A teologia afirmativa também pode ser construída nos termos adventistas, sem depender de "teologias liberais", e fornecer ao texto bíblico uma profundidade até então negligenciada
Por Alicia Johnston | Adventist Today — Traduzido e adaptado por André Kanasiro para a revista Zelota
Alicia Johnston é ex-pastora adventista formada no Seminário Teológico Adventista do Sétimo Dia, e autora do livro The Bible and LGBTQ Adventists: A theological conversation about same-sex marriage, gender, and identity [“A Bíblia e adventistas LGBTQ: Um diálogo teológico sobre casamento homossexual, gênero e identidade”].
“A diferença entre você e eu é que você acha que a Bíblia é difícil de entender, e eu acho que é fácil.”
Esta citação é de uma amiga querida da faculdade. Ela estava frustrada comigo por causa de minhas explicações teológicas para afirmar o casamento homossexual e a identidade transgênero. Para ela, tudo que precisava era o significado claro das palavras na página.
Por incrível que pareça, eu entendo como ela se sente. Eu mesmo disse palavras semelhantes em uma situação similar. Há muitos anos um amigo da faculdade se assumiu gay para mim. Depois de fazer meu próprio estudo, achei que a Bíblia era clara. Eu me debrucei sobre certos versículos e procurei um texto que me desse clareza. Eu não queria adivinhar. Eu não queria agir por intuição, simpatia ou conforto. Eu concluí basicamente a mesma coisa que minha amiga concluiu.
Basicamente, havia três pontos: (1) A Bíblia diz que o ato sexual homossexual é um erro; portanto, todos os relacionamentos homossexuais são um erro, incluindo o casamento. (2) A Bíblia diz que o casamento é entre um homem e uma mulher. (3) Os gays (e todas as pessoas) devem ser celibatários ou se casar com alguém do sexo oposto.
Como cheguei a essas três conclusões? Quando comecei meu estudo, na verdade, suspeitava que a igreja estava errada e que o casamento homossexual não era um problema para Deus. Muito disso provavelmente se devia ao meu amigo e ao respeito que eu tinha por ele — eu tinha esperança de que a Bíblia não condenasse suas decisões.
Mas fiquei desapontada. Quando procurei por percepções bíblicas no lado pró-inclusão, elas pareciam tensionar a verdade para além do tolerável. Essas percepções afirmavam que Davi e Jônatas eram amantes, Jesus e João, o amado, eram amantes, e até mesmo o eunuco etíope era uma evidência da aceitação de relacionamentos homossexuais. Nada disso fazia sentido para mim.
Levando a Bíblia a sério?
Também percebi este padrão inquietante:
Parecia que as pessoas pró-gays não levavam a Bíblia tão a sério quanto eu. Elas pareciam estar moldando o texto de acordo com suas ideias, e não sendo moldadas pelo texto. Em vez de se concentrar na intenção do autor, essas abordagens liberais se concentraram em frases específicas, estendendo-as para além do que o autor poderia ter pretendido. Por exemplo, este versículo do futuro rei Davi a Jônatas:
“Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; muito querido me eras! Maravilhoso me era o teu amor, ultrapassando o amor de mulheres” (2Sm 1:26).
Mesmo na época, como uma jovem recém-formada em teologia, parecia-me que eles estavam confundindo as palavras literais com a intenção do autor. As palavras parecem românticas? Sim, mas no contexto não eram. Simplesmente não é o que você esperaria historicamente. Parece romântico à primeira vista, mas eu não acho que poderíamos realmente acreditar que era isso que Davi queria dizer. Simplesmente não há contexto bíblico para esse tipo de romance.
Também havia as afirmações vagas sobre a importância do amor. O amor é simultaneamente identificado pelas Escrituras como a ideia mais importante, e usado pela sociedade como uma ampla justificativa para quase tudo. Eu sabia que o amor não podia ser sentimentalizado e separado da lei e da vontade de Deus.
E quanto à criação? Deus não criou homens e mulheres uns para os outros? Não fomos projetados especificamente para complementar e completar um ao outro? Não fomos formados também para procriar por meio do sexo? Havia outros textos que os proponentes das relações homossexuais rejeitaram com muita facilidade. Eles rejeitaram os textos tradicionais usados para dizer que o sexo homossexual é errado.
“Por causa disso Deus os entregou a paixões vergonhosas. Até suas mulheres trocaram suas relações sexuais naturais por outras, contrárias à natureza. Da mesma forma, os homens também abandonaram as relações naturais com as mulheres e se inflamaram de paixão uns pelos outros. Começaram a cometer atos indecentes, homens com homens, e receberam em si mesmos o castigo merecido pela sua perversão” (Rm 1: 26-27).
Lendo essas palavras de Paulo, eu as achei convincentes, a despeito de mim. Elas eram a parede sólida da verdade bíblica, impedindo qualquer movimento no sentido de aprovar a escolha do meu amigo. Eu tinha que ser fiel às Escrituras. A Escritura era clara, e Deus deve ser obedecido.
Perguntas difíceis
O que é estranho para mim agora é que não parei para questionar Romanos 1 como questionei 2 Samuel 1. Eu fui pega pelo significado literal do versículo de Romanos. Mas eu não me permiti ser pega pelo significado literal da aparente poesia de amor de Davi para Jonathan.
Por que não fazer as mesmas perguntas quanto às palavras de Paulo em Romanos? O que Paulo pretendia? Ele pretendia condenar o casamento homossexual? Existia casamento homossexual ou algo equivalente? O que ele quis dizer? Qual era a compreensão cultural por trás de suas palavras? Eu não perguntei nada disso. Escolhi o significado literal de um texto e rejeitei o significado literal de outro sem qualquer motivo claro.
Agora que me familiarizei muito mais com o tópico, está claro que não consegui lutar de forma adequada com as Escrituras e a possibilidade de casamento homossexual ou identidade transgênero. Isso não está certo. Não é uma afirmação da autoridade das Escrituras, mas uma abdicação de minha responsabilidade em estudar as Escrituras. Deus não se agrada quando dizemos que a Escritura é clara e usamos isso como desculpa para não a olharmos mais de perto.
Não é sequer suficiente reconhecer que devemos olhar as Escrituras mais de perto. Devemos de fato olhar as Escrituras mais de perto.
É difícil fazer isso. Quando eu estava cercada por pessoas que não me desafiavam, era difícil escapar das interpretações tradicionais. Era difícil realmente considerar que todos nós poderíamos estar errados. Como todos esses pastores adventistas, estudiosos e estudantes das Escrituras, inteligentes, compassivos, de mente bíblica e profundamente espirituais, podem estar deixando passar algo tão importante?
No meu contexto imediato, houve resistência contra desafiar as doutrinas aceitas, ou mesmo falar sobre elas. Estar em tal ambiente aquietou minhas dúvidas. Era fácil acreditar que eu já havia entendido tudo o que precisava entender. Era fácil descartar essa pequena sensação de culpa por não ter estudado profundamente o bastante. Na verdade, eu estudava mais do que a maioria. Até tinha boas intenções de estudar mais. Isso foi o suficiente para aplacar minha consciência e me ajudar a negar o que no fundo eu já sabia: eu não tinha estudado por conta própria. Não pra valer.
Teologia afirmativa
Existem cristãos articulando a teologia afirmativa em termos bíblicos conservadores. Esses livros não existiam quando fiz meu primeiro estudo. James Brownson, Matthew Vines, Kathy Baldock, Austen Hartke e Megan DeFranza são alguns exemplos. Existe uma organização chamada The Reformation Project dedicada a esta causa.
Ainda assim, todos os livros, publicações e declarações adventistas que li (e li tudo em que pude pôr as mãos) referem-se à afirmação do casamento homossexual e à afirmação de transgêneros como liberal. Os argumentos que abordam são liberais. Eles frequentemente estabelecem uma dicotomia explícita entre acreditar na Bíblia e apoiar o casamento homossexual e a identidade transgênero.
Até onde posso dizer, os teólogos adventistas nunca leram ou consideraram os argumentos da teologia de afirmação conservadora. Eles certamente não interagem com esses conceitos de maneira significativa. Eu vi apenas uma referência a qualquer um desses autores, e o engajamento foi tristemente superficial. É difícil de acreditar, mas é verdade. O envolvimento adventista com este tópico tem sido lamentavelmente inadequado. Espero que pelo menos isso mude.
Os adventistas deveriam considerar atentamente a teologia afirmativa. Minha educação me diz que a afirmação pode ser — e é — adequada à teologia adventista. Os princípios conservadores de interpretação que aprendi no seminário são os mesmos que se aplicam à teologia afirmativa. Nunca tive que adotar uma postura liberal, desconsiderar as Escrituras ou tratar o texto de maneira diferente do que os conservadores já fazem em outros assuntos para me tornar totalmente afirmativa.
Para alguns de vocês que estão lendo, essa declaração soará tão bizarra e improvável quanto teria soado para mim alguns anos atrás. Eu entendo. Se você for como eu, sua experiência e o conhecimento que tem do texto fazem minha afirmação parecer absurda. Mas estudá-lo mais profundamente não foi nada menos que chocante e desorientador, pois percebi tudo o que estávamos perdendo.
Frequentemente, como adventistas, usamos nossa certeza bíblica como armadura. Nós a usamos para nos proteger de ideias que podem ser ameaçadoras. O resultado é que nos protegemos do próprio conhecimento bíblico. Quando finalmente comecei a estudar, os princípios conservadores da interpretação bíblica se encaixaram perfeitamente com a teologia afirmativa.
Por que esses mesmos princípios que são usados para outros tópicos nunca foram considerados para adventistas gays, bissexuais e transgêneros? Na teologia atualmente aceita eu encontrei grandes saltos lógicos, como forçar textos que tratavam de agressão sexual ou promiscuidade para a questão do casamento homossexual. As diferenças nunca foram reconhecidas. Elas foram suavizadas. Houve muito pouca luta com o texto e as dificuldades de aplicá-lo hoje.
Eu também encontrei um lado mais sombrio da teologia atualmente aceita. Com muita frequência, havia uma caracterização incorreta de pessoas LGBTQ. Éramos caracterizados como covardes viciados em sexo, controlados por nossos impulsos, adorando no altar do desejo. Muitas vezes, a descaracterização tornou possível aplicar textos sobre exploração sexual ou indulgência a todos os gays, bissexuais e transgêneros. Nem todos os teólogos fizeram isso, mas presenciei isso o bastante para ficar profundamente preocupada. Será que parte da nossa teologia pode ser baseada em mais do que as Escrituras?
Seminário
Poucas experiências na vida foram mais desorientadoras do que essa. Os autores que eu estava começando a questionar não eram desconhecidos para mim. Muitos deles eram pessoas que conheci pessoalmente. Muitos deles foram meus heróis.
Eu os conheci quando estudava para um Mestrado em Divindade no seminário adventista da Andrews University. Ao obter meu diploma, passei o máximo de tempo que pude nos departamentos de Estudos Bíblicos aprendendo como entender a Bíblia. Conheci muitas das pessoas cujo trabalho eu critico hoje em dia. Eles são pessoas com profunda compaixão, bondade e amor pelas Escrituras. Até hoje não posso questionar sua sinceridade e compromisso. Embora eu tenha críticas a oferecer, nunca poderei perder meu respeito por algumas dessas pessoas generosas e inteligentes. Elas me orientaram e cuidaram de mim. São teólogos brilhantes que dedicam suas vidas a entender o texto.
Portanto, a pergunta deve ser feita: por que eu estava vendo coisas que eles não viam? Eu nunca saberia a resposta para uma pergunta tão pessoal. Mas tenho observado algo útil: quando você realmente começa a ler sua Bíblia, ela levanta muitas questões. Você encontra escravidão, genocídio, tribalismo violento, agressão sexual e todos os tipos de tópicos desafiadores e problemas morais. Os estudantes sérios das Escrituras estão cientes disso.
Então, o que fazemos? Muitas vezes simplesmente ignoramos esses textos. Mas meus professores do seminário não se contentaram com essa abordagem. Aprendemos a ler melhor a Bíblia. Aprendemos a entender a intenção das Escrituras e o movimento de Deus para um mundo melhor. Aprendi muito sobre essas coisas no seminário.
Em minha conversão à teologia afirmativa, não houve uma única vez que eu tenha usado uma ferramenta que não fosse ensinada no seminário. Nunca usei um método de interpretação que já não fosse considerado conservador quando aplicado a outras disciplinas. Mas é fácil aplicar essas ferramentas a assuntos que já acreditamos ser eticamente errados, como escravidão ou genocídio. É muito difícil aplicar essas ferramentas quando fazê-lo contraria nossos instintos, quando não parece certo porque vai contra nossas crenças estabelecidas.
Quando falamos de escravidão, a nuance era profunda, e a contextualização era cuidadosa e completa. Quando falamos de genocídio no Antigo Testamento, as questões morais eram complexas, e os detalhes textuais, intrincados. Motivações, significado, o movimento das Escrituras, o caráter de Deus e, por fim, a primazia do amor e da justiça ocupavam o centro do palco.
No entanto, quando falamos de gays, bissexuais e transgêneros, a nuance desaparece. Em vez disso, falamos severamente, quase matematicamente, a respeito das leis e comportamentos que transcendem seu significado cultural. O fato de que algo era consistentemente proibido era o suficiente. O que estava realmente sendo proibido na época, ou quem são os adventistas gays, bissexuais e transgêneros hoje; essas foram nuances que nunca reconhecemos.
Interpretação simplista
Eu sei que há quem diga que é suficiente focar no significado claro de alguns textos. Eles dirão que um estudo profundo e erudito das Escrituras é perigoso. Eles preferem a simplicidade. Eles acham que os acadêmicos são muito liberais e suscetíveis à manipulação. Eles acham que o grande problema é que esses acadêmicos usam o contexto cultural para interpretar as Escrituras. Eles querem uma leitura clara de cada texto.
Mas eu nunca vi essas pessoas olharem honestamente para as partes realmente difíceis das Escrituras. Nunca os vi lutar para entender a Bíblia. Eu só os vejo usando textos-prova e explicando ou pulando o que é desconfortável. Se você deseja evitar nuances e complexidade, deve ter o cuidado de ignorar grandes porções das Escrituras. Provavelmente nem é preciso dizer, mas se você ignora grandes porções das Escrituras, você não se preocupa tanto com a Bíblia quanto pode pensar.
O processo de questionamento e aprendizagem é um trabalho árduo, emocional e intelectual. Mas por que devemos achar que garimpar as Escrituras seja fácil? Eu voltei várias vezes ao texto, testando cada ideia contra o que encontrei na minha Bíblia. Eu comparei Escritura com Escritura, lutando para entender a intenção do autor e a vontade de Deus. Eu li todos os tipos de opiniões e análises. Eu pesquisei a língua original e o contexto cultural. Eu voltei várias vezes e fiz o meu melhor para estar aberta. Orei por ajuda em cada etapa. Eu ainda estou fazendo isso. Estou tentando permanecer aberta e manter a curiosidade. Isso é exatamente o que acredito que Deus quer de nós. Infelizmente, esse rigor estava faltando sempre que meus professores do seminário falavam sobre sexualidade e gênero.
Podemos fazer melhor. Acredito que devemos fazer melhor e, por isso, dediquei grande parte dos últimos três anos de minha vida a escrever um livro que pode fornecer uma perspectiva que acredito que precisamos. Quer concorde ou discorde de mim, você provavelmente verá que a Bíblia tem mais a nos ensinar e que vale a pena conversar. Na verdade, pelo bem das pessoas LGBTQ e daqueles que as amam, devemos fazer tudo o que pudermos para aprender tudo o que a Bíblia tem a nos ensinar sobre esse assunto.