Ao criticar a modernidade, Leonardo Boff e seus seguidores elaboram a mesma cisão moderna entre a fé do crente e a mente do teólogo, fazendo da teologia um compilado de boas intenções
Leonardo Boff (Fonte: Brasil de Fato – Divulgação).
I
Por que produzir teologia? Em um mundo regido pelas leis do valor, qual é a função de mais um livro ou artigo de teologia? Com essas perguntas em mente, Hugo Assmann escrevia o prefácio à coletânea de ensaios publicados sob o título Teologia desde la Praxis de Liberación (1974). As palavras importam enquanto não bastam em si mesmas, mas quando é possível encontrar algo por trás delas, quando são “palavras de ação”. Claro, todas as respostas possíveis para essas perguntas são relativas às determinadas situações históricas do teólogo(a). No caso citado, tratava-se da primeira estruturação epistemológica da Teologia da Libertação (TdL).1
O período de forte politização da sociedade latino-americana entre 1960-1970 era vivido pelos próprios latino-americanos sob os signos de uma experiência religiosa. A política era vivida com a mesma qualidade existencial da religião, e vice-versa. Contudo, a novidade dessa experiência histórica colocava seus próprios agentes em uma situação de crise de fé: os cristãos começavam a participar de uma radicalização política que tinha como objeto de luta uma revolução latino-americana, teoricamente delimitada pelos debates da teoria da dependência, mas essa radicalização era vivida em termos religiosos, e a produção teórica da teologia estava aquém dessa experiência religiosa. A partir dessa crise, dessa cisão entre a práxis eclesial e a teologia vigente, os cristãos politicamente comprometidos começaram a formar um novo juízo crítico. Para Assmann, a TdL, enquanto palavras de ação, não significava um chamado à prática, mas a constatação de que aquelas palavras, em suas construções simbólicas, haviam sido produzidas em uma práxis comunitária real, encontrando na luta política o espaço de atuação daqueles que dizem seguir o Messias. Produzir teologia, então, era dar razão à esperança forjada na luta; seu valor se encontra fora de si mesma, o que importa é a comunidade que crê. No caso, uma comunidade começou a crer de um novo modo e colocou a própria teologia em xeque por isso.2 A teologia importa, portanto, quando informa no que crê uma comunidade de fé, dando razão a essa fé.
II
Tornou-se padrão referenciar o livro Ecologia: Grito da terra grito dos pobres (1994) de Leonardo Boff como o primeiro texto que trabalha a questão ecológica na teologia latino-americana. O texto em questão é dividido em onze capítulos, mas de modo geral existem algumas ideias das quais seus pensamentos derivam. A ideia principal de Boff é que vivemos uma crise de paradigma: “Na atitude de estar sobre as coisas e sobre tudo parece residir o mecanismo fundamental de nossa atual crise civilizacional. Qual a suprema ironia atual? A vontade de tudo dominar nos está fazendo dominados e assujeitados aos imperativos de uma Terra degradada.”3
Aquilo que chamamos de modernidade é interpretado pelo teólogo como um paradigma que cria uma cisão entre a natureza e a sociedade, e nessa cisão se coloca um processo de dominação da terra. A ideia de que existe um paradigma moderno de dominação é o núcleo da sua interpretação sobre o que se passa; seu papel, enquanto pensador, é participar daquilo que ele chama de novo paradigma, um paradigma ecológico. A ideia de paradigma que o autor toma vem de Thomas Kuhn, mas segundo Paulo Baptista: “A expressão paradigma ecológico, para Leonardo Boff, inicialmente significa a emergência de uma nova consciência, nova forma de dialogação com a totalidade dos seres e de suas relações […] nova sensibilização para com o planeta como um todo.”4 A tese central de Boff é que, face à crise desse paradigma que também chama de era do corpo, tem surgido uma era da vida, ou uma nova fase na humanidade:
Finalmente, o ser humano está descobrindo seu caminho de volta rumo à grande comunidade dos viventes sob o arco-íris da fraternidade cósmica. Como salvaguardar a vida de Gaia, dos humanos e de todas as espécies? Este é o grande desafio na era da vida e na era da ecologia. O desafio de nossa contemporaneidade.5
Como diz o autor, a própria forma como se delimita o problema já é um apontamento para a solução. No caso, se Boff compreende que a crise ecológica é resultado de uma cisão fundamental na experiência humana, o mesmo entende que a resolução para o problema se encontra na formulação de um novo modo de viver e interpretar o mundo, um novo paradigma. Mas para além disso, esta não é uma mera intuição sua ou dos seus pares; trata-se de uma consciência que vem surgindo globalmente, e que nesse conflito de eras nos entendemos. Aí mora o papel da sua teologia, dar corpo a esse novo paradigma:
Precisamos efetivamente de uma nova experiência fundacional, de uma nova espiritualidade que permita uma singular e surpreendente nova religação de todas as nossas dimensões com as mais diversas instâncias da realidade planetária, cósmica, histórica, psíquica e transcendental. Só então será possível o desenho de um novo modo de ser a partir de um novo sentido de viver junto com toda a comunidade global. E assim somos remetidos a uma causa mais profunda pelo desastre ecológico contemporâneo e de sua possível redenção: aquela instância que tematiza e procura sempre manter viva a religação do ser humano com o resto do processo universal, a religião.6
Em um mundo cindido por um paradigma que não daria conta de apresentar as complexidades da vida, Boff acredita que a religião tem agora o papel de apresentar a religação de tudo, o “regresso à nossa pátria natal”.7 Esse, ao que parece, é o fundo do debate que se estende até o capítulo 6; a partir daí Boff começa a dar mais contornos teológicos a suas aspirações de produzir uma teologia que desse conta desse novo paradigma ecológico.
A releitura da presença constante e incontornável de Deus em tudo que há é então a modulação teológica que Boff encontra como coerente com o surgimento do novo paradigma. Se a crise é de um paradigma que rompe com a unidade do universo, esse novo paradigma ecológico aparece em Boff como uma necessidade de reafirmar a unidade de tudo que existe. A teoantropocósmica é o resultado teológico dessa interpretação histórica; em certo sentido já se torna nítido a que se refere a teologia de Boff. Sua produção teológica gira em torno daquilo que chama de paradigma, no qual o anterior está fundado em uma cisão que proporciona a dominação humana sobre a terra; o novo paradigma ecológico seria aquele que reassume a unidade do todo e a experiência mística dentro da própria terra.
A TdL que teria surgido para tentar dar conta do grito dos pobres deveria agora virar seus olhos e reformular o que foi para que pudesse ser participante do surgimento desse novo paradigma. Dando sequência a Boff, em um sentido mais sistemático, Afonso Murad comenta:
A ecoteologia, portanto, opera uma transformação no paradigma antropocêntrico, que entranha a teologia contemporânea. Propõe, a partir de dentro, uma articulação estreita entre a reflexão teológica e a espiritualidade. Além disso, do ponto de vista prático, postula mudanças na ética cristã, ao incorporar “o grito da Terra” e exigir atitudes individuais, ações coletivas, políticas públicas e processos de gestão que visem à sustentabilidade da vida no nosso planeta.8
A função da Ecoteologia seria então informar aos cristãos sua própria problemática teológica, resolver o paradigma do antropocentrismo, e a partir dessa mudança esses mesmos cristãos atuariam politicamente. O curioso é que essa reflexão teológica se arroga legatária do que foi a TdL; o grito dos pobres foi ouvido, e agora é a hora de escutar o grito da Terra. Existe a expectativa de que uma alteração na teologia possa incitar uma experiência prática diferente, e se esquece a novidade basilar da TdL: a de que o significado verdadeiro da teologia emerge primeiramente da experiência comunitária, que então é seguida pela sua formulação teórica. Não se trata da defesa de uma “ortodoxia da teologia da libertação”, mas de buscar se as palavras têm ou não “densidade histórica”, se existe algo por trás das palavras ou se elas estão sozinhas. Se a práxis dos cristãos comprometidos informava à teologia o próprio conteúdo que deveria refletir, os ecoteólogos querem informar qual é a teologia correta na expectativa de que isso derive em alguma nova ética.
III
A teologia na modernidade é conhecida caracteristicamente pela centralidade da dogmática. A partir do dogma, do conhecimento de Deus, poderíamos derivar a ética, o que se deve fazer. O conteúdo teológico abstrato, portanto, é o núcleo da produção teológica e conduz uma ética. A TdL, por outro lado, redefiniu os termos colocando a centralidade na ética, os cristãos comprometidos informavam aos teólogos os próprios signos teológicos que eram produzidos na experiência de luta política; o trabalho dos teólogos era então organizar as esperanças.9 Não por acaso as palavras dos nossos ecoteólogos se reduzem a círculos restritos, apesar da boa intenção e a urgência do tema. Algo similar ao que estamos acompanhando na ecoteologia de Boff já era encontrado por Hugo Assmann em 1975; em vez de amplificar as figurações do Cristo libertador, que ganhava espaço nas comunidades de base por toda a América Latina, Boff optou por construir sua cristologia através de uma meticulosa análise dos estudos exegéticos contemporâneos mais avançados. Tratava a Libertação como tema teológico, mas não aderiu à sua mudança metodológica; sua ecoteologia parece ressoar esse diagnóstico.
Enquanto qualquer projeto radical de transformação se transmutou em programa de governo, milhões de brasileiros perderam seus postos de emprego e o presidente os anunciava como inempregáveis, o que via nosso teólogo para os rumos do mundo?
O que está ocorrendo? Estamos regressando à nossa pátria natal. Estávamos perdidos entre máquinas, fascinados por estruturas industriais, enclausurados em escritórios de ar refrigerado e flores ressequidas, aparelhos eletrodomésticos e de comunicação e absortos por mil imagens falantes. Agora estamos regressando à grande comunidade planetária e cósmica. Fascina-nos a floresta verde, paramos diante da majestade das montanhas, elevamo-nos com o céu estrelado e admiramos a vitalidade dos animais.
Na sua própria tentativa de crítica à modernidade em seu paradigma de cisão entre humanidade e natureza, Boff e seus seguidores, como Murad, seguem trabalhando com a mesma cisão entre a fé do crente e a mente do teólogo característica da modernidade, fazendo da teologia um mero compilado de boas intenções.
Notas:
1.↑ E quem sugere isso é Enrique Dussel em: Teologia da Libertação: um panorama de seu desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 67.
2.↑ Para um claro exemplo dessa crítica à própria teologia, conferir o primeiro capítulo de Rubem Alves. Por uma Teologia da Libertação. São Paulo: Recriar, 2019.
3.↑ Leonardo Boff. Ecologia: Grito da terra grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004, p. 23.
4.↑ Paulo Baptista. Libertação e Ecologia. A Teologia Teoantropocósmica de Leonardo Boff. São Paulo: Edições Paulinas, 2011, p. 151.
5.↑ Leonardo Boff. Ecologia: Grito da terra grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004, p. 110.
6.↑ Leonardo Boff. Ecologia: Grito da terra grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004, p. 107-8.
7.↑ Leonardo Boff. Ecologia: Grito da terra grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004, p. 27.
8.↑ Afonso Murad . O núcleo da ecoteologia e a unidade da experiência salvífica. Revista Pistis & Praxis: Teologia e Pastoral, v. 1, n. 2, p. 277-297, jul./dez., 2009, p. 290. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=449749241002
9.↑ Sobre a centralidade da ética conferir Enrique Dussel. Ética comunitária. Petrópolis: Vozes, 1986, de no seu capítulo XX. Sobre organizar as esperanças conferir Hugo Assmann. Teologia desde la práxis de liberacion. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1974, de no seu segundo ensaio.
10.↑ Estamos nos referindo a fala de Fernando Henrique Cardoso na decada de 1990, pra maiores informações, conferir: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc080427.htm
11.↑ Leonardo Boff. Ecologia: Grito da terra grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004, p. 27.
12.↑ Sugerimos preliminarmente uma relação entre a crítica feita por Hugo Assmann à teologia na década de 70 e a crítica à racionalidade moderna desenvolvida por Alfred Sohn-Rethel em Trabalho Manual e Trabalho Intelectual (1972). No entanto, não dispomos de espaço suficiente para tornar esta confluência explicitamente clara, passo a passo, mas, em um trabalho posterior, iremos fazer o percurso em um esboço de uma Teologia Negativa.