Em resposta a um texto publicado na Zelota, Bruno Reikdal analisa a implantação do capitalismo na América Latina e o suposto fim da Teologia da Libertação


Na praça centra, renomeada “Plaza de la Revolución”, em Manágua, Nicarágua, 1979 (Foto: Susan Meisalas/ Magnum Photos)

Em um período relativamente curto, mais uma vez nosso camarada André Castro levanta um debate necessário, provocativo e fundamental para nosso tempo: a avaliação dos avanços e dos limites do movimento religioso e popular mais importante do século 20 para a América Latina – a Teologia da Libertação. Em seu texto recentemente publicado pela revista Zelota, O que restou da Teologia da Libertação?, Castro aceita em termos relativos que esse movimento “caducou” e faz um excelente diagnóstico do cenário atual da Teologia da Libertação (TdL), ou melhor, de sua corrente hegemonizada. Na verdade, está implícito na crítica que se trata de um olhar a partir da realidade brasileira e dos caminhos tomados pelo que poderíamos considerar a transição da segunda para uma terceira geração do movimento.

Apesar de parecer relativamente batida a discussão sobre os limites da TdL, Castro não faz “mais do mesmo” e não aceita as soluções comuns para justificar ou negar os limites da TdL. Pelo contrário, avança para o lugar central da questão: olhar para a história, não apenas do desenvolvimento interno do movimento, mas colocando em perspectiva as condições que impulsionariam e enfraqueceriam a TdL na América Latina – a bem da verdade, com o foco voltado para o Brasil, como discutirei adiante. Como comenta em seu texto, o descompasso entre as afirmações que se consolidam e hegemonizam como expressões da Teologia da Libertação e os processos históricos que desencadearam transformações profundas (e violentas) em nossas terras, fazem da herança da TdL “ideias fora do lugar”. Não por estarem desatualizadas, mas exatamente por estarem adequadas à “atualidade” sem maiores críticas a essa adequação.

Nesse sentido, é muito importante ver que a contribuição e a provocação de Castro não se limita ao que Malik Tahar Chaouch caracteriza como literatura militante (cujo traço principal é assumir o ponto de vista interno à Igreja e em defesa da TdL como verdadeira expressão de fé de cristãos oprimidos), ou como literatura apologética dentro das ciências sociais (que procura se distanciar do objeto, contudo, por vezes assumindo determinadas categorias internas ao movimento da TdL). Pelo contrário, Castro tenta o movimento que Chaouch chama de esforços de distanciamento (que tem como pano para a análise não a própria TdL, mas as organizações e processos externos que garantem sua emergência e manutenção).1 Assumo a tese de que uma boa crítica (e uma boa teologia) tem como base uma análise de conjuntura. Exatamente o que propõe o texto com o qual debato aqui.

Contudo, Castro expõe o conteúdo de maneira inversa (o que não é um problema, mas cria uma dificuldade para quem lê na aceitação de seu diagnóstico, que é desenvolvido antes da busca pelas causas). A busca pela verificação de transformações históricas aparece em um segundo momento, tratando de colocar certas causas para os limites. E é exatamente esse último ponto que nos interessa. De todo modo, cabe indicar que o diagnóstico do “estado atual” da TdL nos parece preciso. A crítica direcionada a Leonardo Boff (dando sequência à anteriormente realizada por Hugo Assmann2) expressa de modo sintético os problemas do que teria restado do movimento de libertação entre nós. O que falta, entretanto, é olhar mais uma vez para o processo histórico, buscando as contradições internas de um quadro conjuntural mais amplo.

Para isso, na sequência de nossa discussão organizaremos nossas hipóteses da seguinte maneira: 1) Destacar a origem da TdL nos processos de modernização da Igreja Católica e sob um projeto de modernização capitalista em alguns Estados nacionais da América Latina no século 20; 2) Indicar em termos gerais a reorganização da reprodução social sob as novas dinâmicas do modo de produção capitalista na trilha do tal do “desenvolvimento” (modernizante); e 3) Apontar alguns elementos que corroboram o diagnóstico de Castro a partir de dinâmicas implementadas no continente a partir de 1990.

A modernização religiosa e a modernização capitalista

Como José Comblin explicou, diante das rápidas transformações da sociedade europeia a partir da Revolução Industrial, especialmente durante o século 19, a posição da Igreja Católica (majoritária no mundo cristão, inclusive com um Estado próprio) “consistia em dar à modernidade encarnada nas revoluções políticas e sociais, nas novas filosofias, nas ciências nascentes uma única resposta: um ‘não’ categórico”.3 Ao final desse século e início do 20, entre avanços e recuos, são implementadas reformas modernizantes com uma nova doutrina social da Igreja e uma nova proposta de missões e evangelização, iniciadas pelo papa Leão XIII. Há uma abertura e assimilação ampla das ciências modernas e seus desenvolvimentos, em todos os campos, e com isso uma nova maneira de buscar o posicionamento e a manutenção da função da Igreja dentro da reprodução social capitalista, agora plenamente industrializada nos centros.

O foco dessa reorganização procurou ocupar lugar entre os grupos humanos não contemplados pelas maravilhas da urbanização e das novas dinâmicas produtivas da sociedade industrial. A tal da “igreja dos pobres” significava na primeira metade do século 20 (especialmente em território europeu) a função desempenhada pelas missões religiosas no cuidado dos afetados pela industrialização até que fossem agraciados por seus benefícios. Nasce a Ação Católica, o movimento de padres operários e sindicatos cristãos, organizações estudantis, de juventude católica etc. Esses se somam a organizações cristãs protestantes, que já desempenhavam funções orgânicas semelhantes em fábricas, e também na composição de sindicatos e partidos. Aliás, nesse processo se dá a assimilação de teologia protestante como a de Moltmann, Bultmann, Bonhoeffer e outros – como comenta Michael Löwy.4

A teologia protestante já tinha correntes progressistas consolidadas, tanto por sua dinâmica interna descentralizada quanto por sua adequação à forma social burguesa e ao modo de produção capitalista.5 Não é preciso dizer, com isso, que o progressismo protestante na América Latina teria certa vantagem relativa para começar um processo teológico reflexivo e crítico dos efeitos do processo de modernização capitalista. Nossa hipótese, na verdade, é que autores como Rubem Alves, Richard Shaull e mesmo Juan Stam funcionam como vanguarda do pensamento de libertação exatamente por estarem alocados em centros urbanos, vendo imediatamente os efeitos da modernização, e tendo como referências para interpretar essa realidade os autores protestantes recém-assumidos pelo progressismo católico, que os assimilava com ressalvas, dada a necessidade de manutenção e mesmo defesa da posição de sua tradição e doutrina. Posteriormente, os rumos se dividem e parte dessa “vanguarda” protestante se revela, na verdade, apenas uma influência deflagradora que contribuirá para a efetiva vanguarda assumida pela TdL em sua frente católica.

De todo modo, o que nos interessa é que a partir do pós-Guerra, ao final da década de 1940, as missões católicas se voltam para a América Latina, tentando antecipar sua posição no processo de modernização industrial e capitalista do continente. Sacerdotes, noviços, noviças e teólogos leigos são formados e enviados do centro europeu para cumprir a nova doutrina social na periferia. O problema é que, ao chegarem por essas terras, precisam realizar a missão de cuidar da “igreja dos pobres”, os quais aparentemente seriam em breve acolhidos pela indústria e a sociedade burguesa, urbana e “livre”, mas descobrem que o empobrecimento apenas aumenta com a modernização capitalista, e as condições de vida da maioria da população são deterioradas. Ao mesmo tempo, há o enriquecimento nos centros do mercado mundial e mesmo ampliação da classe trabalhadora assalariada com direitos (precários por aqui). E a descoberta dos missionários é que, para proteger a “igreja dos pobres”, precisam ir à raiz, à causa de seu sofrimento: o próprio processo capitalista de modernização.

Dessa maneira, na periferia, a modernização da Igreja entra em conflito com o projeto de modernização ao qual se adequava no centro. A TdL, assim, surge como efeito não intencional que emerge das contradições dos processos de modernização, especialmente entre a missão eclesiástica e a implementação da industrialização capitalista com maior ou menor êxito em países latino-americanos. Estados como Brasil, Argentina, México e Chile, conseguem certo grau satisfatório de sua modernização e vêem os conflitos em torno do problema do assalariamento para a classe trabalhadora escalonarem rapidamente. Mas a maioria dos territórios não tem esse processo de forma efetiva e dinâmica, senão na industrialização (muitas vezes precária) do campo e em algumas atividades manufatureiras de baixo valor agregado. O aumento dos latifúndios e a expulsão das famílias com suas pequenas propriedades comunais de terra, com sua forma de organização para subsistência superexplorada pelo modo como a periferia se inseriu no mercado mundial durante o período colonial, eclode os conflitos generalizados no campo e a luta de camponeses pela terra (maioria da população até o início dos anos 2000).

Mesmo nos países que se industrializaram com maior êxito, o êxodo rural e os conflitos no campo marcam o cenário de luta e mobilização popular no século 20. Desse modo, a rede de participantes da TdL se beneficia em sua atuação das estruturas católicas disseminadas nos interiores do continente (desde a colonização) e se engaja junto às comunidades na luta por sua vida, subsistência, manutenção de condições de viver, produzir e se reproduzir. Esse é o solo fértil para a TdL e que condiciona a produção teórica militante. Por isso, com razão, Castro pode sustentar em seu texto que o contexto fecundo para a TdL não existe mais. Contudo, não porque “o contexto que dava razão e sentido à TdL era a luta social que permeava o projeto de sociedade salarial”, mas porque a forma comunitária de organização, subsistência e reprodução social, que era vigente e entrava em contradição com o processo de modernização capitalista, foi suprimida.

Modernização industrial capitalista e reprodução social

Do ponto de vista do trabalhador que está inserido no processo de industrialização e até do ponto de vista da implementação da sociedade moderna capitalista, o assalariamento e a luta pelo salário são algo a ser defendido. Mas do ponto de vista de quem está sendo expulso de sua terra ou forçado a buscar alguma renda na cidade para a manutenção da propriedade familiar – e mesmo para a própria sobrevivência individual –, o assalariamento é uma ameaça, a destruição das bases comunitárias para a inserção em um projeto industrial; uma insegurança total, ausência de garantia de condições de vida e manutenção da vida. Portanto, o processo de implementação de indústrias sob a modernização capitalista é violento para as comunidades e famílias do campo.

Juan José Bautista e Katya Colmenares são intelectuais que têm discutido aprofundadamente a necessidade do capital em destruir bases e laços comunitários para fazer valer sua acumulação e reprodução (ampliada). A destruição da organização comunitária não é apenas uma readequação de indivíduos a uma nova realidade, mas a destruição de modos de vida – que acarreta a destruição direta da vida das pessoas. A base está em impossibilitar a reprodução da vida dos sujeitos, que são forçados à inserção em dinâmicas de trabalho novas, instáveis e que não trazem como garantia a subsistência e a sobrevivência. Por isso, diante do processo de modernização capitalista, as formas sociais tradicionais ou vigentes até então se colocam contra o projeto em curso que se impõe.

Em Capitalismo y población: reproducción de la fuerza de trabajo bajo el capital, Wim Dierckxsens descreve o processo de implementação do modo de produção capitalista na América Latina e seus efeitos sobre a reprodução da força de trabalho, ou melhor dizendo, sobre reprodução da vida das pessoas que precisam vender sua força de trabalho. As condições de imposição de salários como meio de busca e garantia de recursos necessários para a reprodução da própria vida (individual) faz com que se deteriorem as relações familiares que então dispunham e garantiam os meios necessários para satisfazer as necessidades de vida da comunidade (seja no núcleo familiar ou entre os coletivos de camponeses). Com a industrialização do campo e a produção em escala, os produtos da pequena propriedade perdem valor e por meio da troca no mercado não conseguem mais garantir o dinheiro necessário para as aquisições de recursos não produzidos pela propriedade familiar. Assim, partes maiores da produção precisam ser vendidas ou forçadas tendencialmente à monocultura.

Tendo sua subsistência minada, parte da família precisa buscar novos recursos. Vai aos centros urbanos para vender sua força de trabalho e enviar dinheiro com o intuito de manter a forma familiar tradicional de organização. Nos centros urbanos, a demanda por trabalhadores é menor do que a disponibilidade de força de trabalho. Assim, os salários ofertados são baixos e instáveis (ao menos em um primeiro momento para a classe que nada possui). A ausência de empregos para todos faz com que a substituição de um trabalhador por outro seja facilitada (e barateada), de modo que há o que Dierckxsens chama de “rotação da força de trabalho”, que é a circulação regular entre empregos em um segmento da sociedade em idade produtiva. Contudo, à medida que o tempo passa e o trabalhador envelhece, a chegada de mão de obra mais nova força sua saída do circuito produtivo e ocorre o fenômeno da “substituição da força de trabalho”, que renova as massas operárias por trabalhadores mais jovens e com maior tempo de vida útil para a produção industrial.

Todas essas dinâmicas dificultam a manutenção do emprego e de um salário estável. Além disso, não interrompem o fluxo migratório do campo para a cidade. Pelo contrário, a industrialização no campo e o aumento dos latifúndios, somado à perda de força de trabalho no campo e o encarecimento da manutenção da propriedade comunal ou familiar, potencializam o êxodo rural, com populações inteiras que não serão absorvidas pela indústria e precisarão buscar outros meios de sobrevivência e subsistência. Cada indivíduo (agora) trabalhador “livre”, busca uma maneira de garantir renda para que a família (existente para o capital apenas como meio para a reprodução da força de trabalho e garantia da substituição e reposição de trabalhadores) sobreviva. A família, por sua vez, vê sua estrutura como fundamental para a existência de todos e se adequa às novas dinâmicas sociais de trabalho, de modo que a cada momento precisa ter mais pessoas disponíveis para vender sua força de trabalho.

Isso significa que cada integrante da família precisa buscar uma renda. Não encontrando na indústria, procura em outros serviços (de comércio, domésticos, em alguma central de armazenamento etc.). Com mais pessoas disponíveis, menores os salários. Ainda mais se tratando da divisão doméstica e sexual do trabalho: se antes a família sobrevivia apenas com o salário do pai da família ou dos homens da família, a entrada da mãe ou das mulheres da família não faz com que os salários “dobrem”, mas faz com que caiam e ainda se depreciem: se com 1 salário sobreviviam 4 pessoas, do ponto de vista capital o ingresso de uma nova pessoa da família implica na possibilidade de redução dos salários para a manutenção da renda familiar para a subsistência dessas mesmas 4 pessoas. E todas essas dinâmicas fazem parte do processo de implementação da modernização capitalista no continente latino-americano.

Assim, para a reprodução da vida das pessoas, reprodução da força de trabalho, o assalariamento insere uma série de contradições e problemas estruturais. Os mais velhos que passam a não conseguir emprego precisarão retornar para a família e ter as condições de vida garantidas por alguém ou depender de algum programa de seguridade social, assim como as crianças e adolescentes em idade ou condições que não garantem produtividade precisam do núcleo familiar mantendo sua subsistência. Contudo, as dinâmicas salariais destroem as relações comunitárias e a própria garantia de sobrevivência e subsistência da família. Se expulsa da pequena propriedade para os centros urbanos, sofre com a incerteza e a marginalidade. Enfrenta o processo de modernização industrial capitalista como uma questão de vida ou morte.

A reprodução social é afetada e as pessoas lutam para sobreviver. A efervescência das mobilizações populares não é sem causas – e muito menos a emergência e o desenvolvimento da TdL. O processo de realização da modernização capitalista avança e se, do ponto de vista de um projeto nacional de desenvolvimento, não se efetiva por completo ou aos moldes do logicamente esperado (e espelhado na história do processo no centro do mercado mundial), do ponto de vista da transformação da reprodução da força de trabalho ele é exitoso. Há certo “assentamento” que ocorre dentro da dinâmica de reação e luta popular e um arrefecimento do processo ao início dos anos de 1990 e na passagem para os anos 2000, mas não como realização perfeita de um plano, e sim como efeito das contradições da própria modernização industrial na periferia do capitalismo. Esse assentamento revela tanto a mobilização popular e seus ganhos, quanto a ação (e reação) do capital e suas elites com suas vitórias (que implicam matar e deixar morrer milhões de seres humanos). 

A TdL sofre muito com essas transformações – as quais tratamos em uma breve revisão histórica no texto Fascismo como religião nas eleições de 2022. E uma das saídas encontradas no processo foi a luta pela garantia das condições de subsistência sob as novas dinâmicas industriais e capitalistas implementadas. A questão, como muito bem destaca Castro em seu texto, é que essa industrialização é limitada e insuficiente, incapaz de acompanhar os processos de desenvolvimento nos centros capitalistas (inclusive por causa das relações de dependência existentes entre centro e periferia). Uma nova ordem de relações de produção se estabelece, voltada a serviços e na manutenção de relações salariais precárias e instáveis. A luta pela terra parece perder sentido (ainda não apenas tem, como é realizada diariamente) e o engajamento com a defesa da vida das comunidades existentes quase desaparece – afinal, essas comunidades não existem mais. Então, como ainda falamos sobre a TdL? Seria efetivamente uma ideia fora de lugar?

Entre o diagnóstico e um prognóstico

Logo ao início do texto, Castro faz uma provocação certeira sobre a TdL hoje em dia:

“O seu fim, contudo, é visto como um acaso sem explicações mais aprofundadas. Os diversos volumes da coleção ‘Libertação e Teologia’ não significam mais nada para os jovens estudantes de teologia além de história, no sentido infecundo do termo, é claro. Caducaram. Mas parece que muitos dos nostálgicos leitores dos velhos livros liberacionistas não percebem isso.”

Na primeira parte, Castro indica algo fundamental para quem se insere na tradição da TdL: a ausência de discussões sérias sobre seus limites. A maioria das discussões não avança, ou por partir para o proselitismo que em nome da autoridade do que foi feito no passado defende por pura fé que “aqui estamos!”, ou por não considerar a história e entrar em becos sem saída, como se a questão da TdL fosse teórica (“faltou discutir liturgia”, “faltou mística”, “faltou trabalhar melhor o culto”, “a doutrina x ou y” etc.). Bem, pelo que estamos discutindo aqui, analisar os processos históricos e a conjuntura ofertam muito mais elementos para recuperação do projeto liberacionista do que imaginar que faltou corrigir algum ponto de afirmação de fé entre os pares teológicos.

Ao final da década de 1980, já estava deflagrado o processo de abertura das economias dos países latino-americanos e começava a implementação do período neoliberal, caracterizado no âmbito político pela reestruturação de instituições democráticas liberais6, e no âmbito econômico pelas chamadas “reformas estruturais” – orientadas por amplos programas de privatização e flexibilização da legislação para atração de investimentos de capitais externos. Era a tal inserção definitiva na então aclamada (e limitada) globalização. O que marca o período é o que ficou conhecido como “Consenso de Washington”, nome dado por John Williamson em 1989 ao conjunto de receitas que eram propostas pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Mundial e pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos – todos localizados na cidade de Washington, Estados Unidos. Para cumprir com a agenda, como explica Loris Zanatta, os governos latino-americanos “recorreram a maciços planos de privatizações de empresas públicas, à liberalização de setores antes considerados estratégicos, e por isso fechados ao capital privado, e à redução das barreiras comerciais. Todas essas medidas, por sua vez, estimulariam o afluxo de volumosos capitais externos, em geral atraídos por legislações altamente favoráveis”.7

O processo de transformação política para uma democracia representativa liberal encontrou eco nos interesses das massas populares e de movimentos sociais, já massacrados pelas crises econômicas dos anos de 1980 (que ficou conhecida como “década perdida”) e pela opressão violenta das ditaduras. Estas cumpriam sua missão de “Segurança Nacional”, e, em seu próprio território, caçavam há ao menos duas décadas os “inimigos internos” sob as dinâmicas dos conflitos de Guerra Fria. O apoio popular à democratização foi massivo e movimentos sociais encontraram como saída para aquele período intenso de crise generalizada a pauta pela reorganização institucional. Contudo, ao mesmo tempo, o processo de abertura política foi articulado às receitas neoliberais de abertura de mercados e programas de privatizações, que minaram a soberania dos Estados nacionais e, portanto, dos potenciais governos que seriam eleitos pela democracia que surgia. 

O Brasil, com o movimento das “Diretas já!”, é exemplar do que significou esse processo de transformação, com ganhos populares em uma institucionalidade democrática, e perdas gigantescas com a dependência dos fluxos de capitais externos e processos de privatização, que afetaram diretamente o atendimento às massas populares e a capacidade de programas voltados para o crescimento econômico e desenvolvimento das forças produtivas.8 É voltado especialmente para esta realidade brasileira que Castro reflete sobre os limites da TdL. A saída encontrada foi um processo conflitivo e contraditório de adequação crítica às transformações políticas que ocorriam no continente. Apoiando a democratização, mas criticando o neoliberalismo. O grande problema é que ambos os processos não são dissociáveis – apesar da luta e dos combates institucionais implementados por expoentes de movimentos populares e mesmo pela atuação de movimentos sociais. E isso se reflete na produção ou no pensamento teológico – do mesmo modo que a origem da TdL teve como alavanca seu contexto, sua conjuntura.

Assim, temos uma teologia que tenta manter ou recuperar a tradição liberacionista adequada à contradição entre uma democracia liberal representativa, conquistada a duras penas, e uma modelagem social neoliberal que amassa qualquer possibilidade de mobilização popular por autonomia e soberania. Uma teologia, portanto, que não pode ser radicalmente crítica, pois colocaria em risco tanto os ganhos junto e para a classe trabalhadora, quanto sua própria posição de relativa estabilidade no interior das instituições sociais constituídas nas últimas décadas. Falamos, propriamente, de uma teologia acadêmica e de gestão de organizações sociais ou não governamentais que captam recursos sob as dinâmicas estruturadas nas reformas dos anos de 1990 e que garante espaços e mesmo meios de vida para comunidades e alguns grupos marginalizados, mas que não acompanha a vanguarda da luta popular, na militância junto de partidos, sindicatos, associações de moradores ou mesmo grupos de mobilização de setores específicos (como trabalhadoras domésticas, trabalhadores dependentes dos serviços de aplicativos, autônomos etc.). Uma teologia capaz de levantar uma agenda de direitos humanos e sociais, mas deslocada da reprodução social da massa de trabalhadores e trabalhadoras.

A segunda questão colocada diz respeito a uma juventude que não se interessa pela sistematização da TdL, senão como “história” passada – e acabada em algum rincão longínquo. A isso seria necessário certo cuidado para discutirmos as causas e analisarmos “o que é que está acontecendo?”, mas não se pode negar o fato de que as raízes do movimento de libertação são ignoradas ou pouquíssimo trabalhadas de modo sistemático. Ao contrário, reduzida a círculos acadêmicos, quando muito o resgate da TdL implica em homenagem a participantes e fundadores importantes, mas não em um trabalho engajado de assimilação e divulgação do conteúdo sob um novo projeto de evangelização e participação nas lutas populares de nosso tempo, que afetam diretamente a reprodução da vida da classe trabalhadora.

Por fim, Castro afirma (de certo modo, ironicamente) que a TdL “caducou”, no sentido dado pelo teólogo da libertação João Batista Libânio para o termo: as perguntas às quais responde se esgotaram. Nesse ponto, contudo, discordo. A questão dos limites da TdL em seu movimento não está em não questionar, mas por seus herdeiros terem parado de realizar as perguntas e se adequado às respostas dadas ou às resoluções históricas que surgiram dos conflitos da reprodução social sob o projeto de modernização industrial capitalista. As questões centrais da TdL e mesmo sua posição junto às massas populares, que perdiam para o capital suas condições de reprodução de vida, se mantêm não apenas vigentes, como fundamentais e necessárias (apesar de esquecidas). Ao que se hegemonizou como TdL restou pouco do passado. Mas ao projeto instaurado pela TdL na luta pelos pobres (empobrecidos pela modernização capitalista), ainda resta a crítica e o apoio à luta da classe trabalhadora. Nesse sentido, concordo com José Comblin: a TdL deu uma pausa (resta saber se a colocaremos novamente em movimento).

Notas:

1. Ver CHAOUCH, Malik Tahar. “Cristianismo y política em América Latina: el paradigma de la teología de la liberación”. In: Desafíos. Universidad del Rosário: Colômbia, vol. 17, n. 2, pp. 156-199, 2007.

2. Ver de Hugo Assmann “La actuación histórica del poder de Cristo”. In: La nueva frontera de la teología en América Latina. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1977.

3. COMBLIN, José. Cristãos rumo ao século XXI: nova caminhada de libertação. Paulus: São Paulo-SP, 1996, p. 19.

4. São influências nessa modernização “novas correntes teológicas, especialmente na Alemanha (Bultmann, Moltmann, Merz, Rahner) e na França (Calvez, Congar Lubac, Chenu, Duquoc), novas formas de cristianismo social (os padres operários, a economia humanista do Padre Lebret), uma abertura crescente às preocupações da filosofia moderna e das ciências sociais”. Ver LÖWY, Michael. O que é Cristianismo de Libertação? Perseu Abramo: São Paulo – SP, 2016, p. 84).

5. Ver REIKDAL LIMA, Bruno. As raízes religiosas da racionalidade moderna: para pensar com Max Weber. Coleção Grandes Pensadores e Pensadoras. ICL: São Caetano do Sul – SP, 2022.

6. Em termos gerais, o que temos a partir dos anos de 1990 é o restabelecimento na maioria dos países latino-americanos de eleições diretas, com liberdade de formação de partidos e de associações, liberdade de imprensa (organizada e regida sob a dinâmica de conglomerados de comunicação com monopólio sobre a propriedade privada de meios de comunicação) e, em alguns casos, punições e reparações históricas diante do período de regimes ditatoriais militares. Esses ganhos políticos não foram acompanhados por grandes avanços sociais ou mesmo nos serviços de atendimento às massas populares. Ao contrário, começa a intensificação da liberalização das economias nacionais. Esse processo é deflagrado, pois, em um mercado mundial agora neoliberal e “globalizado”, o capital em circulação se tornou muito maior do que as possibilidades de se investir no âmbito do capital produtivo, de modo que progressivamente os investimentos migraram para a especulação financeira. Como explica Franz Hinkelammert em Hacia una economía para la vida, publicado pelo DEI em 2005, como o capital especulativo “exige pelo menos a mesma lucratividade que o capital produtivo, surgiu uma caçada e uma pilhagem na busca de possibilidades de alocação rentável […]. E tais possibilidades de investimento foram buscadas especialmente naqueles setores da sociedade que até então haviam sido desenvolvidos fora do escopo dos critérios de rentabilidade comercial” (p. 298). Então, ao passo que se constituía uma nova institucionalidade estatal, dada a organização da forma de sociedade moderna, eram travadas novas batalhas contra o próprio Estado, já que as atividades visadas pelo capital financeiro eram, até esse momento, preferencialmente desenvolvidas por meio dele, “reconhecidas como ‘bens públicos’ ou ‘serviços públicos’” (Idem, ibidem).

7. Ver de Loris Zanatta, Uma breve história da América Latina, Cultrix: São Paulo – SP, 2017, p. 241. Nesse mesmo livro, que apresenta uma síntese interessante sobre o tema, Zanatta ainda comenta sobre as reformas estruturais que “a maioria dos países latino-americanos aumentou sua dependência dos fluxos financeiros internacionais. Enquanto grandes volumes de capitais entraram na primeira metade da década, atraídos pelas ambiciosas privatizações em curso, as reformas deram em geral bons resultados e se mostraram sustentáveis. Quando, porém, o ciclo se inverteu e o fluxo se interrompeu ou se tornou mais errático, revelou-se a elevada vulnerabilidade das economias latino-americanas aos fatores externos, especialmente aos ciclos do mercado financeiro global” (p. 242).

8. A respeito desse período, vale muito a leitura da entrevista com José Genoíno feita pela Revista Opera. Em determinado momento, lembrando as mudanças de rumo que teve de apoio a guerrilhas nos anos de 1970 para a participação no processo de democratização, Genoíno desenha o que foi a entrada no período neoliberal dos anos de 1990. Leia aqui.