Enquanto no contexto europeu, como Suécia e Alemanha, a afirmação dos LGBTQIAPN+ avança, a declaração de Saša sequer foi noticiada pela mídia adventista na América Latina


29 de mar. 2023 | Redação Zelota

Saša Gunjević prega em Hamburg-Grindelberg (Foto: Instagram)

Tornou-se público, recentemente, o fato de o pastor Saša Gunjević, da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) de Hamburg-Grindelberg, no norte da Alemanha, ter afirmado sua bissexualidade. O ocorrido se passou durante um sermão, intitulado “You are a God who sees me” [Você é um Deus que me vê], no dia 7 de janeiro de 2023, sua primeira pregação após o ano novo – que pode ser lido, aqui, na íntegra em inglês. Após o ocorrido, no dia 19 de março, a comissão da Associação Hanse se reuniu para decidir a respeito do status de Saša, como pastor adventista, e decidiu que não existiam faltas morais passíveis de disciplina, mantendo, assim, suas credenciais de pastor.

A afirmação de Saša Gunjević, ainda que popularizada, não é uma ação isolada na igreja adventista europeia, e menos ainda na estadunidense. No estrangeiro, cresce o número de igrejas receptivas à comunidade LGBTQIAPN+, abertas a teologias afirmativas. Na América Latina, no entanto, o fato sequer foi noticiado, embora tenha repercutido nas redes sociais; fazendo com que as comunidades latinas permaneçam alienadas dos eventos relevantes à IASD no mundo.

Preliminares à declaração pública

Ainda que o ocorrido tenha se popularizado neste momento, o acontecimento tem preliminares que remontam à metade de 2022. O processo de tornar pública a bissexualidade do pastor passou por algumas etapas: em primeira instância, Saša Gunjević se declarou bissexual à família, e então recorreu ao presidente da Associação de Hanse, na Alemanha. O plano, desde aquela época, era expor, posteriormente, a mesma declaração à comunidade adventista que pastoreava. Tal processo, ainda que pacífico, parece não ter ocorrido sem algumas reclamações.

Por conta disso, foi convocada uma Ethik-Kommission (“comissão ética”) para discutir o caso entre outubro e dezembro de 2022. Foi recomendado a Saša permanecer como pastor adventista até que fosse tomada uma decisão oficial na comissão diretiva da associação, em março (19) de 2023. Durante esse período, Saša entrou em contato com os membros do conselho de sua igreja local e, com o suporte destes, decidiu tornar pública sua bissexualidade. O sermão para a ocasião foi publicado na íntegra no canal da igreja para que não houvesse más interpretações de sua declaração.

Em entrevista à Adventist Today, Saša afirmou que a primeira reação de sua igreja à declaração foi “muito amável”, e que, após o sermão, quase todos os 380 membros o procuraram para abraçá-lo, consolando-o e afirmando seu apoio. Ele também informa à entrevista que os votos para que ele permanecesse como pastor foram quase unânimes (apenas uma das 380 pessoas teria votado contra). 

Quatro dias após sua declaração, a Associação de Hense divulgou um primeiro comunicado oficial sobre o assunto, dada a repercussão do ocorrido. Nele, a liderança afirmou desejar uma igreja em que a comunidade LGBTQIAPN+ possa viver publicamente, longe do sigilo e da solidão; e que “a orientação sexual de uma pessoa não deveria ser razão para desvantagem ou discriminação”. Eles explicam que toda comunidade local tem o direito de esperar de seu pastor uma conduta ética e sexual biblicamente responsável. E que “o irmão Gunjević, portanto, expressou o desejo de que a próxima comissão diretiva, em 19 de março de 2023, decida se sua certificação continuará existindo”. 

Por isso, a Associação, conforme o planejado, se reuniu no dia 19 de março para decidir a respeito do status de Saša Gunjević como pastor adventista. Após conversações, dentre outras afirmações, a comissão da Associação declarou publicamente ter ouvido opiniões dos membros da comunidade, e ainda de outros de toda a Alemanha; ela reconheceu a necessidade de um “local seguro” para a comunidade LGBTQIAPN+ nas igrejas adventistas, e responsabilizou Saša pela declaração. Por fim, a comissão não viu motivos para retirar a credencial ministerial de Saša Gunjević, dada sua obediência à conduta moral adventista, que não demanda ações disciplinares, habilitando-o, assim, ao ministério pastoral.

Sobre Saša Gunjević 

Até então, Saša Gunjević é pastor adventista há 13 anos, tendo começado seu ministério em 2009. De acordo com Saša, ele possuía consciência de sua bissexualidade desde os 14 anos; a mesma convicção o acompanhou aos 16, idade em que foi batizado. Tal orientação sexual foi mantida em segredo dado seu contexto religioso, e as possíveis represálias a esse respeito. No entanto, o pastor declarou à Adventist Today que, durante o seminário, imaginava que existiria uma ocasião em que sua bissexualidade seria expressa publicamente à igreja.

Em seu sermão, Saša relata: “estava claro para mim, desde o início, que se eu quisesse me tornar ou permanecer como pastor, não poderia falar sobre isso; que isso seria impossível. Então, eu estudei teologia sem a possibilidade de falar sobre o assunto com outros cristãos. Me tornei pastor e guardei isso pra mim por 13 anos.” Saša Gunjević reconhecia que, para realizar tal declaração pública, seria necessário obter a confiança de sua igreja local e associação, a fim de estar protegido.

Ainda à Adventist Today, Saša explicou que tal estratégia faria com que as pessoas não “julgassem o livro pela capa”, isto é, o reconhecessem primeiro como ser humano e depois como bissexual. “Quando eles já te conhecem, é mais difícil julgar um livro pela capa, porque já sabem que o conteúdo das páginas está repleto de humanidade legítima”, explica.

No final do sermão, Saša expressou o desejo de permanecer como pastor da comunidade de Grindel, e de que a comunidade seja um local seguro para pessoas, com seus respectivos desafios:

“Eu gostaria de continuar trabalhando na Grindel para garantir que também vemos as pessoas como Deus nos vê. Que somos um lugar seguro para pessoas com todos os tipos de desafios. Para pessoas que não compartilham tudo, porque têm medo de serem julgadas, rejeitadas ou ‘enviadas para o deserto’. Eu acredito em um Deus que é diferente do que pensamos que Ele é. Ele pode ver de forma diferente de nós, amar de forma diferente de nós, esperar de forma diferente de nós e também acreditar de forma diferente de nós. É exatamente por isso que é bom aprendermos com Ele. Apreenda a perspectiva dele, de um para o outro, sabendo que pertencemos um ao outro e não ‘precisamos’ estar um contra o outro. Mesmo que vendo e acreditando nas coisas de maneira diferente.”

Em conversa com a Zelota, embora esteja feliz com sua declaração pública, e com a repercussão, Saša Gunjević comentou não ser fácil lidar com a situação, e que talvez ela pudesse piorar daqui pra frente. O pastor teme que, daqui em diante, seu ministério e comunidade sejam “marcados”, e, assim, tratados de maneira distinta. Ele informou à Zelota que, infelizmente, alguns membros da Associação o trataram de maneira diferenciada após a polêmica, mas que nenhum dos membros de sua igreja age dessa forma. 

Contexto e recepção brasileira

Os avanços na afirmação da comunidade LGBTQIAPN+ não são uma novidade no contexto europeu. No último ano, a SDA Kinship Europe realizou o seu 21º encontro, de 01 a 05 de setembro, no alto do Lago Thun, perto de Berna (Suíça). Segundo o presidente da SDA Kinship International, Floyd Pönitz, uma congregação adventista (IASD de Heimberg) da região havia entrado em contato, informando que a membresia local estudou temas relacionados à orientação sexual e diversidade de gênero e, por unanimidade, votou a favor de se tornar uma igreja parceira da SDA Kinship. O evento contou com o batismo de dois homens LGBTQIAPN+, tornando-se um marco para a comunidade LGBTQIAPN+ adventista, pois a maioria das congregações não está aberta a esse reconhecimento.

O encontro também contou com a presença da liderança da IASD para a Alemanha, que se comprometeu em apoiar abertamente a SDA Kinship. Uma das primeiras ações foi noticiar o evento no veículo oficial de comunicação da igreja para a Suíça e Alemanha.

Em 2018, a União Sueca publicou o documento “Pläts for alla –  Adventistsamfundets värderingar i relation till HBTQ” [“Espaço para todos – Os Valores da União Sueca dos Adventistas do Sétimo Dia em Relação aos LGBTQs”], afirmando o desejo de superar o máximo de obstáculos, a fim de se tornar uma igreja segura para todas as pessoas, independentemente de orientação sexual e identidade de gênero.

O “Espaço para todos” inclui onze declarações indicadas pela expressão “Queremos afirmar…”, além da recomendação de se tornar uma declaração para todas as IASD na Suécia. Outras igrejas, em outros continentes, também já fizeram suas próprias declarações em apoio à comunidade LGBTQIAPN+, conforme a revista Zelota já publicou em “Caminho para a afirmação”.

Outro destaque neste sentido foi visto nos últimos 17 e 18 de março, quando a Universidade Adventista de Washington e a Sligo Church (IASD Sligo), em parceria, fizeram um evento acadêmico aberto à comunidade, chamado “LGBTQ: perspectivas pastorais e teológicas”, para discutir a diversidade, a teologia, ouvir as experiências pessoais e pastorais, o desenvolvimento comunitário e a capelania, com o objetivo de afirmar a humanidade em suas diversas manifestações. 

Por outro lado, a diversidade sexual e de gênero no contexto adventista brasileiro ainda é majoritariamente demonizada, juntamente com as teologias afirmativas e os movimentos em prol de causas LGBTQIAPN+. Em pesquisa realizada pela Zelota, em 2020, 43,6% das 499 respostas afirmavam ser LGBTQIAPN+ e, ainda assim, membros ativos da IASD. Ainda que tal população atue vigorosamente nas fileiras da instituição, são popularizados e, por vezes, oficializados ativismos anti-LGBTQIAPN+ entre pastores e influentes adventistas, como é o caso do Pr. Apolo Abrascio, que chegou a reconhecer que suas falas poderiam levá-lo à cadeia; e o caso do Pr. Gilson Grüdtner, que chamou um homossexual, membro da IASD, de “filho do demônio”.

A chegada da notícia aos adventistas brasileiros, basicamente, se restringiu às redes e não tomou proporções noticiosas oficiais. Isso significa que, até então, os departamentos de comunicação e a agência de notícias da denominação sequer noticiaram o fato. Pelo contrário, ao invés de manter os membros informados sobre os acontecimentos relevantes da IASD em âmbito mundial, segundo fonte da Divisão Sul Americana (DSA), o departamento de comunicação adventista recorreu à Associação Geral (AG) a fim de receber instruções mais específicas sobre a maneira de lidar com o assunto de Saša Gunjević, que poderia ser identificado como “crise” quando popularizado na América Latina. Até a publicação desta matéria, ao que tudo indica, a AG ainda não orientou o departamento de comunicação da DSA e, portanto, o evento permanece silenciado.

Nas redes, os membros adventistas se posicionam ao menos de três maneiras: (1) há quem comemore o acontecimento, expressando uma teologia afirmativa; (2) há quem discorde e demonize o ocorrido, (3) e também quem procure um posicionamento “neutro”, apontando os prós e contras da situação. Em grupos de Whatsapp de pastores adventistas, é possível averiguar uma postura negativa quanto ao fato, apresentado-o em tons apocalípticos, como sinal do fim dos tempos. Nos mesmos grupos há também críticas aos adventistas alemães, que no imaginário adventista brasileiro parecem figurar como “igreja apóstata”.