Na Bíblia, Deus é chamado por múltiplos nomes, cada um deles com significado particular às experiências e à realidade de seus filhos


Mural do leitor | Alef Lessa é especialista em Pedagogia, coordenador pedagógico e tradutor.

Deus já foi chamado de muitos nomes diferentes por toda a história. E ele não parece se incomodar com tantos títulos. Como sempre, existe um oficial. Em Êxodo 3:14, Deus se nomeia pela primeira vez, quando Moisés pergunta o que ele diria ao povo quando perguntassem quem o enviou. O nome utilizado é יהוה (Yhwh), o tetragrama sagrado. Esse nome é impronunciável por não conter fonemas vocálicos, mas em português ficou Jeová, ou Javé. Esse é o nome que o próprio Deus se dá, em linguagem humana. Mas esse sequer foi o primeiro nome ao qual foi referido na Bíblia. 

O primeiro verso, Gênesis 1:1, ele é chamado de אֱלֹהִים (‘Elohim). Esse é o pronome plural de santidade de Deus. Na interpretação cristã, cremos que se referia à presença de toda a Trindade no ato da criação, por tratar-se de um plural. Além disso, Ele foi chamado de pelo menos 45 outros nomes. Inclusive de בָּעַל (Baal, “senhor”), quando o profeta Isaías (54:5) diz que Deus será o “marido/senhor” do povo, após se arrependerem. Sim, o nome do seu maior inimigo, um deus falso. Mas não existe nenhuma reprimenda contra isso na Torá. 

Na verdade, o próprio nome “Deus”, ‘El, que dá origem à maior parte dos nomes dele (‘El Caná, ‘El Beot, ‘El Shaddai etc.) é de origem cananita. ‘El era o deus supremo do panteão cananita, representado por um velho com barba branca e sábio, imagem que permaneceu no imaginário popular por milênios. Muitos historiadores creem que essa é uma evidência de que o Deus hebreu foi inventado, fruto de um sincretismo cultural. Eu acho que não. Acho que isso só é uma evidência de como Deus aceita nossas referências humanas para adorá-lo. Ele inspirava as pessoas a chamarem-no do que quisessem. Mesmo pelos nomes de deuses falsos. E não há evidências para acreditar que tal hábito divino tenha mudado hoje em dia. Ele não muda, ele é Deus, e Ele não tem apenas um nome. 

O “Deus que me vê”

A despeito de tudo isso, na minha opinião pessoal, existe um “nome sobre todo nome”, que se sobressai em significado a todos os outros. Todo mundo conhece a história de Ismael e Hagar. Abrão e Sarai esperaram por 10 anos o cumprimento da promessa, e nada. Talvez devessem fazer algo para intervir e ajudar Deus. Sarai deu a Abrão sua serva egípcia, Hagar, para que ele a tomasse e tivesse com ela um filho. Foi o que aconteceu. Mas Deus deixou claro que o filho da promessa seria de Sarai; Ele deixou claro que a bênção da Aliança jamais recairia sobre Ismael. Sarai se enfureceu com a serva, porque ela a desprezou, já que estava grávida do patriarca. E a maltratou tanto que ela fugiu. No deserto, o próprio Cristo em forma de Anjo, o Malakh Yhwh (מַלְאַךְ יְהוָה) foi atrás de Hagar; e sem que ela dissesse nada, fez ao futuro Ismael a mesma promessa que fizera ao futuro Isaque: que ele seria uma grande nação, e ninguém poderia contar seus descendentes, ordenando à mãe que voltasse para se submeter novamente a Sarai (Gn 16).

O que essa história tem de especial? Tudo. Essa foi a primeira vez na Bíblia em que houve uma digressão da narrativa central para uma narrativa secundária. E ela é justamente sobre uma mulher, escrava, egípcia, cuja única relevância na história foi a falta de fé de seus senhores. Ela não foi atrás do Eterno, mas Ele foi atrás dela, mesmo diante de sua atitude rebelde e altamente reprovável no contexto. A Torá diz que “Deus a ouviu em seu sofrimento”. O movimento foi feito por Deus, não por Hagar. Deus ouve o choro e o lamento; Deus acode ao necessitado mesmo quando ele está errado. Mesmo quando toda a sua existência é um erro, do ponto de vista dos homens e de seu contexto cultural. Ele sabe, Ele ouve, e Ele vê. E esse é novo nome que é dado a Deus por Hagar. “Tu és o ‘El-Ro’i” (אֵ֣ל רֳאִ֑י). O Deus que me vê. E aquele lugar ficou conhecido como Beer-La-Ro’i. O poço do Deus Vivo, que me vê” (v. 13). “Me vê”, em primeira pessoa. Apenas três pessoas tiveram aquele nível de intimidade com Deus na Bíblia até agora. Adão, que literalmente vivia com Deus; Enoque, que foi levado ao céu por Deus, e Hagar. Ela foi mais íntima de Deus que seu senhor, o patriarca Abrão. O momento onde ele hospedou a trindade em sua casa ocorreu depois, pouco antes da queda de Sodoma e Gomorra. Antes disso, Hagar foi íntima do Eterno, e deu-lhe um novo nome. E Ele, ao invés de repreendê-la por isso, a abençoou copiosamente. 

O “Deus que me ouve”

Há ainda uma segunda digressão, com a história de Ló em Sodoma, e uma terceira, novamente com Hagar. Ismael e Isaque já haviam nascido, e Ismael, possivelmente, destratou Isaque, a ponto de Sarai querer expulsar a ele e sua mãe de suas vidas para sempre. Sarai (agora Sara), a matriarca de Israel, só soube ter ciúmes. Só soube desprezar o fato de ‘El-Ro’i ter abençoado sua serva. “Livre-se daquela escrava e do seu filho, porque ele jamais será herdeiro com o meu filho Isaque” (Gn 21:10). E, mais uma vez, Hagar foi para o deserto; mais uma vez com a conivência de Abrão (agora Abraão). Mas Deus interveio, assegurando ao patriarca que a mesma bênção de Isaque pertencia agora a Ismael. Ele também seria uma grande nação. 

Notavelmente, Ismael recebeu a benção antes de Isaque nascer. Hagar mais uma vez foi desamparada, mas não por rebeldia, não porque fugiu. Ela deixou seu filho debaixo de um arbusto, e se afastou 100 metros, porque não podia vê-lo morrer. O menino chorou e chorou. “O que a aflige, Hagar? Não tenha medo; Deus ouviu o menino chorar, lá onde você o deixou.” (Gn 21:17), foi a resposta do Eterno a esse choro. Ninguém o chamou, mas Ele respondeu. É isso que ‘El-Ro’i faz. E agora, o Deus que vê, tornou-se também o Deus que ouve. Ouve o choro, e ouve o clamor que nem mesmo se dirigiu a ele. Pois Ele também é Margen, “o Protetor”; ‘El-Ne’eeman, “Deus de misericórdia”; ‘El Caná,” o Deus zeloso”. Ele é a própria Justiça, e toda vez que o injustiçado chora, mesmo em gemidos inexprimíveis, está na verdade invocando seu Santo Nome. Um novo nome, feito de choro, mas que Ele entende. 

Um novo nome

Hoje, na minha ousadia em tentar ser íntimo de Deus, como Hagar, eu vou chamar a Deus de um novo nome. Um nome que representa o que Ele foi na vida de Hagar, e o que é na minha. Ismael era um problema. Um problema vivo. Ele era a vergonha do erro de Abrão e Sarai. Enquanto vivesse, ele seria o atestado ambulante da falta de fé do pai da fé. Não era para ele ter existido. Num contexto atual, ele seria o filho bastardo do homem-de-bem, que tem vergonha de o assumir; aquele filho do pastor que saiu da igreja e manchou o ministério do pai; o filho do prazer da adolescência que saiu do controle, e veio na hora errada, trazendo todas as consequências incalculáveis da paternidade precoce. O filho que nunca deveria ter nascido, mas mesmo assim, nasceu. Mas ‘El-Ro’i não vê como vê o homem. Onde o homem vê erro, ele vê benção. Onde o homem vê fim, ele vê começo. Onde o homem vê problemas, ele vê soluções. Ele é o Deus que vê, que ouve, que ampara. Ele nos atrai “com laços humanos, laços de amor” (Os 11:4), como a um caçador que captura para amar. Hagar não se esqueceu de seu filho, mas mesmo que uma mulher que amamenta se esquecesse de seu filho, Ele não se esqueceria de nós (Is 49:15). 

Tratar pessoas como erros vivos é de fato chamar o nome de Deus em vão. Ele aceita que o chamemos com nomes novos, nomes estranhos, até nomes de outros deuses. Mas não terá por inocente quem chama seu Santo nome em vão (Ex 20:7), ao amaldiçoar o que Ele já abençoou. Quem somos nós para retirarmos a benção de Deus? Se ele já abençoou Ismael, quem somos nós para acharmos que nossa religião é a melhor, que nosso povo é o melhor, chamar a sua descendência de “selvagens”, como muitas vezes somos convidados a fazer pela Babilônia deste mundo? Isso quando não somos nós mesmos o erro, os filhos indesejados, os filhos do estupro, os filhos que só parecem servir pra desonrar os pais. Ele não se importa com nada disso. Afinal, não foi o sexo sem preservativo dos seus pais que te trouxe à vida, ou a relação extra-conjugal, ou qualquer outra coisa. Quem permitiu que você nascesse foi Ele. Se você se acha um problema, então, literalmente, o problema é dEle. Ele é o Deus de Abraão, Isaque, Jacó… e de Ismael.

A frase “Deus te salva dos seus erros, e não nos seus erros” não é harmoniosa com a grande Enciclopédia das entranhas dos cadáveres dos erros humanos expostos na Bíblia. Deus está sempre usando nossos problemas, nossas existências não planejadas, para ser engrandecido nas nossas boas obras. Ele encarnou aqui para os doentes (Mc 2:17), e não para os sãos. E quem está são hoje? Quem pode se levantar e dizer que venceu seu pecado? Eu não. Me considero literalmente o pior dos pecadores. Mas foi nos meus problemas que Ele me enxergou, me salvou e me resgatou. Nos meus problemas, no enlameado da minha vida, é que ele traz luz, e transforma minhas maldições em bênção. Mesmo quando eu mesmo tento me amaldiçoar, ele mesmo diz a mim: “Quem é você pra amaldiçoar o que eu mesmo abençoei?”

Por isso, hoje, na perdição de meu deserto, eu vou chamá-lo de um novo nome, como Hagar. Ele vê, ele ouve. Ele é o Deus da misericórdia. Para mim, Ele é o “Deus dos indesejados”.