A hermenêutica adventista encontra-se "protegida" por abordagens rígidas, simplistas e reacionárias que anulam qualquer possibilidade ao novo, uma atitude contrária à disposição crítica e flexível dos pioneiros da instituição


Por Matthew Quartey | Artigo traduzido por colaboradores da Zelota do original em inglês publicado pela revista Spectrum em 21 de maio de 2020.

Matthew Quartey é um ganês transplantado, que agora vive e chama de lar o gueto adventista de Berrien Springs, Michigan (EUA).

“The Heart Has Its Reasons” (Foto: Odilon Redon, 1887)

Quase cinco anos atrás, na conclusão da assembleia da Associação Geral de 2015, realizada em San Antonio, Texas (EUA), o Instituto de Pesquisa Bíblica da Igreja Adventista foi autorizado a se unir a oficiais não identificados da sede mundial da igreja com o objetivo de reformular o nosso documento sobre hermenêutica. A incumbência deles era produzir um novo relatório a ser votado na assembleia da Associação Geral de 2020, que ocorreria em Indianápolis, Indiana. Desde então, contra os protocolos normais e apesar de inúmeros líderes e membros da igreja clamando por transparência, o trabalho dessa comissão tem estado envolto em sigilo.

Não tenho dúvida de que, em algum lugar, exista um documento sobre hermenêutica sendo produzido ou já concluído. O que duvido é que ele seja inclusivo e represente de maneira ampla as vozes de muitos pensadores adventistas. Minha suspeita é que esse produto não revelado constitui outra oportunidade usada por líderes conservadores da igreja para nos puxar ainda mais em direção à direita ideológica. Seja como for, durante este trimestre [abril-junho de 2020], antes do que teria sido a assembleia da Associação Geral de Indianápolis, estamos estudando a versão da direita conservadora a respeito da nova hermenêutica, conforme apresentada na atual Lição da Escola Sabatina de adultos.

Em meio às lições, já é possível perceber uma tendência na direção de alguns conceitos problemáticos. Vemos, por exemplo, um anti-intelectualismo que, de maneira caricata, descreve como descrentes os “pensadores” que “rejeitam o ensino de que Deus criou o mundo em seis dias”. Além disso, um literalismo explícito argumenta que abordagens não literais para compreender a Bíblia levam inevitavelmente à conclusão de que “as histórias bíblicas são histórias inventadas”. A lição também promove uma noção confusa de “leitura simples”, que nos assegura que “a Bíblia é tão clara que pode ser compreendida por crianças e adultos”. Mas, dentro do mesmo texto, ela recua um pouco, admitindo: “Naturalmente, vamos encontrar versículos e ideias da Bíblia que não compreendemos totalmente.” Uma importante ênfase dessas lições semanais é simplificar o pensamento bíblico. A ideia é que só precisamos permitir que o Espírito Santo direcione nosso pensamento e tudo se tornará claro. Se tivermos dificuldades ou questionarmos qualquer parte das Escrituras, portanto, estaremos negando o acesso do Espírito Santo aos nossos corações.

Em poucas palavras, a Lição da Escola Sabatina deste trimestre apresenta uma forma idealizada, estática e preestabelecida de pensar e compreender as Escrituras. Ela destaca indicadores para uma ortodoxia adventista estabelecida, que evita questionamentos. Devemos nos manter firmes e não nos desviar das crenças estabelecidas porque o desvio leva a filosofias ímpias. E pior: a maus comportamentos. Suspeito que um dos principais motivos pelos quais a hermenêutica conservadora adventista contemporânea postula posições e entendimentos fundamentais é manter a fé dentro da visão que nossos pioneiros tinham no século 19, mesmo que essas ideias tenham perdido relevância. Mas essa concepção é reacionária. E, pelo fato de que nos apegamos a um entendimento imutável, nossa igreja continua a negar às mulheres a plena participação no ministério pastoral. Afirmamos que o mundo tem 6 mil anos. Continuamos a ensinar que o decreto dominical pode ser decretado a qualquer momento. E devemos estar prontos para fugir às montanhas quando o mundo inteiro estiver nos perseguindo. Por isso, mantemos uma postura hermenêutica voltada para a preservação do status quo. E isso acaba nos isentando de qualquer responsabilidade de repensar as posições estabelecidas por nossos fundadores, embora o mundo no qual vivemos seja diferente da visão de mundo evocada nas Escrituras e em Ellen G. White.

O efeito resultante dessas maquinações exegéticas, quer sejam intencionais ou não, é que elas evitam a mudança. Mas Jesus, se ele tiver alguma importância nesta discussão, retrata a mudança: nova, revigorante e até radical. Mudança que insiste em que vinho novo seja colocado apenas em odres novos, não reciclado em odres antigos. Escolhemos esquecer que a Bíblia retrata as culturas das pessoas, envolvendo educação, política e pensamento, e que elas nunca pretenderam ser vistas como receitas estáticas para outras épocas. Essas pessoas mudavam seus pontos de vista à medida que suas experiências exigiam novas adaptações e novos conhecimentos se tornavam disponíveis.

Proponho que a adesão resoluta às posições teológicas do passado ou a interpretação bíblica promovida pela direita adventista é incompatível com a Bíblia e com Ellen G. White. Ambos fazem acomodações para desenvolver o conhecimento e a ética de sua época. Os conservadores com frequência buscam validar a imutabilidade hermenêutica usando as palavras de Jesus: “Não pensem que vim revogar a Lei ou os Profetas […]. Nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra” (Mt 5.17-18, NAA). Mas o mesmo evangelho mostra Jesus expandindo o significado associado à Lei e aos Profetas: “Vocês ouviram o que foi dito”, ele os lembrava, “Eu, porém, lhes digo […]”. Essa nova abordagem exegética virou de cabeça para baixo as interpretações do conhecido código judaico, expondo preocupações e dando significados mais ricos a assuntos como punição capital, adultério, divórcio, juramento, justiça retributiva e amor ao próximo. 

Mas Jesus também ampliou o significado das Escrituras de maneiras inesperadas. Ele “desobedeceu” algumas leis codificadas para demonstrar a verdadeira intenção delas. Por exemplo, ele se recusou a sancionar o assassinato da mulher surpreendida em adultério, chegando a dizer: “Também Eu não a condeno” (Jo 8.11, NAA), uma posição que contradiz a prescrição da pena capital para o adultério (Lv 20.10). De modo semelhante, a lei estabelecida desde Moisés sancionava o assassinato por apedrejamento dos transgressores do sábado (Êx 31.14). No entanto, encontramos Jesus e seus discípulos passando por um milharal, colhendo e comendo espigas de milho, ações interpretadas no mundo judaico da época de Jesus como trabalho no sábado. Os fariseus protestaram e Jesus proclamou seu senhorio durante o sábado. Depois disso, temos uma noção melhor da observância do sábado, de modo que matar os violadores do sábado não é mais obrigatório na Bíblia ou na lei em qualquer país. 

Portanto, longe de endossar uma compreensão literal da “Lei e os Profetas”, Jesus indicou aos seus seguidores uma ética transcendente. Ainda assim, ele foi mais longe. Deixando claro que essa reconceitualização ética continuaria depois dele, Jesus disse aos Seus discípulos: “Tenho ainda muito para lhes dizer, mas vocês não o podem suportar agora” (Jo 16.12, NAA). Podemos fazer várias inferências a partir dessa declaração. Primeiro, podemos generalizar e concluir que a autorrevelação de Deus, ou a sua “verdade” (como dizia Ellen G. White), é progressiva. Mas no nível micro, Jesus parece sinalizar que não abordou todos os problemas éticos que existiam em sua época, em parte porque as pessoas não estavam prontas, não era o momento ou ele não queria sobrecarregar seus primeiros seguidores. Não foi por acaso que Jesus iniciou seu ministério no Ano do Jubileu, o período em que fardos paralisantes – dívidas e até pecados – são perdoados e as pessoas cansadas ​​recebem novo vigor para começar de novo. Dessa forma, Jesus lançou as bases para que seus verdadeiros seguidores continuassem o seu trabalho libertador. 

Assim, cada nova geração de cristãos deve procurar e lidar com as pestes que mancham a causa cristã. E, encontrando-as, eliminá-las, até que a morte delas seja tão completa que aqueles que vierem depois presumiriam que esses males nunca existiram. Aqui na Terra sempre haverá trabalho para o cristão que, assim como Cristo, reconhece nossas correntes e trabalha para quebrá-las. É por isso que cristãos progressistas de todas as gerações, motivados pelo exemplo de Jesus, defenderam as causas das pessoas vulneráveis e marginalizadas da sociedade, exemplificadas pela emancipação da escravidão e pelos direitos das mulheres. 

A escravidão não é nova. Não no sentido de novidade. Esse mal já existia em diferentes formas – durante a vida de Cristo e depois. Mas tornou-se nova para William Wilberforce e sua geração. Essas pessoas fizeram de tudo para que a escravidão fosse extinta, até que os britânicos a aboliram em 1833. Trinta e dois anos depois, os abolicionistas dos Estados Unidos, o maior mercado de escravos, alcançaram o mesmo objetivo com a 13ª Emenda. Quando a odiosa prática reapareceu em outra forma, vestida com as roupas legais de Jim Crow South, foi necessário outro visionário cristão que encontrou, na mesma Bíblia que os pregadores cristãos do Sul usavam para justificar e preservar essa perversidade, uma forma de apontar para uma ética humana superior. Uma ética que prevê ex-escravos e seus proprietários, seus filhos e os filhos de seus filhos, sentados à mesa, compartilhando juntos o mesmo pão. 

Assim como a escravidão, a discriminação contra as mulheres era endêmica no judaísmo bíblico do tempo de Jesus. Limitações arbitrárias foram impostas às mulheres simplesmente por terem nascido mulheres. Elas eram impedidas de tocar nas páginas da Torá ou estudar seus ensinos, tornando o sacerdócio uma competência exclusiva de homens. O consolo delas: a maternidade e a cozinha. Essa domesticação das mulheres tem suas raízes na aliança e no estabelecimento de Israel. Ao designar a circuncisão masculina como o único rito de passagem para o Deus de Abraão, os homens se tornaram guardiões privilegiados dos oráculos divinos, às custas do acesso irrestrito das mulheres a Deus. 

Até Jesus. Com frequência cristãos conservadores, especialmente os defensores da teologia da liderança masculina, argumentam que os apóstolos de Jesus eram todos homens, e que se ele quisesse mulheres no ministério, teria incluído algumas no grupo dos doze. Isso pode parecer plausível até que percebemos que esses doze eram todos pescadores do Oriente Médio, judeus e quase todos analfabetos – fatores delimitadores que não excluíram os homens do ministério cristão. 

De maneira significativa, Jesus quebrou algumas barreiras artificiais impostas às mulheres. Esquecemos que o primeiro evangelista de destaque foi uma mulher que, tendo provado da água viva de Jesus, não conseguiu reprimir o impulso de compartilhá-la com toda a cidade na qual vivia. “Venham comigo e vejam um homem que me disse tudo o que eu já fiz. Não seria Ele, por acaso, o Cristo?” (Jo 4.29, NAA). Os habitantes do local foram ver Jesus, e “muitos samaritanos daquela cidade creram em Jesus, por causa do testemunho da mulher” (verso 39). Isso antes que os doze apóstolos ou os 70 discípulos fossem enviados. E continuamos esquecendo que a mensagem da ressurreição – “Ele não está aqui, mas ressuscitou” (Lc 24.6, NAA) – foi dada pela primeira vez a um grupo de mulheres humildes, cujo relato foi rejeitado pelos discípulos como uma “história [que] pareceu absurda”, de maneira que “não acreditaram nelas” (Lc 24.11, NVT). Tanto a “ortodoxia bíblica” quanto a interpretação das Escrituras mudaram consistentemente com o tempo.

E o que dizer do início do adventismo? Será que nossos pioneiros sempre se mantiveram inabaláveis ​​em todas as posições anteriores? Eles eram “conservadores”? A história contesta a ideia de que nossos fundadores sustentavam rigidamente todos os pontos de vista teológicos anteriores. Na verdade, em várias áreas eles se mostraram pragmáticos, senão maleáveis. Por exemplo, na cristologia, nossa posição inicial era mais próxima do arianismo, a doutrina de que Jesus foi “gerado” pelo Pai em um momento da eternidade passada e, portanto, seria inferior ao Pai em todos os aspectos. Posteriormente mudamos para nossa posição atual, que endossa a Trindade. Também já acreditamos que a obediência aos Dez Mandamentos faz parte do processo de salvação. Mas, gradualmente, após a assembleia da Associação Geral de 1888, ocorrida em Mineápolis, onde a justificação pela fé foi destacada, nos afastamos desse entendimento, e agora entendemos que a referência ao “aio” (ARA) ou “guardião” (NAA) em Gálatas 3.23-25 inclui a lei moral. Essa não foi uma mudança pequena, mas Ellen G. White foi fundamental para ajudar como pivô. Em outras áreas, como a doutrina da “porta fechada” (que existiu durante poucos anos), nossos pioneiros inicialmente ligaram os eventos de 1844 ao “chamado final para a salvação”, insistindo em que a “porta da salvação estava fechada” para aqueles que rejeitaram essa mensagem. O mais próximo que Ellen G. White chegou de repudiar publicamente esse ensino foi admitir que essa era uma crença pessoal (Mensagens Escolhidas, v. 1, p. 74) e não algo que ela havia recebido em visão. Embora nunca tenhamos rejeitado esse entendimento completamente, depois de 1844 encontramos uma nova aplicação na doutrina do juízo investigativo e permitimos que o ensino da “porta fechada” simplesmente desaparecesse. 

Além de mudanças em posições doutrinárias, sustentamos posições que vão além das afirmações bíblicas. O vegetarianismo é um desses casos, mas vou me ater à escravidão, uma preocupação ética perene na Bíblia. O retrato da escravidão no Antigo Testamento é padronizado e expansivo, ao mesmo tempo representando toda a comunidade hebraica na escravidão egípcia. Após a emancipação, a escravidão foi aceita silenciosamente e chegou a ser mencionada em seu código mais sagrado, os Dez Mandamentos, em Êxodo 20. Mas no capítulo 21, a hesitação foi embora, sendo substituída pelo seu reconhecimento total à medida que foram estabelecidas normas para regulamentar a prática em expansão. No Novo Testamento, Paulo chegou mais perto de renunciar totalmente à prática ao dizer: “Assim sendo, não pode haver […] nem escravo nem liberto […]; porque todos vocês são um em Cristo Jesus” (Gl 3.28, NAA). Mas até ele se equivocou. Encontramos dez conselhos sobre o assunto em seus escritos: dois dirigidos a senhores de escravos e oito a escravos. Em geral, ele e todos os escritores do Novo Testamento, assim como seus antecessores do Antigo Testamento, pareciam mais acomodados, senão indiferentes, do que proibitivos dessas práticas sórdidas.

Vamos avançar para o início do adventismo. Ellen G. White tinha 34 anos quando a Guerra Civil Americana começou. Suas opiniões pessoais contra a escravidão já estavam registradas, mas o que chamou a atenção foi a força incomum das declarações sobre a escravidão que ela atribuía ao próprio Deus. Talvez seja exagerado concluir que jamais algum “profeta” foi tão categórico como ela em expressar o descontentamento de Deus com a escravidão, especialmente suas declarações sobre aqueles que toleravam a continuidade dessa prática. Mas outra declaração de Ellen G. White, escrita em 1864, é de tirar o fôlego. Segunda ela, quando a longa e terrível guerra se aproximava do fim, “Deus está punindo o Norte porque eles têm por tanto tempo tolerado a existência do amaldiçoado pecado da escravidão, pois à vista do Céu é um pecado da mais tétrica espécie” (Testemunhos Para a Igreja, v. 1, p. 339). 

Essa é provavelmente a descrição mais inequívoca da escravidão como pecado já atribuída a Deus por um “profeta”. O mais impressionante nessa declaração é que Deus puniria o Norte por sua duplicidade em tolerar a escravidão, mesmo quando o Norte estava derramando seu próprio sangue numa guerra que era dedicada, em parte, ao fim da escravidão. É somente quando reavaliamos nosso entendimento das Escrituras através de uma ética progressiva que podemos enxergar Deus condenando inequivocamente uma prática que ele tolerou no passado. A hermenêutica estática que é vista na Lição da Escola Sabatina deste trimestre é incapaz de explicar adequadamente a evolução do que Deus disse a respeito da escravidão, conforme Ellen G. White apresenta. O papel profético que atribuímos a Ellen G. White, e consequentemente o surgimento do adventismo remanescente pós-1844, só é possível se permitirmos possibilidades futuras fora de um cânon fechado. Até 1844, nada nas Escrituras parecia sinalizar para as comunidades cristãs que conceitos adventistas fundamentais como o juízo investigativo, as três mensagens angélicas, leis dominicais e o tempo de angústia podiam ser deduzidos das Escrituras como prenúncio da Igreja Adventista. Nós nos enxergamos nessas posições. Mas, tendo aberto espaço para nossa existência dessa maneira, não podemos agora fechar a porta para outras possibilidades futuras, insistindo que a interpretação bíblica está finalizada. 

Sempre haverá vários entendimentos bíblicos numa igreja tão diversa como a nossa. Essa diversidade garante que os membros irão ler o texto a partir de diferentes influências e panos de fundo pessoais. Nossa hermenêutica deve reconhecer e até mesmo aceitar essa dinâmica, porque ela permite uma igreja na qual um cientista nuclear e um camponês analfabeto, por exemplo, possam encontrar uma comunidade. Mas o esforço, por parte de alguns em nossa liderança conservadora, parece impor uma unidade, uma uniformidade, através da “leitura simples” que alcança apenas um entendimento. Eu entendo por que algumas pessoas querem fazer isso. Mas isso é contraproducente, porque enquanto os desinformados podem, por exemplo, encontrar consolo na ideia de que o mundo tem apenas 6 mil anos, os cientistas entre nós cuja formação lhes diz o contrário acabam ficando privados de um lar.