O programa democrático popular de Lula se tornou mais uma das formas da ordem, quando em face à crise, fortalece a empreitada bolsonarista, que atua hoje no espaço popular outrora ocupado pela Teologia da Libertação


Jair Bolsonaro e Michelle Bolsonaro (Doha – Qatar, 18/11/2021; Foto: Alan Santos/PR).

Em 1964 ocorreu o golpe militar no Brasil, em reação aos movimentos sociais e partidos políticos que começavam a se organizar politicamente; em 1984 a Congregação para a Doutrina da Fé, instituição da Igreja Romana que cuida do conteúdo doutrinário da igreja em sentido geral, publicou o texto Instrução sobre alguns aspectos da “Teologia da Libertação”, escrito por Card. Joseph Ratzinger (que se tornaria o papa Bento XVI), dando início à perseguição oficial do Vaticano contra a Teologia da Libertação.

Quase 20 anos depois, em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva, conhecido nacionalmente como representante dos trabalhadores nas lutas pela redemocratização dos anos 1980, toma posse como presidente da república, e o Partido dos Trabalhadores (PT) chega à presidência do Brasil; em 2013, Jorge Mario Bergoglio é nomeado Papa Francisco, o primeiro papa latino-americano na história, com claras influências da Teologia da Libertação.

Parece haver alguma relação entre a vida política brasileira e a vida institucional da Igreja Católica Romana, mas para além dessa especulação é possível encontrar entre os dois quadros apresentados a nossa incapacidade constitutiva de destruir o bolsonarismo. Como pode o líder do movimento sindical que se fortaleceu com um discurso socialista/socializante, representante da força política que era vista como ameaça pelo golpe militar, ser o representante de um país ainda capitalista? Como pode o Vaticano nomear papa um latino-americano aguerrido e afiliado à Teologia da Libertação logo após o papado de Ratzinger? Nessa resposta mora nosso problema: o projeto/programa político gerado naquele período de efervescência político-social tornou-se só mais uma imagem, só mais uma forma de identidade que não representa qualquer perigo.

Mas por que estamos falando de religião para falar de bolsonarismo? É preciso lembrar que a religião é em muitos casos uma radiografia da realidade social e dos ânimos e expectativas da população. O processo de modernização/industrialização nacional dos anos 1930 criou toda uma massa populacional urbana que começou a produzir uma forma particular de experiência religiosa, vendo na luta política a ação popular como ação do próprio povo de Deus; essa fé se tornou teologia, e hoje é assunto para diversos textos acadêmicos. Mas o núcleo desse corpo de publicações que chamamos de Teologia da Libertação é uma experiência de fé que se encontra em um caminho para um futuro melhor, que acredita que está em vias de encontrar o reino de Deus. É conhecida a relação entre aquilo que chamamos como campo democrático popular e as comunidades eclesiais de base; também já é muito bem divulgada a origem religiosa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).1 A experiência de elevação das expectativas é uma só, mas se distribui em diversos setores da sociedade; no caso, as esperanças da revolução brasileira foram forjadas em uma releitura da teologia cristã que desse conta daquela vivência de fé que se encarnava na luta histórica. Não é acaso a presença de nomes como Frei Betto nos primeiros governos Lula, e o apoio incondicional de figuras como Leonardo Boff ao programa democrático popular liderado pelo PT. A Teologia da Libertação é sobretudo uma das expressões desse momento político que vivemos nacionalmente, uma teologia política que pode nos ajudar a entender o que se vivia. A questão que nos norteia neste breve ensaio é como essa movimentação que foi originalmente revolucionária conseguiu integrar e se tornar a linha de frente das instituições que anteriormente tinha decidido destruir. 

Tentando dar conta do que foi o período de governo e do que é a governança petista, Marildo Menegat cunha o termo de “gestão da barbárie”; o petismo, segundo ele, foi um tipo de reação ao neoliberalismo globalizado que tentou, com as ferramentas possíveis, gerir aquela sociabilidade em frangalhos da forma mais eficaz possível.2 Sua visão apresenta certa consonância com aquilo que Nancy Fraser chama de neoliberalismo progressista, em que as pautas sociais e históricas são lavadas em uma nova forma política liberal-meritocrática de reconhecimento,3 ou com o que Ana Amélia da Silva chama de política da visibilidade: uma transformação da política em tentativas de produzir espetáculos que destruam o espetáculo.4 Não poderíamos deixar de citar, é claro, a hegemonia às avessas de Francisco de Oliveira, que poderia ser resumida em uma forma política onde os capitalistas consentem em ser politicamente conduzidos pelos dominados.5 Entre as quatro interpretações dessa nova forma de política que brota após a “pedagogia da inflação”,6 podemos perceber que existe uma noção central: aquilo que era uma força política real, a mobilização que de fato poderia ter transformado algo, agora é somente mais um player no concorrido mercado eleitoral, na busca de mais alguma verba ou edital.

É aqui que precisamos voltar para a religião. Os anos 1990 foram o questionamento da vitalidade da Teologia da Libertação; os 2000 foram o anúncio da sua morte. O fato é que aquilo que ficou conhecido como Cristianismo de Libertação realmente entrou em decadência, já não tinha mais força e nem capacidade de organizar e mobilizar o povo. As causas disso vão de uma reestruturação da forma de reprodução do capitalismo mundial,7 passam pela pedagogia das balas de Washington8 e chegam até o consenso petista de gestão social, mas esses pontos não são nosso foco aqui. Se a Teologia da Libertação enquanto imaginação transcendental, na qual era possível perceber a experiência vivida de parte significativa da população, já não tinha mais seus pés no chão, a organização real que dava chão ao surgimento do próprio Partido dos Trabalhadores já não existia. Havia outra coisa. 

Se o Partido dos Trabalhadores ganhou o pleito mais importante da nação e se Bergoglio se tornou Papa Francisco é porque aquilo que ambos representavam já não significava mais nenhum perigo a essas instituições; suas ideias e formas de organização já foram subsumidas na gestão dessas duas instituições centenárias. No fim das contas, seja com Lula e Bergoglio ou Bolsonaro e Ratzinger, o Estado brasileiro e a Igreja Católica Romana seguem sendo as mesmas máquinas de matar e esconder cadáveres que sempre foram.

“Mas o que isso tem a ver com o bolsonarismo?”, pode me perguntar o leitor. O bolsonarismo precisa ser entendido como um projeto revolucionário que reage a tudo aquilo que o programa democrático popular representa. Este programa foi forjado em um consenso; é no estabelecimento desse consenso que as forças políticas reais do próprio programa se desintegraram em organizações sem fins lucrativos. O consenso, contudo, pressupunha que houvesse avanços, pagos pelo superávit e pela previsão de melhoras. Enquanto havia dinheiro, tudo corria bem para os movimentos sociais e para os donos dos bancos; essa é a grande capacidade e a magia do PT. O problema surge na crise, claro, e o bolsonarismo vem dela. Se a hegemonia estava às avessas, se o poder político burguês era gerido pelos representantes dos trabalhadores, é claro que a oposição e a revolta viriam da direita e da extrema direita. Se a hegemonia estava às avessas, é claro que a revolução viria com o sinal trocado.

Essa novidade política que é o bolsonarismo tem também sua teologia política, como foi a Teologia da Libertação para os movimentos sociais dos anos 1960-1970. É claro que ela é diversa e complexa, mas é possível assimilar algumas notas dessa teologia nas palavras da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. Através de duas de suas falas,9 podemos entender que Deus tem um projeto para o Brasil, um plano de Brasil avivado, mas os comunistas e LGBTs não lhe permitem ser efetivo; e que nossa arma é a oração. Esse é o campo de batalha de Michelle: um campo onde a moralidade define a vida real das pessoas, onde batalhas espirituais se revelam na natureza. Chamar isso de fundamentalismo é dizer pouco ou quase nada. A novidade teológica do bolsonarismo é que ele se organiza teologicamente a partir de um paradigma apocalíptico, enquanto a Teologia da Libertação se organiza estruturalmente em um paradigma profético-messiânico. O papel da teologia até então era dar razão à esperança e mostrar qual eram os caminhos que deveriam ser cruzados. O teólogo é o profeta; o povo em vias de sua libertação é o messias. Já Michelle é uma profetisa apocalíptica, no sentido real do termo, de revelação. Ela fala para revelar que os conflitos políticos são na realidade conflitos espirituais, que Deus escolheu o seu marido como agente de transformação, que estamos em uma guerra de bem contra o mal.

A novidade teológica do bolsonarismo também acompanha uma novidade política. Esta se apresenta não só no projeto político, que transforma tudo aquilo que o PT fazia em menor escala para conseguir manter o consenso com a burguesia – ou seja, toda a boiada de extrativismo e superexploração que era passada – em promessas de campanha, mas também em sua forma de organização política. Essa organização política faz parte de uma rede de contatos forjados em espaços de convivência como comunidades de fé evangélicas, isto é, igrejas. Da mesma forma que as comunidades eclesiais de base forjavam uma força política à esquerda, as igrejas evangélicas organizam uma força política, agora à direita.

É interessante notar que enquanto as comunidades eclesiais de bases declinavam e caminhavam para sua decadência atual, outras comunidades de fé começaram a brotar nesses mesmos ambientes sociais; foram as lideranças dessas comunidades que deram apoio a Bolsonaro, e foi nelas que diversos grupos bolsonaristas se formaram. 

Em face a esse crescimento do projeto bolsonarista nas comunidades, certos grupos que ainda estão ideologicamente ligados ao projeto de consenso anterior têm tentado se contrapor ao tal fundamentalismo que o primeiro representa. Não vamos discutir o que significa chamar um grupo de fundamentalista, ou qual é o valor dessa nomeação. O que nos interessa é entender que a forma política apresentada por esses grupos a nível de discurso, organização, alianças e projetos para o futuro é uma mera repetição de todo o horizonte político-especulativo do programa democrático popular. Tentam responder às novas perguntas com as velhas respostas, destruir o vírus com o mesmo remédio que o fortalece há um bom tempo. Enfrentando esses novos desafios, acreditam que estão dando novas respostas e construindo novas narrativas, mas continuam com o velho progressismo conservador do consenso democrático popular requentado.

O que isso significa? Essas organizações evangélicas progressistas são pequenas e experimentais, e não são a causa do problema. São o sintoma de uma esquerda que continua em sua cegueira negacionista, não enxergando que o tempo do consenso já passou. Vinho novo se põe em odres novos, diria um antigo mestre. E mesmo que não possamos tomar a parte como o todo, já que os evangélicos progressistas não são um reflexo exato da esquerda, dentro da ação política desses evangélicos é possível notar o embrião da mesma lógica que organiza os progressistas em geral: a repetição do programa democrático popular, já tornado farsa. A reeleição desidratada de Lula é só mais uma das claras demonstrações de que o programa está morto; afinal, o que vem depois de Lula? Ao que tudo indica, realmente teremos um único projeto político com força de massas no Brasil. O que vem depois? Pelo visto até agora, o abismo. 

As mobilizações políticas que deram forma ao programa democrático popular foram destruídas pela sua própria elevação ao poder; a crise geral do capitalismo mundial escancarou a crise interna da nação brasileira. Tentativas de responder o projeto político nascido dessas crises com as antigas respostas em novos formatos só aprofundará mais o problema. Se Fraser acha que o novo não pode nascer nos EUA, aqui nas terras de Machado de Assis o novo já nasceu; só não nos atentamos a ele porque não tem a face que esperávamos.

Notas:

1. Michael Lowy é o mais significativo teórico na interpretação dessa relação entre Teologia da Libertação e projetos políticos populares. O mesmo tem uma aula sobre o assunto: Michael Löwy – O que é cristianismo da libertação – religião e política na América Latin Para aprofundamento vale conferir seu livro central: LÖWY, Michael. O que é Cristianismo da Libertação: religião e política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2016.

2. MENEGAT, M. A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe, o giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.

3. FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo: Autonomia Literária, 2021.

4. SILVA, Ana Amélia da. Teatro das exceções (figurações). In: RIZEK, C. S.; OLIVEIRA, F. D. A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007.

5. OLIVEIRA, F. D. Hegemonia às avessas. In: RIZEK, C. S.; OLIVEIRA, F. D.; BRAGA, R. Hegemonia às avessas Economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.

6. O termo desenvolvido por Francisco de Oliveira refere-se basicamente à adoção de políticas de austeridade na década de 90, justificada no debate público como necessária contra a inflação gerada nos anos 80. Conferir: OLIVEIRA, F. D. A era da indeterminação In: RIZEK, C. S.; OLIVEIRA, F. D. A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007.

7. Tornou-se vulgar chamar a atual fase do capitalismo de neoliberalismo; trata-se o fenômeno mais como uma ideologia do que como uma nova forma de produzir capital. Para uma aproximação daquilo que queremos dizer com  reestruturação do capital em seu capítulo nacional conferir o ensaio O Ornitorrinco, de Francisco de Oliveira. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica da Razão Dualista/ O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.

8. A perseguição que padres e cristãos de libertação sofreram pelas diversas ditaduras na América Latina foi parte do motivo do recrudescimento do Cristianismo de Libertação; figuras como Dom Oscar Romero ficaram conhecidas como mártires da Igreja popular. Um caso que representa bem isso foi o massacre dos jesuítas em 1989.

9. Estamos falando em específico dessas duas falas: Bolsonaro na Lagoinha – 07/08/22 (Completo) Discurso da primeira-dama, Michele Bolsonaro na Convenção nacional do PL