O desenrolar da natureza carrega a abertura para um futuro incerto, e ainda que as coisas aparentem não mudar, o ainda-não-existente permanece como possibilidade


Adoration of the sheferds” (Ilustração: Van Honthorst, 1622)

Uma das grandes contribuições que Hegel fez para a filosofia foi superar o dualismo Kantiano sujeito-objeto. Na proposta Kantiana existia uma distância infinita entre o sujeito e o objeto, de modo que era impossível ao sujeito ter um conhecimento real do objeto. Os objetos então ficariam em uma distância intocável, e o que falamos dele seria somente impressão daquilo que conseguimos perceber com nossos sentidos. Hegel coloca em xeque essa leitura e nos mostra que, na realidade, não existe um objeto estático em si; este faz parte de uma relação complexa de desenvolvimento dialético que o conhecimento deve apreender. Não existe objeto que não seja sujeito.

A ciência, então, a “ciência hegeliana”, é a busca das forças ocultas que formam o objeto e mostram a sua “sujeitidade” enquanto parte de um processo que permanece acontecendo. E essas forças que formam o objeto, ocultas em uma primeira visão, são o verdadeiro sentido do conhecimento científico. Talvez a dialética seja algo parecido com isso: a busca pelo desenvolvimento do todo, que como parte de um grande processo não está encerrado em si mesmo. Para o funcionamento da dialética, é necessário especular. Não conhecemos o todo, temos uma imagem do agora, e precisamos especular o que essa imagem diz sobre o todo, sobre o infinito do qual ela faz parte. A dialética é o liame entre o finito e o infinito, entre o concreto e o absoluto. Por isso, comenta Bloch:

“Embora Kant ainda desvalorizasse a especulação como ‘um furor com a razão’, esta última sendo o conhecimento das coisas a partir de conceitos puros, sem qualquer empirismo, Hegel considerava o procedimento especulativo como um conhecimento precisamente por meio de conceitos concretos, em contraste com os conceitos meramente abstratos de reflexão. Daí Hegel: ‘O especulativo é o positivo-razoável, o intelectual, apenas realmente filosófico.’ Tem determinação unilateral em si e não se esgota por isso, mas como totalidade contém aquelas determinações unidas em si que, em sua separação, são consideradas pelo dogmatismo como sólidas e verdadeiras.”1

Nessa perspectiva, Bloch afirma a necessidade de um materialismo especulativo. Especulativo aqui tem o sentido “espiar, olhar em volta, ficar de olho.”2 Para superar o materialismo vulgar que encerra a materialidade em si mesma, é preciso construir um materialismo que tenha a coragem de assumir o “pulso de vitalidade”3 da dialética, e espiar o futuro. Em Bloch, para além da sua etimologia: “a palavra matéria vem de mater, ou seja, do ventre fértil do mundo e suas formas exaustivamente experimentais, figuras, formas de existência, formas abstratas cheias de tendências inacabadas, latências não cumpridas.”4 A realidade, enquanto construção material, é ontologicamente cheia de possibilidades. E essas possibilidade se dividem:

“De um lado é a dynamei on, ou ‘o-que-há-na-possibilidade’, que Bloch descreve em O Princípio Esperança como o ‘substrato real da possibilidade no processo dialético’. Esse é o fator subjetivo da matéria, uma força motriz inconsciente, mas ativa, que gera, produz e cria. Por outro lado, porém, sua matéria é kata to dynaton ou ‘o-que-é-de-acordo-com-a-possibilidade, isto é, aquilo que é definido nos termos das condições que são, em cada caso, capazes de aparecer historicamente’. Isso corresponde aos limites ou condições que a matéria cria para si mesma no processo de sua autorrealização.”5

A matéria é então possibilidade que se define pelas suas próprias incursões. Dentro destas encontramos o humano, que é a forma de consciência que este próprio desenvolvimento da natureza adquiriu.6 O ser humano é livre porque a natureza é livre, e ela caminha porque ainda não está no que deveria; se não fosse assim, não haveria processo, nem dialética, nem história.7 Aí está a especulação, a coragem de espiar. Afinal, qual é o final sobre o qual o processo se escreve? Talvez a própria pergunta esteja errada, pois pressupõe que o final está definido. Se Schelling estiver correto, e Deus for exatamente este processar do caminho, nós que somos complexificação deste mesmo caminhar temos também as rédeas, e podemos ao menos em algum sentido moldar o traçado a nosso favor. Claro que tudo isso não passa de uma conspiração teórica – afinal, Caim matou Abel. Dentro da história humana, as possibilidades do ainda-não-existente são definidas materialmente a partir das correlações de força; chamamos isso de política. Os ideólogos do atual sistema de dominação falam que a tal política é o debate livre das ideias, a negação da violência, enquanto o povo vive um processo de superexploração e destruição de todos os seus direitos arduamente conquistados. Afirmam uma liberdade e igualdade formal que é só outra forma de encobrir o direito de explorar até a morte.

Mas no meio do caminho há o Messias.  

Mais de 600 anos antes da Era Comum, uma pequena nação no Oriente Próximo era invadida por uma grande potência chamada Babilônia. Naquele período, para que as colônias enfraquecessem, os impérios levavam as pessoas mais importante das nações para sua capital; com Jerusalém não foi diferente. Desde então, aquele povo começou a crer que YHWH mandaria um Messias para livrar seu povo de sua situação de exploração, e podemos ver essa fé de forma clara nos três livros de Isaías. A fé cristã (a palavra Cristo é a tradução de Messias do hebraico para o grego) dirá que esse Messias se encarna em Jesus de Nazaré. E Paulo de Tarso, escravo do Messias, em comentário ao resultado da ressurreição do Cristo, comenta: 

“Sabemos que a criação toda geme e sofre dores de parto até agora. E não somente ela, mas também nós, que possuímos os primeiros frutos do Espírito, gememos no íntimo, esperando a adoção, a libertação para o nosso corpo. Na esperança, nós já fomos salvos. Ver o que se espera já não é esperar: como se pode esperar o que já se vê? Mas, se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos” (Rm 8.22-25).

Distante da ideia grega de um mundo acabado e cíclico, a tradição do Messias espera em um mundo em vias dele, a caminho do Redentor. Em sentido similar, Teilhard Chardin comenta:

“Na verdade, pela operação sempre em curso da Encarnação, o divino penetra tão bem nossas energias de criaturas que não poderíamos, para encontrá-lo e abraçá-lo, achar um meio mais apropriado do que a nossa própria ação […] Virá o tempo em que os homens, despertados para o sentido da estreita ligação que associa todos os movimentos deste mundo no único trabalho da Encarnação, não poderão entregar-se a qualquer de suas tarefas sem a iluminação desta visão distinta de que seu trabalho, por mais elementar que ele seja, é recebido e utilizado por um centro divino no universo!”8

A ação do que participa da ação messiânica é a ação de participar do processo de encarnação, a contínua busca do real pelo que ele ainda não é. Dentro da história social dos humanos este desenrolar é sempre travado pelos interesses dos donos e beneficiados pelo sistema de exploração. Dentro desta etapa global do capitalismo, talvez estejamos no momento mais socialmente hostil à ideia de uma transformação social das bases da sociedade. A ideologia das classes dominantes venceu a batalha pelo legado da História do século 20. O capitalismo liberal e a democracia burguesa se reafirmam como últimos. A morte de Abel é institucionalizada, Caim agora é um herói global.

Mas no meio do caminho há o Messias.   

Mesmo que a ideologia hegemônica faça da vida uma sessão subordinada aos interesses do capital, a realidade não está encerrada. É preciso resgatar o pulso vitalista da dialética, que não tem medo de espiar as tendências do futuro, olhando para os negativados pelo capitalismo racista, patriarcal e heteronormativo. Nestes repousam as forças da encarnação, onde nenhum momento é último, até que o Messias reine sobre o mundo. Por isso a “liberdade dos filhos de Deus é a substância da história”;9 é por conta da liberdade da encarnação que a História pode ser escrita. Já que o Messias é o único absoluto, os filhos de Deus não acreditam nos discursos dos reis e burgueses, de acordo com quem teríamos chegado a um momento último, que seriam os escolhidos por Deus para isso. Mas enquanto o Cristo do mundo não é o Rei, este não é o fim; e para ser condizente com o seu reinado, os seguidores do Messias, os que questionam a ordem devido à crença louca de que o Messias irá vencer todas as potestades, devem destruir toda forma social-política-econômica que se afirme última. Pois toda forma social que se afirma última é outra forma de institucionalização do sangue de Abel, que sempre continuará clamando aos céus. 

Notas:

1. BLOCH, Ernst. Das materialismusproblem, seine geschichte un substanz. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1972, 471.

2. BLOCH, Ernst. Das materialismusproblem, seine geschichte un substanz. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1972, p. 471.

3. BLOCH, Ernst. Das materialismusproblem, seine geschichte un substanz. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1972, p. 470.

4. BLOCH, Ernst. Das materialismusproblem, seine geschichte un substanz. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1972, p. 17.

5. MOIR, Cat. Ernst Bloch’s Speculative Materialism, Ontology, Epistemology, Politics. Leiden: Brill, 2019, p. 52.

6. MOIR, Cat. Ernst Bloch’s Speculative Materialism, Ontology, Epistemology, Politics. Leiden: Brill, 2019, p. 62.

7. MOIR, Cat. Ernst Bloch’s Speculative Materialism, Ontology, Epistemology, Politics. Leiden: Brill, 2019, p. 61.

8. CHARDIN, Teilhard. O Meio Divino, ensaio de vida interior. Petrópolis: Editora Vozes, 2014, p. 29/34,5.

9. BLOCH, Ernst. Thomaz Münzer, o teólogo da revolução. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973, p. 8.