A guerra cultural por Marajó e suas consequências para a popularidade de Lula mostram que a esquerda brasileira ainda não sabe o que fazer com os evangélicos


Foto do Canal Youtube de @Aymeê Rocha

Os evangélicos brasileiros passaram as últimas semanas na boca do povo — seja lá o que sobra deste se não contamos os crentes, sempre na boca de alguém mas nunca falando (ou falando até demais? Nossa antinomia). Desde Marajó até a última pesquisa Quaest, com pit stop na manifestação da extrema direita do dia 25/02, o debate nas esquerdas a respeito do assunto tem alternado entre dois pólos. De um lado a esquerda secularizada e defensora do tal Estado laico, horrorizada com os “fundamentalistas” que querem instaurar uma “teocracia” no Brasil, manifesta sua ojeriza à contaminação da política pela religião; de outro, a esquerda evangélica progressista, também defensora do tal Estado laico, horrorizada com os “mercadores do templo” milionários que manipulam pobres crentes da classe trabalhadora, manifesta sua ojeriza à contaminação da religião pela política. Leitores mais atentos já saberão onde quero chegar, e por isso mesmo o texto será breve; mas aos desavisados, uma recapitulação.

O Evangelho de fariseus

No dia 15 de fevereiro de 2024, a cantora gospel Aymeê Rocha, membra de uma pequena congregação de Redenção (PA) chamada Fonte da Vida, apresentou sua música “Evangelho de Fariseus” na semifinal do show de talentos gospel Dom Reality. Caso ainda não tenha escutado a música, convido você a pelo menos ler a letra, se não ouvi-la

Fazemos campanhas pra nós mesmos
Eventos pra nós mesmos
Estocamos o maná para nós
Oramos por nós e pelos nossos
O Reino virou negócio
O dízimo importa mais do que os corações

Enquanto Ele tá querendo
Quem nós nem pensamos ou nos preocupamos
Oramos errado há séculos
Dias, horas e anos
Nos afastamos

Ah, um Evangelho de fariseus
Cada um escolhe os seus
E se inflamam na bolha do sistema
Ah, enquanto isso, no Marajó
O João desapareceu
Esperando os ceifeiros da grande seara

A Amazônia queima
La-ra-ra
Uma criança morre
La-ra-ra
Os animais se vão
La-ra-ra
Superaquecidos pelo ego dos irmãos

Um Evangelho de fariseus

Estamos apodrecendo o corpo de Cristo
O sangue não tá circulando
O sangue tá coagulando
Estamos no ápice da nova era
E a falsa Noiva se rebela
Contra o Noivo que espera ver um caráter cristão

Ah, um Evangelho de fariseus
Cada um escolhe os seus
E se inflamam na bolha do sistema
Ah, enquanto isso, no Marajó
O João desapareceu
Esperando os ceifeiros da grande seara

La-ra-ra
Um Evangelho de fariseus
La-ra-ra
Um Evangelho de fariseus
La-ra-ra
Um Evangelho de fariseus
La-ra-ra

Letra um tanto crítica para um evento gospel, não? O jurado Alex Passos, da Balaio Produções, reagiu à música dizendo que  “essa é a verdade do mundo”, e vaticinou, em meio a elogios, que nem o mercado, nem empresários, nem pastores gostariam de ouvir o que ela tinha a dizer. Esta era a tensão sentida por líderes evangélicos da extrema direita, que precisavam ao menos começar suas reações ambíguas à música perguntando se a música era “esquerdista” ou “lacração”. Outros iriam mais longe e diriam que a música não era louvor, nem adoração, colocando em dúvida a sinceridade da fé de Aymeê; exortariam a cantora; reforçariam que não se podia generalizar a crítica a todos os evangélicos. Em resumo, a música, em algum nível, deixou inquietas as comunidades evangélicas e perturbou a tranquilidade das hierarquias eclesiais hegemônicas.

Escapou para o mundo outro perigo. Na semifinal do Dom Reality, a pedido do diretor executivo e artístico do programa, Aymeê havia falado um pouco mais sobre a menção a Marajó em sua música: “Marajó é uma ilha a alguns minutos de Belém, minha terra. E lá tem muito tráfico de órgãos. Lá é normal isso. Tem pedofilia em nível hard. Marajó é muito turístico, e as famílias lá são muito carentes. As criancinhas de 6 e 7 anos saem numa canoa e se prostituem no barco por R$ 5,00.” O assunto viralizou quase uma semana depois, quando a senadora Damares Alves (Republicanos), em conjunto com várias celebridades, usou a música para alavancar a pauta “Marajó” nas redes sociais, promovendo informações falsas para alegar que o governo Lula estava abandonando Marajó ao cancelar programas sociais questionáveis criados por Damares no governo Bolsonaro. Em reação, a esquerda agiu como de costume no governo de frente ampla: defendendo as instituições da Nova República e desmentindo o oportunismo eleitoreiro da extrema direita. No fim sobrou até para Aymeê Rocha, pintada como agente da extrema direita por ter participado do movimento Dunamis e do The Send, e Marajó ficou nas mãos capazes do governo federal; não houve tentativa de peso de repolitizar a questão e redirecionar as falsas críticas bolsonaristas a críticas reais contra medidas do governo federal que de fato prejudicariam Marajó, como o já esquecido Arcabouço Fiscal.

Em tempo, é óbvia a mobilização institucional e não orgânica da extrema direita em torno de igrejas, políticos e agências de influenciadores. Já é conhecimento comum que Dunamis e The Send são movimentos de extrema direita, como seu apoio inequívoco a Jair Bolsonaro deixa claro;1 igualmente não há dúvidas dos interesses por trás do Dom Reality, produzido pelo mesmo Centro de Ensino Superior de Maringá (UniCesumar) que firmou contratos escusos com a secretaria de educação de Tarcísio de Freitas (Republicanos) em São Paulo. Toda essa mobilização deve ser denunciada e derrotada pela esquerda no debate público. Mas é preciso notar a ironia objetiva aqui: os evangélicos, que numa chave falsa intuem a farsa da pax capitalista e aguardam o fim do mundo enquanto desconfiam de autoridades seculares, só são notados pela esquerda, pioneira na denúncia da farsa da pax capitalista, quando esta defende as instituições públicas que tão bem criticava contra as críticas dos crentes. E ainda nos surpreendemos quando os crentes associam a esquerda ao “sistema” e preferem doar dinheiro a ONGs cristãs ao invés de confiar no poder público — “maldito é o homem que confia no homem”, diria o profeta. Ou, como diria outra profetisa (?):

Ah, um Evangelho de fariseus
Cada um escolhe os seus
E se inflamam na bolha do sistema
Ah, enquanto isso, no Marajó
O João desapareceu
Esperando os ceifeiros da grande seara

Alegria de crente dura pouco

Então veio a manifestação do dia 25, e, passado o terror dos democratas com os ataques de Michelle Bolsonaro ao tal Estado laico, uma reviravolta: uma pesquisa conduzida pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital mostrou que somente 29% dos manifestantes na Av. Paulista era evangélico, e que míseros 10% ganhavam menos de dois salários mínimos. Uma manifestação de classe média, portanto, com mais católicos que evangélicos. Os evangélicos progressistas suspiram aliviados, e começam a escrever “em ‘defesa’ dos neopentecostais”, os quais, mais pobres, estariam muito ocupados em suas duplas jornadas de trabalho para ir a uma manifestação em defesa de um ex-presidente. Mas se alegria de crente dura pouco, a do crente progressista dura menos ainda: uma nova pesquisa da Quaest, publicada no dia 06 de março, mostrou que a aprovação de Lula entre os evangélicos despencou, enquanto a desaprovação decolou. Entre os motivos estaria o posicionamento de Lula em relação a Israel… E o tal caso de Marajó.

Aprovação do trabalho que o presidente Lula está fazendo (Fonte: Quaest).

Uma pesquisa não anula a outra, é claro, e no fim das contas nenhuma das duas é novidade. Há anos argumentamos que o núcleo duro da extrema direita brasileira está na classe média, pois é às alas privilegiadas na divisão social do trabalho que o programa político da direita tem mais benefícios concretos a oferecer, e essa divisão de classes também é uma realidade candente no interior das igrejas evangélicas. O recorte social da manifestação do dia 25, portanto, não surpreende, e mantém o padrão encontrado para outras manifestações da extrema direita nos últimos anos. Os evangélicos de classes mais baixas não deixam de ir às manifestações bolsonaristas simplesmente porque estão em suas jornadas duplas; deixam de ir porque o programa político da extrema direita não lhes oferece benefícios concretos que justifiquem faltar no culto de domingo ou perder seu tempo escasso com a família para seguir um carro de som verde-e-amarelo na Paulista. 

Isso não quer dizer, por óbvio, que os evangélicos que não estavam na manifestação sejam de esquerda, e a pesquisa da Quaest foi um lembrete amargo da realidade; a direita pode não motivar o crente a ir pra rua — e a importância deste fato não pode ser subestimada —, mas sem dúvida motiva seu voto e sua visão do mundo. Ou seria o contrário? Afinal, a apocalíptica evangélica construída ao longo das últimas décadas, embora inclinada à direita, coloca o crente em alerta perpétuo na luta do bem contra o mal, na guerra de todos contra todos de nosso “Estado de emergência econômico permanente”2. E a esquerda hegemônica, o que oferece além da administração assistencialista de destroços?

“Os frutos não são meus”

No dia 04 de março, Aymeê Rocha publicou um vídeo em que lia uma carta aberta, em resposta a muitas coisas que “viu e ouviu” na internet a seu respeito. No vídeo, a cantora contou sua história de vida e sua trajetória como crente, pessoa do mundo e filha pródiga. “Antes de ir ao Brasil, o Brasil veio ao meu encontro no secreto. Eu aprendi algo natural e sobrenatural sobre frutificação,” contou Aymeê. “E foi através de uma simples pergunta: qual a árvore que provou do seu próprio fruto? Nenhuma. […] E eu digo a vocês com toda a certeza do mundo: os frutos não são meus.”

De quem, então, são os frutos de Aymeê Rocha? Seu vídeo tem 15 minutos de duração; em nenhum momento a cantora responde às acusações da esquerda de que ela seria uma agente da extrema direita ou estaria propagando notícias falsas sobre Marajó. Não há nada para provar à esquerda. Aymeê passou 15 minutos abrindo seu coração e respondendo aos seus irmãos em Cristo que se escandalizaram com os tons “esquerdistas”, “lacradores” e revolucionários de sua música, para assegurar-lhes de que sua fé era sincera e de que ela fazia sim parte do corpo de Cristo. Estes são seus interlocutores, sua comunidade. Afinal, se o que ela disse em sua música não foi o suficiente para a esquerda, o que será?

Enquanto nos entrincheiramos na defesa da gestão social petista da barbárie como se esta fosse um governo pós-revolucionário; enquanto defendemos as instituições do “Estado democrático de direito” contra a “irracionalidade” dos evangélicos; estes seguem, nas palavras de um amigo e irmão em Cristo, imaginando o fim do mundo e lutando à sua maneira por um Brasil avivado. Aymeê Rocha não lerá este texto, mas sua bela metáfora se responde sozinha: os frutos de uma árvore são de quem os colhe. E nós, fariseus mais preocupados em preservar formas sociais putrefatas que em construir um mundo novo e mais justo, estamos ocupados demais para colhê-los.

Notas:

1. Não deixa de ser interessante, no entanto, que tais movimentos da indústria gospel interdenominacional, focados no espetáculo e na ilusão de espontaneidade e organicidade, são muitas vezes encarados por jovens cristãos como a alternativa audaciosa à liturgia engessada e ao corporativismo frio das denominações mais tradicionais. Mais um nicho de mobilização que perdemos.

2. A expressão vem de Paulo E. Arantes, “1964, o ano que não terminou”. In: Edson Teles, Vladimir Safatle orgs. O que resta da ditadura: a exceção brasileira (São Paulo: Boitempo, 2010), p. 205-236.