Bertha acaba se revelando uma libertadora. Ao incendiar Thornfield, ela encontra talvez a única maneira de se libertar de sua prisão no sótão, mas também (embora talvez não intencionalmente) ela liberta o Sr. R de si mesmo. Como ele arrisca sua vida para salvar a dela, é dada a ele uma chance de enterrar seus próprios demônios interiores, seus arrependimentos passados, e transcender no homem que todos nós esperávamos que ele pudesse ser.

O que é interessante para mim é que apesar de ter 173 anos, o livro retrata com precisão três arquétipos familiares de mulheres. Primeiro, temos a Blanche. Ela é rica e bonita, e reconhecidamente uma esnobe privilegiada — mas também é uma mulher em um sistema, e usa o único poder que tem. Das três mulheres, ela é a única que joga segundo as regras. E quando você considera quais são as regras, ela é de fato uma personagem de dar pena.

Depois temos a Jane. Observamos com a respiração presa enquanto ela luta durante todo o livro, determinada em busca de liberdade e emancipação, em um mundo onde tanto sua classe quanto seu gênero a puxam para trás em sua busca de ser uma mulher livre.

E por último, temos a Bertha. Presa em um casamento arranjado, extraída de sua terra natal, ela acaba se tornando mentalmente doente, e por fim se encontra presa no sótão com um marido que a trai e que não a ama. Bertha aparece em contraste com Jane, e como um reflexo sombrio de Blanche. Bertha é uma mulher que, não muito diferente de Blanche, inicialmente cumpre as normas sociais — e, no entanto, eventualmente busca as ilusões de liberdade na promiscuidade e na bebida — que não trazem nenhuma liberdade real. Assim, tragicamente, é apenas Jane, a mulher com menos vantagem, que exerce sua independência e é capaz de viver sua liberdade. Ela o faz porque está disposta a respeitar a si mesma e se afastar em nome da liberdade, mesmo que isso signifique partir seu coração.

O sótão da opressão das mulheres na igreja

Como muitas mulheres na igreja adventista neste momento, eu me encontro em um estranho padrão de espera. A Reforma Protestante foi forjada sobre o conceito de liberdade diante de Deus como um sacerdócio de todos os crentes — contudo, na minha maneira de pensar, qualquer igreja que se apega a uma teologia de chefia masculina sempre assume uma perda do Protestantismo para as mulheres. Os homens podem ser protestantes, mas não as mulheres. E sim, isso pode ser mais gentil, e mais gentil do que algumas alternativas — mas, como já observado anteriormente, “mais gentil do que a alternativa” ainda fica aquém da liberdade a que somos chamadas.3

O Sr. R não é exatamente um vilão, nem a igreja patriarcal. Em muitos aspectos, ambos são verdadeiramente amáveis. No entanto, eu me vi pensando com certa frequência nestes arquétipos femininos, e vejo sua relevância mesmo agora na igreja. Há muitas (maravilhosas) mulheres que se submeteram a jogar de acordo com as regras estabelecidas. Elas fizeram o melhor que puderam com a verdade que compreenderam. Mas os entendimentos mudam. E para algumas de nós, desconsiderar a situação da vocação de uma mulher diante de Deus não é mais uma opção sadia, e nos encontramos perigosamente perto de nos tornarmos fantasmas incendiárias no sótão.

E é o seguinte: não tenho uma resposta pronta, tenho apenas perguntas. Continuo convicta do chamado das mulheres ao sacerdócio, como iguais aos homens na liderança e diante de Deus. Mas a igreja ainda tem que honrar isso, e assim a pergunta permanece: Você pode ficar em um lugar sem poder se afirmar, ludibriada com ilusões de liberdade, e fazer isso sem se tornar a mulher louca no sótão? E para as mulheres que ficam, e se afirmam, a nossa única chance de liberdade é incendiar (figurativamente) a casa? (E se o fizéssemos, seria uma coisa ruim?)

Ou, como Jane, será que nos dispomos a ir embora, fugindo durante a noite e percebendo que fazer isso também pode partir nosso coração? Eu admito que a consciência e a razão continuam a se enfrentar e a se trair neste assunto. Quem se importará se eu me tornar Blanche? Quem se importará se eu for Bertha? E a resposta é: eu vou me importar. E devo respeitar a mim mesma.4 Mas será que isso significa sempre partir? E se não significar, estamos todas destinadas a nos tornarmos a mulher louca no sótão?

Notas: 

1.Capítulo 27, Jane Eyre – Tenho este em destaque.

2.Foi proposto que a doença genética e progressivamente psiquiátrica de Bertha, com notáveis movimentos violentos e declínio cognitivo, pode se encaixar nos critérios para a Doença de Huntington.

3.Gálatas 5:1: “É pela liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei firmes, portanto, e não vos deixeis sobrecarregar novamente por um jugo de escravidão”.

4.Atos 24:16: “Portanto, sempre me esforço para ter uma consciência limpa para com Deus e os homens”.