Em resposta a um texto publicado na Zelota, Bruno Reikdal reflete sobre a estratégia tomada pelo Partido dos Trabalhadores no combate ao fascismo ainda emergente no Brasil


(6 de Janeiro de 2023) Presidente Lula faz primeira reunião ministerial no Palácio do Planalto (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

A vitória eleitoral da frente ampla em torno da candidatura de Lula para a presidência do Brasil marcou o final do ano de 2022. Esta foi uma vitória importantíssima para a organização popular e na defesa de uma institucionalidade mínima diante do crescimento do movimento fascista em parcelas da população. Como sempre é bom lembrar, a força do fascismo não é determinada por quem ocupa uma posição executiva no aparato estatal. Pelo contrário: é graças à fascistização de grupos da sociedade que um fascista pode ser sustentado e mesmo chegar às instituições políticas de execução do poder. Assim, já era mais do que sabido que Bolsonaro havia perdido a eleição, mas o movimento que o levou ao poder em 2018 seguiria (segue e seguirá) firme.

O que não se esperava era uma ação tão pitoresca quanto a invasão à Esplanada, ocorrida no dia 8 de janeiro de 2023. Novamente, o movimento que se consolidou em torno da figura de Jair Messias Bolsonaro garantiu as primeiras páginas dos jornais e novas rodadas de análise sobre seu caráter, além de ser um grande teste para o governo recém-eleito e empossado. Sob esse contexto, a revista Zelota publicou o artigo Da Teologia da Libertação ao bolsonarismo, escrito por André Castro. Não se trata de um texto escrito imediatamente para discutir o ocorrido, mas uma reflexão que já vinha amadurecendo e que chega em boa hora para que possamos discutir, criticar e tentar compreender nossa conjuntura.

O fato de o artigo imediatamente aparecer como uma contribuição sobre o que estamos vivendo nesse momento já revela a importância e mesmo precisão da análise de Castro. Como bem deveria ser, o artigo é fruto de um processo reflexivo cuidadoso e paciente, que considera o tempo das dinâmicas sociais e da história, buscando nesta o ponto de partida para colocar o debate. Fundamental que destaquemos isso, pois incontáveis vezes se confunde a velocidade da produção social, que desenvolve um aparato tecnológico capaz de apresentar e transmitir informações detalhadas da realidade quase que instantaneamente e com uma especificidade absurda, com o tempo em que se constitui e evolui a história social, a história da humanidade. Como um bom marxista, Castro tenta não cair na armadilha escondida na neblina da sociedade industrial capitalista moderna, mas, antes, busca dissipar as nuvens no caminho olhando para a história.1 Passo bem sucedido a partir do qual queremos trilhar.

Isto posto, minha crítica estará organizada em três blocos: 1) discussão metodológica; 2) questões conceituais; e 3) debate sobre a Teologia da Libertação. Ao longo do texto, apresentarei os pontos com que concordo total ou parcialmente, questões das quais discordo, e temas que parecem ser importantes para uma discussão futura. De todo modo, dado o objetivo e os limites de um artigo de polêmica a partir da contribuição de Castro, o foco pesará sobre os pontos de discordância. Afinal, assim como o ferro afia o ferro, camarada afia camarada.

Discussão metodológica

Como comentei, Castro faz o necessário para que não percamos o chão dos nossos problemas sociais: a história. Ele recupera a trajetória de movimentos de esquerda e sua ascensão às instituições de execução de poder, indicando a estratégia dos movimentos sociais de esquerda que prevaleceram – tanto com relação à disputa política no Brasil, quanto em relação à organização progressista no interior da Igreja Católica. Seu sobrevoo observa corretamente o que acontece do ponto de vista do sistema político que se constitui a partir do modo de produção capitalista, em sua transformação na passagem do século 20 para o século 21. Com um olho no Estado brasileiro e outro na Santa Sé, deixa claro que o que interessa é perceber que os movimentos de esquerda que chegaram em posições decisórias em ambos não ameaçam, na perspectiva de reprodução do modo de produção capitalista, a ordem vigente.

Tornam-se, portanto, gestores da manutenção de uma série de dinâmicas sociais, processos políticos e relações econômicas contra as quais haviam se levantado. Desse ponto de vista, sistêmico, é exatamente isso que acontece – e tal movimento não pode ser descartado ou perdido de vista. Por outro lado, do ponto de vista da reprodução da vida humana, ou seja, das grandes massas de trabalhadores e trabalhadoras superexploradas, com todas as suas características e composições específicas, houve grandes vitórias. A reprodução da vida (do ponto de vista econômico, da força de trabalho e de consumidores que determinam o reinício de cada ciclo produtivo em última instância) teve garantias até então inexistentes na sociedade brasileira sob os governos do Partido dos Trabalhadores. No âmbito religioso, temos uma institucionalização de organizações progressistas na luta pelos direitos humanos e em defesa de movimentos sociais (desde a organização do Fórum Social Mundial, a coordenação das Campanhas da Fraternidade e Campanhas Ecumênicas da Fraternidade, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no Brasil, coletivos como Jubileu Sul e mesmo as orientações e atividades do Conselho Nacional de Bispos do Brasil).

Desse modo, sob condições hoje perceptivelmente vantajosas, a atuação dos movimentos que paulatinamente e com o apoio popular se assentaram nas instituições de execução do poder foi fundamental. Dentro das estratégias escolhidas, o objetivo de atender as necessidades das parcelas precarizadas e marginalizadas foi atingido. E não foi um processo tranquilo. Apenas se tornou possível graças à mobilização e luta popular, através da organização da classe trabalhadora e dos movimentos sociais das chamadas “minorias” (que compõem, na verdade, a maioria da população explorada). Ou seja, na dinâmica histórica de disputas, a luta estava viva e oportunidades não apenas foram conquistadas e aproveitadas, como criadas no tensionamento das crises e limites próprios do capitalismo.

Desse modo, na análise histórica precisamos sempre ter esse duplo olhar para que compreendamos os fenômenos econômicos e sociais: a partir da perspectiva do sistema e na perspectiva da reprodução material da vida humana. Isso é importante, pois também torna explícito o critério fundamental para a análise da divisão social do trabalho: a garantia de produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana em comunidade. Esse critério não tem como ser percebido do ponto de vista da ordem vigente em sua reprodução. Trata-se, desse olhar “de cima”, de perceber os movimentos sistêmicos “formais” (o que não significa que não sejam reais, históricos e nem materiais. “Formal”, aqui, tem o mesmo sentido que a crítica de Marx à “formalidade” da economia política burguesa: esta percebe certas características do sistema mercantil que fazem parte da dinâmica econômica, mas não conseguem partir de um olhar “a partir de baixo”, que considera não apenas os processos gerais de troca, mas o conteúdo da produção).2

Assim, Castro está certo em destacar o caráter de gestão e defesa das instituições políticas e religiosas existentes, assumido e realizado pelo progressismo que aponta. Mas falta um olhar para a reprodução da vida dos trabalhadores e das trabalhadoras para observar as vitórias e conquistas realizadas. O elo que possibilita essa passagem é a divisão social do trabalho e a disputa em torno da coordenação da divisão social do trabalho. Essa estrutura, por sua vez, possibilita percebermos que, mesmo sem alteração do modo de produção, as dinâmicas dentro das classes sociais e suas posições na divisão do trabalho tornam instável o sistema político vigente, de modo que a ordem até então funcional para controle e dominação se torna ameaça para elites e grupos privilegiados – os quais tinham até então melhores cargos ou mesmo monopólios sobre a coordenação da produção e manutenção da divisão do trabalho.3

Questões conceituais

O primeiro apontamento com respeito à conceituação de alguns fenômenos é o uso do termo “bolsonarismo”. De maneira nenhuma está errado, dado que se refere ao movimento em torno de Bolsonaro que cresceu a partir das eleições de 2018, tornando-o liderança e representação dos interesses e da mobilização das parcelas sociais que se fasticizaram no Brasil na última década. Contudo, o uso do termo corre o risco de perder de vista o fascismo como um fenômeno social e de massas que cresceu e se consolidou antes de Bolsonaro e tende a se manter mesmo “após ele”. Este é um movimento próprio das crises do capital após a industrialização e que é constituído majoritariamente por setores das classes médias, que vêem sua posição relativamente privilegiada na divisão social do trabalho ameaçada e se beneficiam das disputas entre as elites de diferentes setores do capital e mesmo nações em competição por maior controle, seja em território nacional ou no sistema mundial.

O uso do termo bolsonarismo se massifica especialmente pelos jornais e pela pressa em identificar a “especificidade” detalhada desse movimento – o que também pode se conectar ao problema inicial desta discussão metodológica com respeito a seguir um movimento de análise detalhado da “novidade” em real time, sem respeitar o processo de aprendizagem e interpretação histórica que, na expressão de Marx, “começa post festum [depois da festa]”. 

O uso midiático do termo também cumpre um papel de reforço da ideologia conservadora brasileira, que se esforça em demonizar a política e trata mobilizações de massas como “populismo”. Assim, a organização partidária, sindicatos e movimentos sociais que se coordenam em eleições e mobilizações populares em todo o país sob a rede do Partido dos Trabalhadores é definida como “lulopetismo” ou “lulismo”, descaracterizando todas as disputas internas, formação e programa político compartilhado pelos grupos etc. Toda uma coordenação política e formação de militância passa a ser vista como a movimentação de “seguidores de um líder”, e a liderança, em geral, é tratada como a encantadora das massas (por vezes vistas como serpentes, por vezes realmente filhotes do ovo que chocou).

No texto, depois de fazer sua reconstrução histórica, Castro comenta com respeito ao movimento social em torno do PT e da teologia da libertação que “o projeto/programa político gerado naquele período de efervescência político-social tornou-se só mais uma imagem, só mais uma forma de identidade que não representa qualquer perigo”. Novamente, do ponto de vista da manutenção do modo de produção capitalista, está correto. Do ponto de vista da divisão social do trabalho e da coordenação da divisão social do trabalho na sociedade brasileira, não. Há perigo, pois ambos os movimentos se constituíram ativamente para a desestabilização da organização tradicional da classe média e mesmo das relações de trabalho. Especificamente no Brasil, isso é visto na chamada “ascensão da classe C” e seus efeitos; e a teologia da libertação (que discutiremos com mais cuidado no próximo tópico) possibilitou a legitimação e justificação dos programas sociais e do projeto político que se consolidou com o governo petista.

Por fim, um último ponto a salientar é o uso do termo “revolucionário” para o movimento em torno de Jair Bolsonaro. Não o é. É um movimento reacionário: mobilização de setores populares na luta pelo “retorno” da ordem da divisão social do trabalho que garantia a manutenção dos privilégios para esses grupos. Trata-se de um esforço violento de supressão das transformações que ocorreram e que não são revolucionárias da perspectiva do modo de produção, mas do ponto de vista da reprodução da força de trabalho, da vida das massas, representam ganhos históricos e conquistas inéditas em terras brasileiras. 

Nesse sentido, a força contrarrevolucionária reage com violência para potencializar as estruturas de dominação que estruturaram a sociedade e o Estado em nosso país. Podemos denominar esse processo de “rebelião das elites” (ou hiperpotestas, em diálogo com a filosofia política de Enrique Dussel4), que se dá como uma reação imediata de quem detém o monopólio sobre os instrumentos de execução do poder contra o avanço de vitórias advindas de lutas populares.

Debate sobre a Teologia da Libertação

Uma das principais contribuições de Castro no texto é trazer à tona a teologia política que subjaz o movimento em torno de Bolsonaro. O caráter religioso do fascismo funciona como legitimador e justificador dos sacrifícios que exige e transforma em “necessários” – seja contra grupos considerados responsáveis pelo “mal”, contra opositores ou dissidentes, seja a violência que os membros realizam contra si mesmos. Perceber o caráter apocalíptico e profético do fascismo como religião é um avanço para a superação das discussões teológicas críticas que se concentram em revisar tradições e pressupor que os ideólogos desse movimento têm como ponto de partida a realização de um ideal ou valor de uma denominação ou doutrina específica.

A recuperação das doutrinas ou das raízes ideológicas não pode estar descolada da história – do processo de desenvolvimento histórico que conduz as transformações do conteúdo das doutrinas até seu significado hoje – e, principalmente, não pode deixar de observar como esses ideais ou valores estão adequados à manutenção da ordem vigente. Esse movimento está pressuposto na crítica de Castro, de modo que é capaz de indicar a função profética e apocalíptica da atuação, por exemplo, de Michelle Bolsonaro – sem precisar, em um primeiro momento, escarafunchar a qual vertente ideológica está ligada.

Castro realiza o que é proposto pela corrente da teologia da libertação conhecida como “Escola do Departamento Ecuménico de Investigaciones (DEI)”: não se trata de discutir os conteúdos ideológicos em termos de certo e errado, bom ou mau, mas nos termos da “luta dos deuses”. Isso implica em, primeiro, não discutir qual a correta doutrina, mas compreender que há “deuses” e conflito expressos nos diferentes movimentos e organizações humanas. Para o DEI, se a divindade em questão tem como efeito a garantia das condições de produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana, trata-se de um Deus vivo e verdadeiro, comprometido com a vida real não só dos fiéis, como da humanidade. Por outro lado, se este não é o resultado e nem o ponto de partida da teologia e religiosidade realizada pelo movimento, trata-se de um “deus falso” ou, melhor dizendo, de um ídolo: exterior à vida humana (apesar de inserido na história e fruto das interações humanas), que exige sacrifício da vida para sua manutenção.

É nesse sentido que André consegue destacar o profetismo, a teologia e o caráter apocalíptico do movimento fascista. É isso. Tem teologia própria e a realiza para legitimar e justificar o que é considerado “sacrifício” e violência necessárias. Isso não nega todo profetismo, toda teologia ou mesmo religiosidade. Nega-se esse profetismo a partir de um critério objetivo e material que é a vida humana. Entretanto, isso não implica em não reconhecer que esse fenômeno social reacionário desempenhe um profetismo, tenha uma teologia e uma religiosidade verdadeira. Assim, não é descartada sua vigência histórica, validade e coerência interna, condizente com o projeto e o programa político com o qual está comprometido.

Contudo, há um equívoco no passo seguinte. Castro encontra como caminho para discutir a teologia da libertação e a base teológica fascista da mobilização popular a diferença entre um profetismo messiânico e um profetismo apocalíptico. Apesar de corretamente perceber que a corrente que se hegemonizou na teologia da libertação (especialmente no Cone Sul do nosso continente) foi a que privilegiava um anúncio messiânico, não considerou as diferenças internas no próprio movimento. Na América Central, por exemplo, poderíamos sustentar que o profetismo apocalíptico teve um impacto maior – expressão disso é a própria Escola do DEI. 

Como hipótese a ser melhor desenvolvida, sustento que isso tem relação com os processos revolucionários e contrarrevolucionários que conflitaram durante a segunda metade do século 20, especialmente a partir da Revolução Cubana. O ânimo revolucionário se espalha em todo o continente, mas tem resultados diferentes em territórios diferentes. No Cone Sul, temos a repressão das Ditaduras de Segurança Nacional articuladas à reação institucional das igrejas, que como efeito empurram militantes e exilados para diferentes países. Parte dos exílios são direcionados para a América Central, que, a partir dos anos 1970, passa a vivenciar movimentos, vitórias e derrotas populares revolucionárias. Os êxitos por vezes superam a repressão e abrem novos caminhos para a produção teórica – acadêmica e religiosa. Nesse âmbito, o profetismo apocalíptico se torna profícuo.

É exemplar a discussão e a diferença entre o modo como José Comblin e Juan Stam trabalham o livro do Apocalipse. O primeiro, ligado à luta pela terra nos movimentos populares no interior nordestino brasileiro, vê no livro da autoria de João uma disputa religiosa e o interpreta do ponto de vista teológico de esperança messiânica. Já Juan Stam, ligado à produção teórica inicial do DEI, na mesma época realiza uma abordagem mais ampla e que vincula os problemas políticos e econômicos do período imperial para denunciar a ofensiva imperialista estadunidense durante a Guerra Fria e alertar movimentos populares contra seus perigos. O primeiro é capaz de trabalhar uma espiritualidade crítica sob uma promessa salvífica. O segundo, por sua vez, aborda uma espiritualidade crítica no esforço de resistência à violência.5

Então, a causa dos limites da teologia da libertação diante do poder fascista de mobilização popular tem menos a ver com a questão do profetismo messiânico ou apocalíptico em um primeiro momento, e mais com os processos históricos e as dinâmicas entre as lutas populares e as reações das elites e dos grupos privilegiados diante das crises capitalistas. Os processos de repressão do Cone Sul e, depois, na própria América Central, foram centrais para o enfraquecimento da teologia da libertação. Esse movimento não foi parado teoricamente, mas efetivamente: nas prisões, perseguições, cerceamentos e assassinatos. Lideranças populares e revolucionárias foram mortas e violentadas por estarem engajadas em movimentos de libertação6

Como disse Franz Hinkelammert em uma de suas últimas entrevistas concedidas, o projeto da teologia da libertação “foi derrotado por uma perseguição horrível. Foi assassinado, sem mais”. Sem considerar essas dinâmicas históricas, parece ter sido uma falha apenas interna da estratégia e, nesse sentido, estaríamos cometendo o erro de não considerar aquilo que tira a neblina que esconde as armadilhas teológicas. 

Por fim, deixo como gancho uma temática que precisa ser observada. Na mesma entrevista, Hinkelammert indica algo também importante, mas que não poderei avançar dado o objetivo: a própria expansão da religiosidade evangélica também precisa considerar a mudança do projeto do centro do sistema capitalista a partir dos anos 1980. Há a constituição de uma religiosidade adequada às dinâmicas neoliberais que passavam a ser implementadas: primeiramente à força, depois sob reformulações no interior de institucionalidades mais democráticas. A modelagem social que requer o neoliberalismo também precisou do planejamento de conformação de uma religiosidade própria, que reproduz teológica e religiosamente o modo de vida desse novo tipo de organização da produção capitalista. Na luta pela mobilização popular, temos ainda mais esse elemento.

Nota:

1. Para bom entendedor, meia palavra basta, mas vale referenciar. Quando Marx comenta sobre o caráter fetichista da mercadoria no livro I de O Capital, afirma que para compreender o tema seria necessário analogamente “nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso”. Nesse sentido, logo no desenvolvimento do primeiro passo de sua crítica ao fetichismo, Marx indica a necessidade de recorrer à história de outros modos de produção para dissipar “todo o misticismo do mundo das mercadorias, toda a mágica e a assombração que anuviam os produtos do trabalho na base da produção de mercadorias” (MARX, 2017, pp. 147-151). Aqui, para não cairmos no laço do passarinheiro teológico escondido atrás da nuvem religiosa que acompanha as análises do fascismo brasileiro, é fundamental não perder de vista a história.

2. A esse respeito, ler o maravilhoso artigo de Franz Hinkelammert, A dialética de Marx e o humanismo da práxis, disponível em: https://www.scielo.sa.cr/pdf/eys/v24n55/2215-3403-eys-24-55-120.pdf

3. Sobre essa temática, indico a apresentação de Fascismo como religião, publicado pela Editora Pajeú e prefaciado por André Castro, disponível aqui: https://drive.google.com/file/u/1/d/1JnbNz-OLPAlqTo2rIRQN4sG_fIxQ-0tk/view; Além deste trabalho, também pode ser útil olhar os artigos publicados pela Revista Zelota Fascismo como religião nas eleições de 2022 e No vale de lágrimas entre religião e política. Por fim, também indico algumas dessas dinâmicas em torno da divisão social do trabalho no livreto Neoliberalismo e conservadorismo brasileiro (2022), escrito conjuntamente com a Suze Piza e publicado pelo Instituto Conhecimento Liberta.

4. Trabalhamos o tema no último capítulo de Fetichização do poder como fundamento da corrupção, publicado em 2018 pela Editora Fi, disponível em: https://www.editorafi.org/293bruno

5. A esse respeito, ver Cristo en el Apocalipsis, de José Comblin, publicado pela Herder em 1969. Este é um livro baseado em sua tese de doutorado, cuja base era o livro de Apocalipse. Mesmo sendo uma produção realizada em um período anterior a sua militância na teologia da libertação, em produções posteriores, Comblin não apresenta uma grande alteração em relação a sua interpretação do livro, o que pode ser percebido em publicações como A profecia na Igreja, publicado pela Paulus em 2008, e O Espírito Santo no Mundo, publicado também pela Paulus em 2009. Além disso, é relativamente consensual que não há uma ruptura na teologia política de Comblin, como comentam tanto Eduardo Hoornaert, em O Apocalipse como fonte inspiradora da Cristologia de José Comblin e Os primeiros escritos de José Comblin, quanto Marcelo Barros, em O Padre Comblin e sua Teologia Política. Particularmente, Hoornaert trabalha com a hipótese de que o interesse de Comblin pelo Apocalipse estava arraigado na mística presente no livro, seu caráter propriamente espiritual e religioso, característica que se mantém na atuação e produção madura do teólogo da libertação. Por outro lado, crítico à leitura de Comblin, temos Juan Stam, que se dedica a trabalhar o livro das Revelações durante toda sua vida. Iniciando com trabalhos como “El Apocalipsis y el Imperialismo”, publicado na coletânea Capitalismo, violéncia y anti-vida pelo Departamento Ecumênico de Investigações em 1978, temos uma longa produção de artigos e livros de Stam sobre o Apocalipse, dos quais destacamos Apocalipsis y profecía, publicado pela Kairós em 1999, e os quatro grandes volumes de Apocalipsis, os quais recompilam e sistematizam sua produção sobre o Apocalipse e compõem a coletânea do Comentário Bíblico Iberoamericano, publicada pela Kairós também em 1999.

6. As tensões entre o Vaticano e a teologia da libertação engajada com movimentos sociais na América Latina são apresentadas na tese de Jorge Rocha-Quinteros, Movimientos sociales y teología de la liberación. A reação contra a teologia da libertação também é objeto do trabalho de Sonia Scheuer Acevedo em The Opposition to Latin American Liberation Theology and the Transformation of Christianity (1960-1990), no qual há também o destaque para o papel de agências de inteligência e militar dos Estados Unidos no enfrentamento a esse movimento na América Latina, especialmente os documentos A New Interamerican Policy for the Eighties (Santa Fé I), de 1980, e Santa Fé II. Una estratégia para A. Latina en los noventa, de 1988. Em O que é cristianismo de libertação?, publicado pela Expressão Popular em 2016, Michael Löwy comenta que o segundo documento segue a mesma linha do primeiro, tratando a Teologia da Libertação como uma “infiltração marxista” que deveria ser enfrentada pela política externa estadunidense, mas com uma novidade, indicando que a estratégia do movimento seria “gramsciana” e deveria ser encarada como “uma doutrina política disfarçada de crença religiosa, que é antipapal e contra a livre empresa e destinada a enfraquecer a independência da sociedade em face ao controle do Estado”. O caráter de “mero disfarce” deve ser considerado com cuidado, dado que isso significa negar a religiosidade e fé popular em defesa de uma pretensa verdadeira religiosidade não disfarçada. Um caso emblemático do combate violento contra a teologia da libertação sob as doutrinas de segurança nacional com apoio dos Estados Unidos foi o “Massacre dos Jesuítas”, em novembro de 1989, um dos últimos casos de perseguição explícita da política externa estadunidense. As investigações sobre o massacre seguem ativas até hoje, e um panorama do ocorrido pode ser visto em artigos como O massacre dos jesuítas em El Salvador completa 24 anos, A 30 anos do massacre da UCA, em El Salvador, organizações seguem exigindo o fim da Escola das Américas, Memoria y resisténcia: close the School of Americas, Murder of Jesuit Priests and Civilians in El Salvador: The Jesuits Massacre Case e La justicia de El Salvador reabrirá el caso por la matanza de cinco jesuitas españoles en 1989.