A Teologia da Libertação busca uma teologia concreta que não legitima condições de dominação e pobreza, mas luta para transformá-las em defesa da vida de quem sofre com seus efeitos


Por Juan José Bautista Segales | Texto traduzido1 e adaptado por Bruno Reikdal para a revista Zelota.

Nascido em 27 de dezembro de 1958, Juan José Bautista Segales é o principal expoente da segunda geração da Filosofia da Libertação. Filósofo e sociólogo boliviano, foi discípulo e estudioso crítico de três grandes representantes do pensamento crítico latino-americano: Hugo Zemelmann, Enrique Dussel e Franz Hinkelammert. Com uma obra vasta, desenvolveu e aprofundou uma densa crítica epistemológica, destacando-se pelo manejo inovador do pensamento de Hegel e Marx desenvolvido a partir de seu envolvimento e militância nas lutas populares na Bolívia – protagonizada pela mobilização e luta indígena. Vencedor do Prémio Libertador al Pensamiento Crítico em 2015, Juan José Bautista faleceu precocemente em maio de 2021. Em seus últimos trabalhos, discutia o pensamento de Ernst Bloch e Walter Benjamin articulando a crítica marxista da religião com a crítica da racionalidade moderna capitalista.

Em nossa hipótese, e contra o que muitos críticos opinam, a teologia da libertação não apenas não desapareceu, como se desenvolveu de tal modo que agora poderíamos falar dela em termos de uma explícita “crítica do caráter idolátrico da modernidade”, que a meu entender é onde desemboca a obra madura de Franz Hinkelammert – de acordo com nosso julgamento, não apenas um dos melhores representantes da atual teologia da libertação, como também um dos que melhor desenvolveram suas hipóteses centrais. Precisamente é ele quem desenvolveu melhor a tese que afirma que “qualquer teologia da libertação tem que se desenvolver na discussão teórica da relação entre economia e teologia”,2 o que a nosso juízo foi muito frutífero não apenas para a teologia da libertação, mas para qualquer pensamento de libertação que tenha uma honesta e séria pretensão de justiça. Por isso, no que segue, pretendo mostrar como Hinkelammert desenvolve as hipóteses centrais dessa teologia eminentemente latino-americana, pensada a partir da opção pelo pobre, pela vítima, pelo excluído, pelo ilegal, pelo condenado e pelo esquecido.

Uma das teses centrais dessa teologia é que é teologia concreta e não abstrata, quer dizer, não parte de uma dogmática independente do tempo e da história; por isso parte precisamente da história, do concreto, da práxis e do presente, e por isso mesmo se define não a partir de uma ortodoxia, mas a partir de uma ortopraxis que tem a ver não apenas com a história concreta, senão com a vida dos crentes, mas não dos crentes abstratos e em geral, e sim concretos, especialmente os que sofrem  as consequências que diariamente produzem o capitalismo e a modernidade. Por isso, posiciona-se a partir da perspectiva dos crentes que não têm pão, que sentem frio, que sofrem injustiças porque não tem recursos ou trabalho, ou porque são declarados ilegais, mas que, todavia, creem no Deus da Bíblia e querem entender por que o Reino de Deus não chegou a eles.

Como teologia concreta, sabe que está exposta a se equivocar, por isso está sempre disposta a dialogar para se corrigir, a perguntar, a interrogar não apenas ao irmão, como também ao evangelho, à Bíblia, à Palavra, mas não para negá-la ou questioná-la, mas para perguntar pelo significado ou pelo sentido dos mandamentos, ou, se não, pelo sentido das grandes verdades; por isso não pergunta se existe Deus ou não, mas onde está presente, como se revela hoje e como atua. O ponto de partida da teologia da libertação é, portanto, a pergunta pelo lugar concreto e histórico no qual Deus se revela. Por isso nasce no contexto da convulsionada história da América Latina em meados e fim do século XX.

Como resposta a essas perguntas, nasce a teologia da libertação quando descobre que o sistema imperante produz uma teologia da dominação para justificar teologicamente a dominação, mas também quando pratica ou faz na práxis o que esses teólogos chamaram a partir do princípio da “opção pelo pobre”, que é também opção pelo Deus dos pobres, como também dos seres humanos que querem se libertar da pobreza e das relações sociais que produzem a pobreza, a injustiça, a desigualdade etc. Logo esses teólogos se dão conta de que a opção pelo pobre implica o reconhecimento explícito da dignidade do pobre como ser humano e que a pobreza é justamente a negação real e vivente desse reconhecimento. Por isso a teologia da libertação afirma que sem esse reconhecimento explícito e concreto da humanidade e dignidade do pobre, não há opção pelo pobre, e por isso mesmo afirma que a libertação da qual fala não pode ser individual nem grupal, mas popular, de todos, ou seja, humana; por isso descobre que no pobre aparece no presente o que a todos pode acontecer no futuro se não fizermos nada hoje. 

Quer dizer, a libertação da qual fala essa teologia é libertação das condições miseráveis nas quais vive o pobre e que como crentes nos afeta, ainda que não sejamos pobres. Por isso essa teologia afirma que a existência do pobre é a prova evidente de uma sociedade sem Deus, independentemente dessa sociedade acreditar ou não em Deus. Daí que o pobre testemunho com sua vida a ausência de Deus, porque o pobre, com sua presença, torna evidente para nós a ausência de Deus ou, dito de outro modo, a presença de Deus não está em algum ser ou ente, mas em uma relação intersubjetiva entre seres humanos que se reconhecem mutuamente como irmãos, quer dizer, a presença de Deus está em que não haja pobres, e nesse sentido é que a presença de Deus se realiza, se faz, produz-se pela práxis. Portanto, o contrário da pobreza não é a abundância de riqueza ou de coisas, mas a plenitude da vida, que se constitui a partir do reconhecimento mútuo entre sujeitos corporais e necessitados, o qual começa por compartilhar o pão, porque não se trata do reconhecimento entre anjos, mas entre seres humanos necessitados.

Por isso, a teologia da libertação como ortopraxis não diz a priori o que se deve fazer, mas busca e investiga o modo como podem, em concreto, ser produzidas na realidade relações sociais de mútuo reconhecimento entre seres humanos; por isso busca e pergunta pelo “caminho” ou pela maneira ou forma de realiza-lo, mas sabe que encontrar o caminho depende da análise da realidade e não apenas de conhecimento do evangelho, por isso não pode ser sabida a vontade de Deus em concreto se não se faz uma análise da realidade que jamais pode prescindir das ciências sociais e, nesse sentido preciso, da economia, porque o problema da pobreza começa com a economia, quando esta é injusta, ou sejam quando não há pão para comer nem compartilhar.

Por isso, quando ao fim dos anos sessenta aparece o conflito da teologia oficial com a teologia da libertação, a discussão não gira em torno dos conteúdos teológicos, mas do significado concreto desses conteúdos e, para esclarecer com entendimento o conteúdo e significado desses conteúdos, o uso das ciências sociais na teologia da libertação chegou a ter um papel central3 para seu desenvolvimento e, a partir dessa relação, começou também a ser desenvolvida uma filosofia que pensava a partir da especificidade do pobre. Antes da filosofia da libertação, o tema do pauper, ou da pobreza, nunca havia sido pensado pela filosofia, por que para a filosofia moderno-europeia-ocidental não era um tema digno de ser pensado. Por que será?

Agora, bem, o que aconteceu com esse diálogo entre a teologia da libertação e as ciências sociais que ocorreu a partir do fim dos anos sessenta até o fim dos oitenta? Sucedeu que foi aprofundada a experiência das comunidades de base, que compreenderam rapidamente que os problemas da pobreza não poderiam ser solucionados dentro das estruturas das relações capitalistas dadas, que se deveria transformar a sociedade em sua integridade; por isso apareceu em 1972 no Chile uma organização ecumênica de alcance latino-americano denominada Cristãos pelo Socialismo. Com ela surgiu pela primeira vez a crítica cristã latino-americana explícita do capitalismo e, por sua vez, uma busca pelas alternativas, o que a levou a um conflito tanto com a teologia oficial, quanto com a hierarquia da Igreja católica, as quais a combateram quase até fazê-la desaparecer.

Contudo, 30 anos depois de ter padecido da experiência capitalista e sua forma in extremis como modelo neoliberal (as décadas dos setenta, oitenta e noventa), podemos seguir comprovando que esta interpretação e o diagnóstico que a teologia da libertação (e a teoria da dependência) fez desse período, foram confirmados completamente; quer dizer, ao levar o capitalismo moderno ao extremo, sua lógica de exploração do trabalho humano e da natureza, foram aprofundados o empobrecimento e a marginalização de grandes setores da população mundial e se transformou esta marginalização em uma exclusão sem destino nem solução, por isso até agora a teologia oficial e a hierarquia da Igreja católica não tem argumentos racionais para combatê-la, por isso mesmo se dedicaram e se limitaram a denunciá-la.

Como a teologia da libertação recorreu muitas vezes à teoria marxista, a denunciaram como se fosse um produto do marxismo e, para condená-la como marxista, desqualificaram Marx de tal maneira que este chegou a aparecer como personificação do mal, de tal modo que parecia que quem se aproximasse de Marx automaticamente se perdia nos caminhos do pecado e do mal. Assim, o cardeal Ratzinger (quando não era papa) dizia que Marx era como Lúcifer, quer dizer, que como a teologia da libertação havia se aproximado de Marx, essa teologia estava perdida e por isso mesmo deveria ser rechaçada e condenada.4

A condenação formal dos Cristãos pelo Socialismo começou em segredo e foi decidida pela conferência episcopal chilena em abril de 1973. Dois dias depois do golpe militar de 11 de setembro de 1973, foi aprovada e publicada definitivamente em abril de 1974. “Nesse período, mais de 60 sacerdotes haviam sido expulsos do Chile, alguns torturados. Paralelamente, muitos membros laicos do Cristãos pelo Socialismo haviam sido mortos, torturados ou detidos”.5 O cardeal de Santiago do Chile, Raúl Silva Enríquez, em ida à Itália em outubro de 1973, havia dito que “os Cristãos pelo Socialismo haviam tomado um caminho que lhes fez renunciar de fato seu cristianismo”.6

Por isso, para os teólogos da libertação o golpe militar chileno de setembro de 1973 significou um corte profundo, porque pela primeira vez se tentava mudar a sociedade inteira impondo um modelo econômico a partir do poder exclusivamente pela força,7 transformando a partir das próprias raízes o capitalismo com rosto humano que havia existido antes dom o Estado de bem-estar, e o substituindo por um regime nitidamente neoliberal, imposto por meio do terrorismo de Estado. Este, por meio da Junta Militar, dirigiu-se contra todas as organizações populares para destruí-las completamente:

“Houve uma política de terror que se estendeu por mais de uma década e que conseguiu eliminar qualquer poder popular. Mas também essa política se dirigiu para transformar o Estado como anti-reformista e anti-intervencionista a serviço de um mercado totalizado. E assim começou o processo de privatização de todas as funções sociais do Estado a serviço de um mercado totalizado (o primeiro caso na América Latina de uma aplicação principialista de esquemas abstratos trazidos da Escola de Chicago).”8

Essa política prontamente foi assumida pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) sob o nome de ajuste estrutural. Posteriormente, Milton Friedman o chamou de “capitalismo total”. Nesse momento, a teologia da libertação se transformou em uma teologia de resistência.

Nesse período, como as organizações populares haviam quase desaparecido, as comunidades de base começaram a desempenhar um papel mais importante, por isso no lugar das organizações populares apareceram grupos de defesa dos direitos humanos. Nesse processo, no centro da teologia da libertação aparece pela primeira vez o tema da idolatria, quer dizer, do ídolo que exige sacrifícios humanos, frente ao Deus da vida. E, portanto, é quando a teologia da libertação dialoga com a tradição judaica e profética; por isso se tornam centrais o livro de Enrique Dussel El humanismo semita9 (onde mostra porque não se pode entender cabalmente a Palavra ou o Evangelho a partir de uma matriz helênica, latina ou moderna, mas a partir da semita), o de Franz Hinkelammert La fe de Abraham y el Edipo occidental10 (onde mostra que o cristianismo oficial, sendo edípico, converte-se em sacrificial, mas também que a fé de Abraão, que é o pai da fé, ensina que, para ser crente ou humano, não é necessário sacrificar ou matar o próximo) e também a obra do filósofo judeu-lituano-francês Emmanuel Lévinas, especialmente seu Totalidade e Infinito, onde aparece muito bem tematizado o tema do Outro.

Pois bem, quando se pensou a realidade latino-americana a partir dessa perspectiva, descobriu-se toda uma história da sacrificialidade inerente ao mundo moderno que começou com a conquista da América há mais de 500 anos e que continuou sistematicamente com o capitalismo nessa modernidade ocidental. Então, tematicamente, o problema que a teologia da libertação começou a pensar já não foi apenas o capitalismo, mas a modernidade em seu conjunto.11 Esse giro permitiu recuperar as primeiras discussões que se deram quando apareceu o problema da dominação colonial, e assim a teologia da libertação recuperou gente como Bartolomeu de Las Casas, cuja obra constitui o primeiro contradiscurso crítico da modernidade12 a partir da perspectiva do indígena colonizado, mas também a partir do evangelho. Por isso Dussel sustenta que a modernidad não nasce com Descartes, como diz o discurso filosófico e teológico oficial, mas com Ginés de Sepúlveda,13 quem sistematiza e justifica filosófica e teologicamente a “Vontade Conquistadora” de Hernán Cortés como o Ego Conquiro [eu conquisto], que em nossa perspectiva é o fundamento material, como conteúdo, do Ego Cogito [eu penso] cartesiano formal. Nessa passagem da crítica do capitalismo para a crítica da modernidade, o rosto do pobre apareceu então não apenas em termos de trabalhador, mas agora no rosto dos indígenas, e a partir dessa perspectiva apareceram logo não apenas vítimas da exploração capitalista, como também as vítimas do tempo histórico da modernidade como rostos nos quais aparece a ausência da presença de Deus.

Por sua vez, esse giro para os povos indígenas está permitindo começar com o processo de recuperação de sua memória histórica e cultural encoberta durante 500 anos pela “suposta superioridade racional da modernidade”, a qual afirma de modo absolutista e dogmático que somente o estado da humanidade chamado modernidade é racional, superior, verdadeiramente novo e humano.14 Isso queria dizer que toda cultura ou civilização anterior à modernidade era em su mesma caduca, inferior, definitivamente superada e menos racional.15 E agora, quando a teologia e a filosofia da libertação estão começando a pensar a partir da perspectiva da memória histórica dos povos não modernos nem ocidentais, estamos começando a descobrir que a suposta racionalidade da modernidade, no fundo, é irracional, inumana e dominadora. Agora, trata-se de pensar a partir dessa realidade histórica e cultural negada sistematicamente pela modernidade durante esses 500 anos.

Notas:

1. Tradução extraída de ¿Qué significa pensar desde América Latina? Hacia una racionalidad transmoderna y postoccidental, Akal, Madrid, 2014, pp. 177-184, vencedor do Prémio Libertador al Pensamiento Crítico (2015).

2. Em nosso juízo, essa relação é desenvolvida por Franz Hinkelammert explicitamente a partir de seu As armas ideológicas da morte (1977), e logo recorrente em toda sua obra posterior, como El sujeto y la lei (2003), até Hacia uma crítica de la razón mítica (2007).

3. “Nesse sentido, a teologia da libertação é ortopraxis. Deus nos diz o que deve ser feito. Sua vontade é libertar o pobre, mas o caminho da libertação deve ser buscado. Depende da análise da realidade o que acaba por ser a vontade de Deus. Portanto, não se pode saber a vontade de Deus senão por uma análise da realidade, que jamais pode prescindir das ciências sociais. E os resultados das ciências incidem diretamente no que para a ortopraxis da teologia da libertação é a vontade de Deus”. Franz Hinkelammert, El nihilismo al desnudo. Los tempos de la globalización, Santiago de Chile, LOM, 2001, pp. 188-189.

4. Michael Löwy, em uma recente conferência pronunciada na Universidade Autônoma da Cidade do México, dizia que o cardeal Ratzinger falou várias vezes que a teologia da libertação era perigosa, porque era a que mais se aproximava da verdade.

5. Hinkelammert, El nihilismo al desnudo, cit., p. 195.

6. El Mercurio, Santiago de Chile, 25 de outubro  de 1973.

7. Quer dizer, sem levar em conta para nada a especificidade histórica, cultural, econômica ou social da sociedade em questão, porque antes de 1973 a aplicação ou não de um modelo econômico era deduzida da análise histórica e econômica das contradições específicas da sociedade em questão. Essas análises incluíam o estudo do desenvolvimento técnico e tecnológico do país, da estrutura econômica enquanto tal e do grau de desenvolvimento cultural, para ver se era ou não possível implementar um modelo econômico ou certo tipo de medidas econômicas. A aplicação do modelo neoliberal no Chile de Pinochet supôs pela primeira vez a aplicação sem mais de um modelo econômico que funcionava bem na teoria, mas que não se sabia em absoluto se esta tinha ou não relação com a história do país, porque esse modelo econômico neoliberal, como modelo da teoria e da economia, já não tinha relação com a história real da economia, mas apenas com modelos matemáticos formais que, para funcionar, faziam uma explícita abstração da realidade econômico-social. Dito de outro modo, o modelo teórico da economia neoliberal necessita fazer abstração da realidade social-histórico-natural para poder funcionar teoricamente, quer dizer, é um modelo ideal que funciona idealmente, se fazemos abstração da realidade humana e natural; todavia, com ao economia na realidade não é ideal, mas real, quer dizer, material, ou seja, contraditória, o modelo neoliberal resultava a princípio inaplicável, quer dizer, sua aplicação era por princípio impossível; por isso, qualquer análise séria que não caía na falácia abstrativa desse modelo tinha que prever e deduzir todo tipo de crise nas sociedades onde se tentava aplica-lo. E quando se tentou aplicar não apenas à América Latina, mas ao terceiro mundo e logo ao planeta inteiro, então começaram as grandes crises econômicas e ecológicas que agora estão afetando não apenas ao terceiro mundo, mas também aos Estados Unidos e ao primeiro mundo. Quer dizer, a racionalidade implícita no modelo neoliberal era, desde o princípio, irracional.

8. Em nossa hipótese, que deduzimos a partir da obra de Hinkelammert, a Escola de Chicago vez na teoria o que a religiosidade norte-americana faz na vida cotidiana: fazer abstração da realidade, quer dizer, que o desenvolvimento da religiosidade protestante norte-americana supôs desde o início uma leitura do evangelho espiritualizante, quer dizer, sem história e sem análise concreta da realidade. Porque para os imigrantes norte-americanos, ter chegado a um mundo aparentemente sem história (apagada pela aniquilação que se fez dos indígenas norte-americanos), visto apenas como natureza, fez com que esses imigrantes pilgrim supusessem que a história já não tinha a ver com a realidade humana, que se poderia prescindir da história. Por isso Estados Unidos e Canadá nascem quase se história e seus crentes o que fazem é subjetivar no sentido de internalizar essa consciência quase sem história, a qual é conteúdo da consciência moderna. E quando formalizam essa in-consciência na teoria, então podem formular teorias que fazem explicitamente uma abstração da realidade, porque partem do princípio de que as ideias são o que dão forma à realidade, que esta or su mesma carece de sentido. Esse preconceito “pode” funcionar quando estamos diante de uma “pura” natureza-objeto e sem humanidade, mas não quando estamos diante de povos com história milenar, a respeito dos quais a história é muito mais complexa doque qualquer ideia.

9. Enrique Dussel, El humanismo semita, Buenos Aires, Eudeba, 1975. Também El dualismo en la antropologia de la cristandade, Buenos Aires, Guadalupe, 1974, onde Dussel mostra como a cristandade latina pouco a pouco se heleniza, perdendo posteriormente todo horizonte semita e hebreu, processo no qual se espiritualiza de tal modo que perde o conteúdo material e corporal. Esse processo devém da negação acrítica não apenas do mundo humano como também da corporalidade humana. Negando ambas as dimensões da materialidade humana, a vida do crente se transforma em uma literal fuga e evasão do mundo e da vida, deixando assim intactos o mundo e o sistema de dominação ou ordem humana, e negando por sua vez a possibilidade de transformá-los a partir da perspectiva do Reino de Deus.

10. Franz Hinkelammert, La fe de Abraham y el Edipo  occidental, San  José, DEI, 1988, assim como Sacrifícios humanos y sociedad occidental, San Josém DEI 1991.

11. Veja-se especialmente Enrique Dussel, El encubrimiento del Outro. Hacia el origen del mito de la modernidad, La Paz, Plural, 1994.

12. “Bartolomeu de Las Casas é um crítico da modernidade, cuja sombra cobre os cinco últimos séculos. É o ‘máximo de consciência crítica mundial possível’, não apenas a partir da Europa – como eu mesmo pensava até antes de escrever essas páginas –, mas a partir das próprias Índias, a partir dos ameríndios. Desenvolve tão coerentemente uma teoria de pretensão de verdade, que todo participante sério e honesto (europeu ou ameríndio, e ainda africano ou árabe, como veremos) – contra o relativismo ou o ceticismo ao modo de Richard Rorty – em diálogo intercultural, que pode articular de amaneira única uma posição não só de tolerância (o que é puramente negativo), mas de plena responsabilidade pelo Outro (que é uma atitude positiva), a partir de uma pretensão universal de validade que obriga ética e politicamente a levar ‘a sério’ os direitos do Outro, de maneira exemplar até o século XXI”, Enrique Dussel, Política de la liberación, Madrid, Trotta, 2007, p. 199.

13. “Guinés de Sepúlveda é um dos primeiros que tenta justificar filosoficamente a expansão europeia, e o faz com uma argumentação que modificando sua estratégia impor-se-á com o tempo. A tarefa parecia impossível, já que se tratava de utilizar a razão para mostrar a racionalidade de uma empresa sob qualquer perspectiva irracional (a partir do século XV até o século XXI): como mostrar a justiça de uma guerra ofensiva e destrutiva de povos e culturas que possuíam suas próprias terras e as ocupavam desde sempre e que nunca haviam atacado aos europeus, de maneira que era impossível defini-los com inimigos, quer dizer, que eram inocentes que moravam pacificamente em seus próprios territórios? […] A justificação filosófica da conquista das culturas que viviam no atual território latino-americano, filosoficamente, é o começo explícito da filosofia moderna, em seu nível de filosofia política global, planetária […]. A Europa deveria dar a si ‘razões’ para poder ocupar externa e moralmente com boa consciência ‘espaços’ considerados ‘vazios’ fora de seu próprio ‘espaço’ histórico. E ninguém no século XVI se atreveu a expor tão claramente o argumento que foi se transformando, refinando, ‘melhorando’ através dos séculos, a fim de tentar provar a racionalidade da expansão colonial ocidental”, Enrique Dussel, Política de la liberación, Madrid, Trotta, 2007, p. 195.

14. Em nosso argumento, essa crença é a que constitui o centro, o nodo ou, se preferirmos, o eixo arquimediano do raciocínio ou preconceito moderno, quer dizer, essa “crença’ é a que constitui o núcleo da idolatria da modernidade, que se assume a si mesma como real e definitivamente humana, como se os outros estágios da humanidade não houvessem sido, jamais. A modernidade se crê quase tão perfeita, que crê e pensa que para além dela é impossível outra forma humana superior; por isso crê que é impossível outro tipo de civilização superior ou melhor que ela. Por isso mesmo, a modernidade pensa que o único racional é tentar conservá-la ou, se preferirmos, melhorá-la, mas nunca a questionar, porque o contrário seria justamente a barbárie.

15. Essa crença absolutamente moderna foi argumentada e fundamentada filosoficamente de tal modo que agora foi constituída como parte dos pressupostos quase inquestionáveis da racionalidade moderna. Entre outras coisas, para isso serviu também a filosofia moderna e, nesse caso, Hegel, para fundamentar racionalmente essas crenças ou preconceitos. Assim, em seus cursos de Filosofia da história unviversal, Hegel dizia explicitamente que as culturas dos povos do Novo Mundo eram inferiores sem havê-los conhecido, sem nunca haver estado algum filósofo europeu até Heidegger em nossas terras. “Da América e de seu grau de civilização, especialmente em México e Peru, temos informação de seu desenvolvimento, mas como uma cultura inteiramente particular, que expira no momento em que o Espírito se aproxima […]. A inferioridade desses indivíduos em todos os aspectos, é inteiramente evidente”; e da África diz algo pior: “África é em geral uma terra fechada, e mantém esse seu caráter fundamental […]. Entre os negros é, com efeito, característico o fato de que sua consciência não chegou ainda à intuição de nenhuma objetividade […] é um homem bruto […]. África não tem propriamente história. Por isso abandonamos África para não a mencionar mais. Não é uma parte do mundo histórico; não apresenta um movimento nem um desenvolvimento histórico”. Ao desqualificar a América Latina e África, pode afirmar a Europa e a Alemanha como povos com história e, por sua vez, como portadores do Espírito: “Porque a história é a configuração do Espírito em forma de acontecimento […], o povo que recebe tal elemento como princípio natural […] é o povo dominante nessa época da história mundial […]. Contra o direito absoluto que ele tem por ser o portador atual do grau de desenvolvimento do Espírito mundial, o espírito dos povos não tem direito algum”. Citações tomadas de Dussel, 1942. El encubrimiento del outro, cit., pp. 18-21.