O posicionamento dos evangélicos na política não é fruto de crenças internamente coesas, mas reflete e influencia as contradições entre as classes sociais brasileiras


Marcha para Jesus 2015, em Curitiba (foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo)

O protagonismo da militância de pastores e lideranças evangélicas na realidade brasileira tem suas raízes nas transformações sociais que ocorreram no país no último século. Entre transformações internas e pressões externas, o evangelicalismo brasileiro se disseminou entre pouco mais de ⅓ da população impulsionado pela modernização capitalista, sob a conjuntura internacional de Guerra Fria e, a partir da década de 1990, em um novo quadro, com a redemocratização e a década neoliberal. O pico da grande onda expansionista é atingido próximo ao final da primeira década de 2000, mas a marcha evangelística segue em curso. Tratamos de alguns aspectos desse processo no artigo publicado pela Revista Zelota, Fascismo como religião nas eleições de 2022. 

Sem a consideração sobre processos históricos, qualquer análise corre o risco de tomar partes pelo todo ou mesmo se deter em um aspecto que obstaculiza ações sobre o objeto observado. Afinal, não interpretamos a realidade social para nos indignarmos com um de seus aspectos, mas para criar soluções para problemas vigentes e meios para a realização de projetos necessários. Se consideramos que existem problemas sérios na relação entre igreja e Estado, ou no papel da religião e de lideranças religiosas nas eleições, a mera constatação de que existem questões a serem tratadas seguida de uma sanção ou denúncia moral não trazem instrumentos efetivos para resoluções. Ao invés disso, impedem um passo subsequente, restringindo a atuação possível ao próprio apelo para que o chamamento ou denúncia moral sejam atendidos.

Isto posto, em nosso texto pretendemos indicar alguns elementos que auxiliam na avaliação do que ocorreu na recente mobilização em torno do processo eleitoral e que, ao mesmo tempo, implicam em certas ações que decorrem dessas observações. Nosso intuito é ter em vista a disputa e os conflitos vigentes no interior das igrejas evangélicas e da mobilização não apenas do eleitorado, como também dos cabos eleitorais (explícitos ou implícitos) em ambas as campanhas que chegaram ao 2º turno na corrida presidencial: a do Partido dos Trabalhadores (PT) e a do Partido Liberal (PL).

Ponto de partida

É compreensível que quem dispute politicamente o interior de um segmento queira privilegiar e justificar a importância de sua militância e do próprio grupo em que está inserido. Mesmo que não perceba, com relativa frequência precisa tomar esse grupo como um objeto para projetar sua atuação. Assim, a militância evangélica, seja a reacionária ou a progressista, interpreta seu movimento como fundamental para a realização do projeto que imagina ser o melhor, e é aí que mora o perigo: a possibilidade de inverter fenômeno e fundamento, de tomar parte pelo todo.

Mas a religião não é a base do eleitorado determinante para nenhum dos dois candidatos. Entre evangélicos, que compõem mais ou menos ⅓ da população, a candidatura de Bolsonaro tinha uma boa vantagem em relação à candidatura de Lula (68% x 32%), de acordo com a última publicação do Datafolha, a pesquisa que utilizamos como base. Entre católicos, que ainda equivalem a 60% da população brasileira, Lula tinha vantagem sobre Bolsonaro (55% x 39%). Esses números isolados explicam pouco, não indicam o porquê da religião evangélica ter ganhado tantos holofotes, e, portanto, precisam estar relacionados a outras informações para que entendamos o lugar da religião na realidade política brasileira.

Vejamos, por exemplo, que 48% do eleitorado tem renda familiar de até 1 salário mínimo – praticamente metade da população. Nesse grande grupo, Lula teve uma larga vantagem: 61% contra 33%. A partir da renda familiar acima de 2 salários mínimos, a vantagem se inverte e as diferenças sofrem variações. Na faixa de 2 a 5 salários, Bolsonaro tem 54%, contra 40% de Lula. Na faixa seguinte, de média entre 5 e 10 salários, segue à frente: 60% a 32%, enquanto entre os mais ricos (acima de 10 salários), 59% contra 36%. Progressivamente, essas faixas salariais se afunilam na pirâmide, sendo a renda acima de 10 salários menos de 5% da população brasileira.

A renda é um indicador importante, pois manifesta a capacidade de ter acesso a condições de vida em uma sociedade de mercado capitalista. Mas ela por si só não define o que é classe – como bem sintetiza Jessé Souza no segundo capítulo de A tolice da inteligência brasileira. Seguindo a esteira de Florestan Fernandes, Souza tem como pedra de toque a questão do monopólio sobre privilégios de educação e o que trabalha como capital simbólico (de tipo de Bourdieu). Já Franz Hinkelammert, em sua produção teórica, dá um nome preciso para entender “classe”: a função desempenhada na divisão social do trabalho dentro do processo de reprodução social – isto é, a função cumprida em determinada ordem social para que um produto total seja realizado, distribuído e consumido, garantindo condições para que sigamos “vivos” como sociedade no dia de amanhã.1

Um dado que auxilia na construção de classe para além da renda, portanto, é o grau de escolarização. Trabalhos com maior qualificação requerem maior escolaridade, e a divisão social do trabalho é organizada em torno das diferentes funções necessárias para a produção e reprodução social. Assim, se olharmos para a escolaridade do eleitorado de acordo com dados do TSE, veremos que 57% do eleitorado possui formação até o ensino fundamental (sendo 4% analfabeto, 7% apenas alfabetizado, 23% com ensino fundamental incompleto, 6% com ensino fundamental completo e 17% com ensino médio incompleto). A combinação dos grupos do eleitorado com ensino superior completo e incompleto somam apenas 16% juntos, enquanto eleitores com grau de escolaridade de ensino médio completo compõem os 26% restantes.

Na pesquisa Datafolha, no segmento de menor escolaridade Lula levou uma vantagem de votos impressionante: 60%, contra 34% de Bolsonaro. Por outro lado, nos segmentos de escolaridade média e superior, Bolsonaro teve uma leve vantagem (nos critérios da pesquisa, empate técnico): 49% contra 45% e 48% contra 43%, respectivamente. 

Quando vemos esse quadro geral, combinando os fatores dos setores mais amplos que dão vantagens de eleitorado, fica um pouco mais claro o corte da divisão de classes sociais: a elite que cumpre a função de coordenação dessa divisão social do trabalho (dado a propriedade dos meios de produção que garante o poder de decisão sobre todo o processo produtivo), os grupos que gerem as instituições privadas e públicas (com qualificação específica e poder de decisão), profissionais liberais que auxiliam na manutenção de todo o aparato produtivo (desde desenvolvimento de tecnologia, melhoramento de processos, reparos qualificados de meios de produção, logística e mesmo cuidado com a saúde e formação da mão de obra), e, por fim, mão de obra qualificada e não qualificada disponível para trabalho (seja para serviços, no campo ou na cidade, com grau de baixa complexidade de trabalho).

O perfil social do eleitorado, claro, reflete o perfil da sociedade brasileira. E para a análise de qualquer fenômeno social, temos que ter como ponto de partida qual a característica geral da sociedade brasileira e como ela se especifica no interior de segmentos, como a disposição geral da sociedade está em relação à disposição particular de um grupo ou de uma instituição. Assim, o movimento é: olhar para a divisão social do trabalho e a organização das classes sociais e seguir para a disposição dessas classes em uma instituição ou segmento. Em seguida, partindo da avaliação interna das instituições ou segmentos analisados, retornar à divisão social do trabalho no processo de reprodução social para entender o papel desempenhado por essas instituições ou grupos na totalidade dessa realidade social. Ponto de partida e ponto de chegada.

Seguindo esse processo, não confundimos parte com o todo, e ainda delimitamos a abrangência do objeto observado e como ele se encaixa nos conflitos e contradições das relações sociais vigentes. De acordo com o último censo, por exemplo, da população evangélica brasileira, 60% tinha como característica a renda familiar de até 1 salário mínimo. No geral, esse foi o grupo de maior apoio a Lula no processo eleitoral. Contudo, se olharmos para o corte de “evangélicos”, Bolsonaro tem vantagem ampla no segmento (que compõe ⅓ da população). Perceber a contradição entre renda e religião no momento do voto é muito mais útil do que discutir o “voto evangélico” – o que, como já destacou Magali Cunha diversas vezes, não funciona como categoria de análise.

O voto nunca foi evangélico

Magali Cunha coloca em questão essa obsessão de olhar para o segmento evangélico como bloco, como se tivesse representantes que falam em nome do movimento. Além da diversidade gigantesca de denominações e tradições, o maior problema para a compreensão desse segmento é não analisá-lo no interior da sociedade brasileira, no modo como desempenha seu papel na manutenção da reprodução social e como é organizado a partir da própria divisão social do trabalho na qual também está inserido – obviamente.

A campanha evangélica progressista em torno de Lula apontou para a diversidade evangélica e buscou apresentar alternativas já existentes ao reacionarismo bolsonarista hegemônico, expresso no apoio da maioria das igrejas à candidatura de Bolsonaro. Contudo, ao apontar a evidente diversidade do evangelicalismo, não indicou como esse grupo é constituído, na composição social e nas contradições existentes dentro da organização do movimento evangélico. A disputa pela posição dentro da diversidade evangélica se reduziu à sua compatibilidade ou não com determinados valores (a bem da verdade, com pautas de campanha, no caso). 

Desse modo, a mobilização progressista apenas manifestou a existência de evangélicos que não estão entre os 68% que apoiam Bolsonaro, mas não buscou entender como era possível um segmento religioso com uma maioria de pessoas empobrecidas que, no geral, estariam junto à candidatura de Lula, não acompanhar essa tendência geral. Sem isso, as ações de militância se fecharam em um apelo que se resolvia em si mesmo. Quais são as relações próprias desse grupo da população, então, que o desvincula da tendência geral?

A crítica do vale de lágrimas

Assim como na divisão social do trabalho, no interior de qualquer instituição particular também há uma divisão interna, com cargos e posições determinadas para tornar essa instituição efetiva em seu propósito e perdurável, mantendo-se funcionando. Há, portanto, uma separação entre grupos que coordenam essa instituição e grupos que são coordenados, com estratificações particulares e próprias na reprodução institucional e comunitária que compõem essa instituição. Nesse sentido, no livro Neoliberalismo e conservadorismo brasileiro, explicamos que: 

“há uma distinção entre os grupos que coordenam essa divisão […] e os grupos coordenados. Para que essa coordenação se mantenha, ela precisa justificar e fazer valer seu direito e função de comando. Nesse espaço, entra fundamentalmente o papel ideológico como uma forma de consciência social que busca interpretar e explicar, tornando aceitável e razoável, esse papel decisivo ou de execução de poder.”2

Isso vale tanto na reprodução social como um todo, como na organização institucional particular. No âmbito evangélico, trata-se de analisar no interior das igrejas como é organizada a divisão entre coordenadores e coordenados, entre quem executa e quem se submete ao poder vigente, e como ela se justifica para a manutenção da comunidade religiosa em questão. Cada denominação tem formas próprias de hierarquia e mesmo de tipo de organização institucional. Desse modo, vemos diferenças entre tradições como a presbiteriana e a adventista, que são mais burocratizadas e com organização em pequenos grupos decisores que diminuem o poder individual do pastor, e tradições pentecostais e neopentecostais, que no geral são menos burocráticas e concedem maior poder individual para o pastorado, que disputa sua posição em relações carismáticas.

Contudo, todas garantem a legitimidade de sua organização interna em referência à autoridade espiritual divina, que abençoa e protege tanto o grupo decisor, que se vale de uma hierarquia burocratizada consistente, quanto os pastores individualmente, que atuam com maior liberdade e possibilidade de concentrar poder. Essa autoridade não está solta no ar, ela precisa de algum conteúdo objetivo que seja minimamente compartilhado, e entra nesse momento a disputa em torno da Bíblia, o livro sagrado que orienta as ações da comunidade cristã, e o uso de suas interpretações. Em maior ou menor grau, a disputa em torno do livro requer que os participantes dos processos de interpretação tenham uma base de formação qualificada que viabilize o manejo da interpretação do texto (seja na persuasão carismática, seja na referência à tradição).

Os cargos de coordenação das instituições religiosas precisam ser ocupados por um grupo majoritariamente qualificado. Trata-se propriamente dos grupos que ocupam as classes médias da divisão social do trabalho. Os aparatos decisores das igrejas evangélicas estão ocupados por indivíduos e grupos das classes médias, e estes determinam em sua posição interna os rumos institucionais. Sua atuação, contudo, não está descolada do papel que desempenha na reprodução social como um todo, e sim reproduz nas relações próprias das igrejas os interesses constituídos na totalidade da divisão social do trabalho. São grupos privilegiados: internamente pelos cargos ocupados, externamente às igrejas pela participação mais qualificada na divisão social do trabalho.

De todo modo, internamente, a autoridade dos grupos que decidem e coordenam as instituições evangélicas é garantida pelo que Wim Dierckxsens indica como “dominação direta”, própria de relações religiosas que são fundamentalmente transparentes (sabemos quem comanda e quem é comandado, sem mediações que compliquem a análise).3 Externamente, a posição de privilégio de classe média é garantida por um sistema sobre o qual os grupos decisores das igrejas não têm controle, pois têm suas funções determinadas a partir da coordenação da divisão social do trabalho, cuja responsabilidade funcional está a cargo da elite dona de meios de produção.

Assim, para garantir a combinação de privilégios e as condições que mantêm a posição na divisão social do trabalho, o grupo dirigente das igrejas precisa estar em defesa da ordem social vigente. Ela é beneficiadora para sua posição de classe e, por meio dela, também pela garantia de recursos necessários para a ocupação do posto de autoridade religiosa. A igreja, portanto, é constituída e orientada para adequação à reprodução social e no esforço de manutenção da divisão social do trabalho atual.

Nesse sentido, ao termos uma crise interna de disputas religiosas – em torno de valores e da própria posição de comando das igrejas –, se acentua a crítica da religião. Os movimentos evangélicos progressistas entram nesse processo e questionam a ordem religiosa existente, não necessariamente em seu funcionamento, mas em seus valores, nos limites do que indicamos anteriormente a respeito da compatibilidade de pautas. Todavia, como já percebia Marx em 1844, “a crítica da religião é, pois, em germe, a crítica do vale de lágrimas, cuja auréola é a religião”.4

O que está em disputa não é o valor solto no ar, sem corpo e sem história, que pode pender para o grupo majoritário de apoio a uma candidatura como a de Bolsonaro, ou minoritário, como o progressismo em torno de Lula. O que está em questão são as relações do vale de lágrimas da reprodução social brasileira que tornam possível um fenômeno particular que, em seus conflitos e organização internos, desvia o padrão da organização ativa das classes sociais, mediando as ações dos sujeitos com estruturas de dominação específicas. 

Desse modo, o que temos é que a organização de poder interna às igrejas e a composição de seu grupo dirigente (blindado por uma autoridade espiritual armada em uma relação de dominação direta), mobilizam as ações dessas instituições e de seus membros para a defesa da ordem que garante a manutenção de privilégios de uma classe média que, pelo caráter da coordenação da divisão social do trabalho, precisa defender os interesses da elite. A classe trabalhadora, as classes baixas que comporiam 60% do grupo evangélico de acordo com o último censo, dentro dessas relações sociais religiosas contradiz o interesse de sua própria classe, visível na observação da reprodução social brasileira em geral. A contradição entre o vale de lágrimas e sua auréola religiosa tem raiz na articulação entre a organização interna das igrejas e a manutenção da reprodução social brasileira, mediado pelo interesse das classes médias.

O Senhor é meu pastor, mas o pastor não é meu senhor

Claro que alguém poderia imediatamente “trucar” nossa argumentação indicando que existem igrejas pequenas nas periferias cujos pastores são da classe trabalhadora, e por isso tão marginalizados quanto seus membros. Contudo, o que essa observação apressada não faz é analisar a quem estruturalmente esses pequenos pastores em suas pequenas igrejas (com pouquíssima membresia) devem responder nas convenções, na hierarquia entre sede e igrejas setoriais, quem produz e garante materiais de estudo, músicas e mesmo pregações “inspiradoras” a serem replicadas em seus valores. A formação do conteúdo desses pastores é conduzida pela classe média (dominante na igreja) e conflita com as questões políticas, sociais e econômicas locais, tensionando ainda mais as contradições.

Esse emaranhado social e institucional requer uma posição estratégica de quem critica a ordem vigente das igrejas. Se o intuito é quebrar as relações de dominação direta, a disputa por valores e a redução ao apelo moral são paralisantes e ineficazes. Os valores vigentes nas igrejas têm seu conteúdo nas relações de manutenção da ordem social e refletem os interesses dos grupos privilegiados. A condução de seu poder está na legitimidade da autoridade espiritual validada pela ordem da própria instituição, mas com a referência compartilhada da escritura sagrada. E aí temos a pequena nuvem vista pelo profeta, que trará as chuvas necessárias depois de tanto tempo de seca.

Nos anos de expansão e consolidação da Teologia da Libertação na América Latina, o grande trunfo dos sacerdotes foi assumir uma posição de defesa das comunidades em relação à hierarquia enrijecida da igreja. A leitura popular da Bíblia tinha como objetivo “devolver a Bíblia ao povo”. Os encontros das Comunidades Eclesiais de Base se tornaram  ambientes de formação crítica ao abrirem a interpretação do texto para o povo, garantindo recursos de leitura e tirando o monopólio da palavra do padre, que passava a ocupar a função de porta-voz do grupo local para a hierarquia (e não da hierarquia para o próprio grupo). Dado o caráter de organização política da igreja católica, era visível contra qual poder de dominação direta era preciso se precaver.

Nas comunidades evangélicas, entretanto, a hierarquia é difusa e os grupos dirigentes disputam entre si maior ou menor influência e poder. Falam, portanto, para sua membresia, contra adversários e buscando estratégias de ampliação de fiéis dispostos a frequentar as comunidades. O monopólio da palavra não tem uma interlocução externa, mas reforça a dominação interna. Desse modo, a devolução da Bíblia ao povo fica truncada, pois na eventualidade do pastor ou liderança desejar realizar um trabalho contra-hegemônico, se aparece como protagonista no processo reproduz, mesmo que não intencionalmente, as relações de dominação. Ele é mediador (mais uma vez).

Nesse sentido, para um movimento progressista que tem o intuito de desarmar a rede que envolve as contradições, a autoridade instituída precisa ser minada pela leitura popular da Bíblia e pelo questionamento da representação da voz de Deus pelo pastor. Esse mecanismo é validado pela ordem institucional, e não apenas por valores. Assim, é revelador o lema “o Senhor é meu pastor, mas o pastor não é meu senhor”. Tal crítica, para ter legitimidade, precisa estar aliada ao fortalecimento e empoderamento dos fiéis, da membresia, que questiona a autoridade pastoral absoluta e, ao mesmo tempo, recupera o conteúdo de fé que dá sustentação à manutenção dessa ordem: a Bíblia. Essa crítica desemboca na abertura à crítica da política em sentido amplo, não mais reduzida à relação transparente de dominação direta religiosa, mas agora articulada também à dominação opaca da divisão social do trabalho.5

No dia 31 de outubro foi comemorada a Reforma Protestante, simbolicamente sintetizada na ação de Lutero em pregar as 95 teses na porta de uma igreja, questionando a autoridade papal e a estrutura da igreja. Duas de suas posições centrais foram a exigência de se ter referência no texto bíblico e a doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes. No limite de nossa discussão, colocamos exatamente a necessidade de realizar esses propósitos, adequados à nova realidade social brasileira e suas contradições.

Notas:

1. Um dos livros em que Franz Hinkelammert desenvolve essa argumentação é Ideologías del desarrollo y dialéctica de la história (1970), cuja introdução foi traduzida pela Revista Zelota em Sobre Ideologia.

2. LIMA, Bruno Reikdal; PIZA, Suze de Oliveira. Neoliberalismo e conservadorismo brasileiro: para pensar o Brasil. Vol. 1. Coleção Saber e Sociedade. Instituto Conhecimento Liberta: São Caetano do Sul – SP, 2022, p. 31.

3. Essa análise da dominação direta própria de relações religiosas é desenvolvida por Wim Dierckxsens em um livro inédito, em vias de publicação em espanhol, cujo conteúdo foi apresentado à Revista Zelota e estará melhor desenvolvido em uma entrevista que será publicada em breve.

4. MARX, Karl. Crítica à filosofia do Direito de Hegel. Editora Boitempo: São Paulo – SP, 2010, p. 146.

5. A esse respeito, ler a primeira parte de As armas ideológicas da morte (1977), de Franz Hinkelammert.