A situação atual do Haiti exige, além de orações, o conhecimento das injustiças históricas impostas ao país, contra a qual militaram os pioneiros adventistas e que constarem os irmãos haitianos


Não parece haver paz para a ilha dos jacobinos negros. Pouco mais de um mês após o assassinato de seu presidente Jovenel Moïse, em circunstâncias ainda pouco esclarecidas que sugerem o envolvimento de agentes externos, o Haiti sofreu com um terremoto de magnitude de escala 7,2 neste sábado (14). O país até agora registrou mais de 1.400 mortos, 5.700 feridos, e teve estado de emergência declarado por seu novo primeiro-ministro, Ariel Henry, durante 30 dias. 

Como numa triste ironia teológica, Ariel Henry é adventista, irmão de Ellie Henry, o presidente da Divisão Inter-Americana (IAD) para a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD). Um governante que aguarda o fim do mundo administra um país repleto de apocalipses: “os horrores do genocídio indígena, da escravidão e do colonialismo; a guerra revolucionária, que reduziu a população da Ilha em 40%; as décadas de embargo econômico, usurpação financeira e isolamento político; as intervenções imperialistas; o Massacre de 1937 praticado pelos seus vizinhos dominicanos; as ditaduras dos Docs; e, mais recentemente, o terremoto de 2010”, lista o professor Marcos Queiroz em seu artigo sobre a história da ilha

O povo haitiano, no entanto, não é um mero curral de vítimas, aguardando sua próxima catástrofe em uma eterna passividade. Somente ao tratá-los com a autonomia e agência que reivindicam seremos capazes de romper com os ciclos viciosos de nossa história e “escutar a voz da liberdade que fala aos corações de todos nós” — e para isso devemos conhecer a história do povo, inclusive adventista, na ilha.

Dois séculos de exploração

A ilha de Haiti não teve sempre este nome. No século 18 se chamava “São Domingos”, e era a colônia mais importante da França — era o maior mercado individual de escravizados do mundo, e era responsável pela produção de metade do açúcar e do café consumidos em todo o mundo. Mesmo após a Revolução Francesa, que estourou em 1789, pelo menos 15% dos mil membros da Assembleia Nacional tinham propriedades coloniais. Sua suposta defesa da liberdade universal não se estendia aos negros e indígenas escravizados, que seguiam sendo brutalizados e desumanizados em suas colônias. 

Isso mudaria a partir de 1791, quando as massas haitianas, inspiradas pelos ideais de liberdade e igualdade da Revolução Francesa e indignadas com a negação desses valores a si próprias, pegaram em armas e promoveram a primeira revolução de escravizados da história da modernidade. Seus líderes, Toussaint Louverture, Jacques Dessalines, Alexandre Petión, Henri Christophe e outros, conduziram a população recém-liberta em uma guerra encarniçada contra seus proprietários, e depois contra tropas que atravessaram o oceano para submetê-los novamente — primeiro 60 mil soldados ingleses, depois 43 mil franceses. Após duras vitórias, com sua população reduzida em 40% pelos conflitos, o Haiti declara em 1805 sua independência como Estado soberano e antiescravista.

O triunfo infelizmente duraria pouco. Esmagado por um cruel embargo econômico e político, o Haiti é obrigado em 1825 a pagar como nação pela liberdade de seus escravizados, e assume uma dívida astronômica com a França para que sua independência seja internacionalmente reconhecida. Algumas potências coloniais em ascensão, como os Estados Unidos da América, levariam ainda mais tempo e só reconheceriam a soberania do Haiti a partir da década de 1860.

É nesse intervalo de 40 anos, enquanto o Haiti luta para pagar dívidas injustas e ter sua soberania reconhecida, que se forma nos EUA o movimento milerita, o qual culminaria na formação da Igreja Adventista. Mas o movimento não estava somente preocupado com o retorno iminente de Cristo; conforme já reportado pela Zelota, pioneiros da IASD como José Bates militavam ativamente pelo fim da escravização dos negros nos EUA, e tomavam o lado mais radical do movimento abolicionista ao defender também o reconhecimento da soberania do Haiti. Em 1840, por exemplo, Bates juntou 80 assinaturas pela abolição da escravidão no distrito de Columbia, e 28 assinaturas pelo reconhecimento da independência do Haiti. Estas assinaturas, coletadas a duras penas através de um trabalho lento de diálogo e conscientização nas ruas, eram enviadas à Câmara dos Deputados e ao Senado para que o governo as considerasse.

As doutrinas da IASD só entraram no território haitiano em 1879,1 quando os ingleses John N. Loughborough e William Ings enviaram à ilha uma caixa de livros e folhetos adventistas. Sem destinatário, o material se espalhou entre os protestantes da ilha, e tocou especialmente dois jovens jamaicanos, que começaram a guardar o sábado: Henry Williams e sua esposa, que seriam batizados por L. C. Chadwick em 1892. O material ainda alcançaria o professor metodista Michel Nord Isaac, cujo trabalho missionário formou uma congregação de guardadores do sábado antes mesmo que chegasse o primeiro missionário adventista, W. Jay Tanner, em 1905.

O século 20 não levaria somente as crenças adventistas à ilha; em 1915 os EUA, cujos bancos haviam assumido a dívida haitiana com a França, invadem a ilha e instauram uma ocupação militar que dura até 1934. Com o pretexto de assegurar que os haitianos honrariam seus compromissos e pagariam por sua liberdade — pagamento ao qual já se direcionava 70% da renda obtida através do comércio exterior — os estadunidenses passaram a controlar o Tesouro Nacional e impuseram reformas que permitiam aos estrangeiros a posse de terras na ilha, algo proibido desde a Revolução. O preço da liberdade, convertido em juros e empréstimos, legaria uma dívida que em 2003 chegava aos 21 bilhões de dólares — maior que o PIB do Haiti, que em 2016 era de 19 bilhões. Nos anos 2000, após sucessivas ocupações militares e ditaduras, as dívidas injustas começaram a ser perdoadas. A França, no entanto, recusou-se a devolver os valores extorquidos do Haiti ao longo de um século, comprometendo-se somente a pagar um “débito moral” à ilha.

A IASD haitiana também cresceu muito ao longo do século 20; após o fim da ditadura dos Duvalier na ilha, seria formada oficialmente a União Missão Haitiana (UMASH), em 1989, com cerca de 132 mil membros. Uma União Missão, de acordo com as Políticas de Trabalho da IASD a nível mundial, depende financeira e politicamente de sua Divisão. Em entrevista à Zelota, o pastor Richner Fleury, diretor do Ministério de Comunicações, Jovens e Capelania para a UMASH, explica que esta dependência se mantém até hoje: “não temos recursos financeiros para nos tornarmos uma União Associação, e a IAD nos ajuda como pode”, conta o pastor. Uma União Associação pode realizar suas próprias comissões diretivas para nomear seus líderes, sem a mediação obrigatória da Divisão; um dos requisitos para isso, no entanto, é a demonstração de independência financeira.

Dois projetos para o Haiti

A dívida externa abusiva não é o único meio de subjugação do povo haitiano. A maior parte do século 21 foi marcada por uma ocupação militar coordenada pela ONU, na qual as Forças Armadas brasileiras tiveram papel proeminente — trata-se da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti, também conhecida como MINUSTAH, que começou em 2004 e só foi encerrada oficialmente em 2017. A missão, prolongada pelo terremoto catastrófico que arrasou o país em 2010, chegou para supostamente colaborar com a estabilização de um regime político minimamente democrático. Mas seu saldo ao fim de 13 anos é de 10.000 mortes por uma epidemia de cólera trazida por equipes das Nações Unidas, incontáveis desvios e abusos por parte dos Clinton e uma infinidade de casos de abusos sexuais, estupros, homicídios e crianças abandonadas.

Gráfico de batismos no Haiti, com evidência de um pico em 2010 (ano do terremoto), um padrão que não se sustenta em anos posteriores.

Para Miguel Borba de Sá, doutor em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e professor da Universidade de Coimbra (UC), o conceito de “espaço ingovernável”2 tem sido historicamente aplicado ao Haiti, com o objetivo de legitimar a permanência de uma tutela internacional militarizada e impedir que o povo da ilha tenha a chance de governar a si mesmo. As Forças Armadas brasileiras aceitaram ser o braço armado deste projeto internacional, levando 37.000 militares para a ilha dos jacobinos, e seus generais golpistas hoje ocupam (ou ocuparam) posições chave no governo Bolsonaro

Enquanto isso, outros países tentavam fortalecer a autonomia e a soberania do Haiti. O programa Petrocaribe, criado pela Venezuela em 2005, consistia em um convênio entre os países do Caribe, que recebiam royalties pelo petróleo venezuelano — seja em dinheiro ou em petróleo. Só em 2011 foram 246 mil barris de petróleo enviados a 16 países da região. Isso, é claro, até que as sanções norte-americanas contra a Venezuela arruinaram o programa de cooperação.

A crise de abastecimento resultante somou-se à crise política já em andamento. O presidente haitiano Jovenel Moïse, suspeito de fraude desde sua vitória eleitoral em 2016, sucedeu um mentor já suspeito de desviar fundos de ajuda internacional, e manteve a tradição; para completar, em maio de 2019 o Tribunal de Contas da ilha concluiu que pelo menos 14 ex-funcionários desviaram mais de 3,8 bilhões de dólares do Petrocaribe entre 2008 e 2016. O povo respondeu com protestos massivos pela deposição do presidente, possivelmente com adventistas em suas fileiras; de acordo com o Pr. Richner Fleury, a liderança da IASD na ilha não encoraja a participação de seus membros em atos políticos, mas os deixa livres para seguir sua consciência individual. Moïse reagiu suspendendo a atividade parlamentar em 2020, desde então governando por decreto.

Ao mesmo tempo, para responder mais diretamente aos protestos, o presidente podia contar com as dezenas de gangues paramilitares conectadas a ele. Por exemplo, dois dias antes dos protestos do dia 17 de outubro de 2020, feriado nacional em honra ao revolucionário Jean-Jacques Dessalines, o ex-policial chefe do conjunto paramilitar G9, Jimmy “Barbecue” Chérizier, publicou um vídeo ameaçando os manifestantes. Chérizier já era procurado por seu envolvimento com o massacre de La Saline, em que até bebês foram baleados, mas circulava tranquilamente pelas ruas de Porto Príncipe. 

A proliferação de gangues armadas e sua parceria com o governo teve consequências diretas para a IASD pelo menos duas vezes: na véspera do Natal de 2020, o Pr. Elie Henry, haitiano e presidente da IAD, foi sequestrado em Porto Príncipe com sua filha por um grupo de homens armados, que teriam exigido 5 milhões de dólares como resgate. O pastor e sua filha foram libertos após quatro dias. No dia 1º de abril deste ano, quatro adventistas do Ministério Krèyol também foram sequestrados enquanto transmitiam um culto ao vivo.

O número de mortos cresce com muita frequência a partir de 2010 (ano do terremoto).

Dois incidentes

Em 2021, a situação do Haiti é ainda mais dramática. Após o magnicídio do presidente Jovenel Moïse no dia 7 de julho, o país viveu momentos de incerteza enquanto Claude Joseph e Ariel Henry reivindicavam o cargo de primeiro-ministro interino para si. No dia 19 de julho, ambos entraram em um acordo de unificação em nome da estabilidade nacional, e Ariel Henry foi nomeado primeiro-ministro. Ariel Henry é médico cirurgião, tem 71 anos e é irmão do Pr. Elie Henry, o presidente da IAD que foi sequestrado no ano passado. De acordo com o Pr. Richner Fleury, o primeiro-ministro também é adventista do sétimo dia, mas isso não interfere em nada nas relações da igreja com o governo: “o máximo que vamos fazer é orar por ele”, esclareceu. 

Sendo assim, o terremoto do último sábado (14) não poderia ter vindo em pior hora. Já são mais de 1.400 mortos, cidades com 90% das casas destruídas, e falta até água potável em algumas regiões. Muitas pessoas dormem nas ruas com medo de novos desabamentos, mas agora uma tempestade tropical se aproxima da ilha, que ainda por cima foi a última a receber vacinas contra a Covid-19. Novos diálogos começaram entre Ariel Henry e a coordenadora do USAID, Samantha Power, e o retorno de tropas estadunidenses à ilha permanece uma possibilidade.

O terremoto também vitimou muitos irmãos adventistas: até o momento são 12 membros mortos, 21 feridos, 20 casas e 5 igrejas destruídas. O Hospital Adventista em Porto Príncipe está operando 50% acima da capacidade, e conta com o suporte de voluntários e de médicos adventistas dos EUA que viajaram para ajudar os profissionais haitianos. A Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (ADRA) também tem liderado uma mobilização mundial para arrecadar recursos para a ilha: o objetivo inicial é atender entre 500 e 1000 famílias com tendas, lonas, kits de abrigo, água e comida.

Duas orações

Toda essa breve contextualização era necessária para que, compreendendo o básico das mazelas e dos desafios que assolam o país, possamos orar e agir não em nome de um humanismo abstrato, mas por paz e justiça concretas, que não virão através das ONGs estrangeiras que proliferam na ilha. A situação do Haiti é complexa, e este texto mal arranhou a superfície de suas contradições; mas está claro que a ilha dispõe de um povo corajoso, cujas raízes revolucionárias despertam orgulho até nos adventistas mais espirituais. “Não somos a favor da violência, mas nossos membros têm sim orgulho da Revolução Haitiana”, conta o Pr. Richner à Zelota

Por isso, ao estendermos nossa solidariedade aos irmãos haitianos, que possamos orar por sua liberdade, independência e autonomia; que possamos orar por sua recuperação dos apocalipses naturais e manufaturados; e que possamos orar por seu direito inalienável de viverem em paz. Inspiremos esses valores para nossos pulmões, e o Espírito de Deus nos moverá a agir onde for realmente necessário.

Para apoiar o trabalho da ADRA no atendimento à população do país, faça sua doação via Pix: [email protected]

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Notas:

1. Charles, Robert Jean-Marie, “Diseño De Una Estrategia Para El Evangelismo En Delmas, Puerto Princípe, Haití” (2004). Professional Dissertations DMin. 550. <https://digitalcommons.andrews.edu/dmin/550>

2. Cf. Constantinou CM, Opondo SO. Engaging the ‘ungoverned’: The merging of diplomacy, defence and development. Cooperation and Conflict. 2016;51(3):307-324. doi:10.1177/0010836715612848