A Igreja Adventista tomou parte nas campanhas de propaganda ufanista da ditadura civil-militar brasileira, teve membros trabalhando para o governo, e atuou como legitimadora não-oficial do regime


“Amamos o Brasil porque amamos a Deus”, são os dizeres de um cartaz do Instituto Adventista de Ensino (IAE) fixado às vésperas do dia da Independência de 1972. Como de costume, no dia 7 de setembro, o clube de desbravadores marchou, compondo um movimento cívico em celebração da independência do Brasil. Nesse ano, contudo, o país vivia sob a liderança do general Emílio Garrastazu Médici, o terceiro presidente da ditadura militar. Foi o ano em que o partido de sustentação da ditadura, o ARENA, se colocou em quase todos os estados e prefeituras do país. 

Fonte: Foto da comemoração dos 150 anos de independência do Brasil. Disponível no Centro de Memória Unasp São Paulo.

Médici foi o responsável por inspirar a expressão “anos de chumbo”, dado o uso indiscriminado da força através de prisões, execuções e torturas. Esses anos foram difíceis para boa parte da população, como trabalhadores, indígenas e opositores do regime, pois o governo, além de censurar, prender e torturar, passou a investir massivamente em campanhas profissionais de propaganda, estimulando o “patriotismo” e o apoio à chamada “revolução de 1964”. A ditadura de Médici tinha um programa midiático fortíssimo para 1972, e esse interesse pela propaganda era inédito desde o golpe de 1964.  É nesses anos que surge a expressão veiculada pelo governo federal: “Brasil, ame-o ou deixe-o.”

Um dos pilares da manutenção do poder da ditadura era, sem dúvidas, o contrato invisível com setores da sociedade civil e, entre eles, igrejas, como a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD). Poder este que, em 1972, torturava e matava muito mais do que antes. Para alguns setores da sociedade, compor um acordo com o regime autoritário pode ser benéfico entre os pactuantes. Nesse sentido, a IASD, ou qualquer outro setor, pode absorver o sistema de valores do governo, ignorando os aspectos desumanos praticados por ele em nome da “neutralidade”. Ainda assim, é complexo avaliar o consentimento da sociedade frente a um regime autoritário. Em linhas gerais, os movimentos da igreja em direção à ditadura transitam entre o apoio ativo e a neutralidade benéfica, passando pela simpatia explícita ao governo. Apesar do comportamento adventista ser pretensiosamente neutro, ele ocorre para sustentação do regime ditatorial, pois acaba se beneficiando dele, o que naturalmente concorre para o enfraquecimento da resistência interna contra o mesmo. Por conta desses pactos, convencionou-se chamar a ditadura brasileira de “civil-militar”.

Política de chumbo no país do ferro

Para que a frase afixada nos murais do IAE faça mais sentido, precisamos consultar as páginas da História e tentar, rapidamente, respirar os ares de 1972. Nessa atmosfera, o medo era um sentimento generalizado, mas o inimigo não era palpável, como o coronavírus. O vírus que ameaçava a década de 1970 era menos real, mas muito popularizado: o comunismo

Anteriormente, o próprio governo de Getúlio Vargas, nossa primeira experiência ditatorial com flerte ao nazi-fascismo, também fabulava sobre um complô comunista para legitimar sua ruptura com a legalidade democrática, assim como sua concentração e permanência no poder. Para esses grupos, o perigo era mais do que um fantasma, e tinha o poder de “destruir o Brasil” no final da década de 1960 — algo semelhante ao que se prega atualmente sobre o “marxismo cultural” como ameaça à sociedade. Essa conspiração foi tão forte nos EUA, por exemplo, que na década de 1960 um casamento entre negros e brancos poderia ser considerado “prática comunista”, como lemos em letreiros de protestos racistas.

Em seu livro As Veias Abertas da América Latina, Eduardo Galeano oferece algumas pistas da inteligência que há por trás desse conspiracionismo distópico atual:

“Que futuro teria o Império sem o petróleo e os minerais da América Latina? […] E pelo ferro que compram do Brasil e Venezuela, os Estados Unidos pagam menos do que pelo ferro extraído em seu próprio subsolo.” 1

Em 1910, no Congresso Internacional de Geologia em Estocolmo, os empresários estadunidenses estudaram a geografia do ferro. Puderam mapear os países mais promissores, e o Brasil talvez fosse o maior entre eles. Em 1948, a embaixada norte-americana criou um novo cargo no Brasil, o “adido mineral”, que de tanto trabalho teve que ser duplicado. Quatro anos depois, em 1952, os EUA fecham um acordo militar com o Brasil que o proíbe de vender matérias-primas, como o ferro, para países socialistas. Getúlio Vargas quebra o acordo, e em 1953-1954 vende ferro para Polônia e a Tchecoslováquia, já que pagavam mais pelo produto que os EUA. Essa atitude seria uma das causas da trágica morte do presidente, após pressão dos setores militares alinhados com os EUA.

Em 1957, a Hanna Mining Co. comprou, por 6 milhões de dólares, a maioria das ações da empresa britânica Saint John Mining Co., responsável pela extração de ouro em Minas Gerais desde o Império. Era o negócio do século, e por ele as empresas estadunidenses eram capazes de qualquer coisa, inclusive intensificar  agressivamente a influência no governo brasileiro a partir da década de 1960. Os diretores, advogados e assessores da Hanna eram também membros de alto nível do governo brasileiro. A pressão se intensificava para que fosse reconhecido à Hanna o direito de explorar o ferro que pertencia ao Estado.2

Em 1961, o presidente Jânio Quadros assinou um documento que cancelava as autorizações ilegais estendidas em favor da Hanna e restituía as jazidas de ferro de Minas Gerais ao domínio nacional. Quatro dias depois, Jânio renuncia. Após seu afastamento, Leonel Brizola promove um levantamento popular em Porto Alegre, responsável por frustrar os planos dos militares, que já apelavam ao “fantasma comunista” para tentar assumir o poder. 

Em resposta, em 1962, o embaixador dos EUA, Lincoln Gordon, envia uma mensagem ao presidente João Goulart, protestando contra a posição do governo brasileiro em relação à empresa norte-americana. Dois anos depois, 31 de março de 1964, marchando a partir de Minas Gerais, o golpe militar desponta. A partir de então, os homens da Hanna passaram a ocupar o governo brasileiro, seja pela vice-presidência do país ou três de seus ministérios. No dia 31, o jornal Washington Star publicava o seguinte editorial: “Eis aqui uma situação em que um bom e efetivo golpe de Estado, no velho estilo, de líderes militares conservadores, pode servir aos melhores interesses de todas as Américas”.3

Lincoln Gordon visitava com grande vigor e euforia os quartéis brasileiros. Alguns dias depois, pronunciou um discurso na Escola Superior de Guerra dizendo que a vitória de Castello Branco “poderia ser incluída, ao lado da proposta do Plano Marshall, do bloqueio de Berlim, da derrota da agressão comunista na Coreia e da solução da crise dos foguetes em Cuba, como um dos mais importantes momentos de mudança na história mundial de meados do século XX.”4

Por decreto, em 24 de dezembro de 1964, como um presente de natal, a Hanna recebe o ferro, concessão para explorar tudo o que quiser; como também para construir uma ferrovia, e por fim um porto particular próximo ao Rio de Janeiro. Ela fez um consórcio com a já conhecida Bethlehem, consórcio esse proibido nos EUA, mas bem comum no Brasil, para explorar o ferro presenteado pela ditadura.

Todo esforço anticomunista; criação de fantasmas; invenção de inimigos; divulgação do medo; tem por detrás um complexo sistema de interesses e valores, que envolvem sobretudo empresas e governos dos EUA. É exatamente o interesse na exploração das riquezas naturais latino-americanas e na subserviência de seus governos que se desenham os verdadeiros contornos do golpe.5 Os militares inventaram um patriotismo que, na verdade, simboliza justamente o contrário do que propunha. Representavam as elites brasileiras, a burguesia nacional: entreguista, colonial, atrasada, extrativista, periférica e exploradora. 

Estamos no período de 1964-1983, quando um amplo sistema carcerário foi instalado no país. A sociedade era vigiada, censurada e fotografada. O governo militar, para viabilizar a barbárie, e defender os interesses americanos, instalou 242 centros secretos de detenção e tortura, a maioria mantidos pelas próprias Forças Armadas. Entre eles, o CODI (Departamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna) e o DOPS (Departamento de Ordem Política Social).6

Depois dessa rápida viagem, voltamos para a semana da Independência de 1972. Esse ano é particularmente importante para entender o ambiente que o governo se esforçava para imprimir, recebendo o apoio da IASD em sua empreitada.

“Raiou a liberdade no horizonte do Brasil”

Escute a música “Hino da Independência”, do Coral Carlos Gomes, enquanto lê o texto.

Não podemos desassociar as festas de 150 anos da independência do momento que se convencionou chamar “milagre brasileiro”. Os índices de crescimento econômico são de fato surpreendentes. Num curto espaço de tempo, as taxas saltaram de 1%, em 1963, para 10%, em 1968, e 14%, em 1973. A indústria aparece como carro-chefe, registrando 14% ao ano, sendo puxada pela automobilística, que marca 25,5% ao ano, sendo superada apenas pela de eletrônicos, que alcança 28% ao ano.7 

Contudo, esse milagre foi construído a partir de um imenso endividamento com o capital externo de países diretamente envolvidos com o golpe de 1964, de modo que, ao fim da ditadura, o país tinha uma dívida externa de cerca de 1,2 trilhões de dólares, o que equivalia a 53,8% do PIB brasileiro na época. O “milagre econômico” também aumentou a concentração de capital, a pobreza e a desigualdade no país; as medidas repressivas do regime permitiam que patrões achatassem ou congelassem o salário de seus funcionários sem quaisquer represálias, por exemplo. 

Por conta desse contexto, os militares elaboraram uma estratégia nostálgica como propaganda do regime: à semelhança da Independência do Brasil, protagonizada por D. Pedro I em 1822, comemora-se em 1972 os 150 anos do evento como uma espécie de “continuidade” da independência — primeiro política, com D. Pedro I, e agora econômica, com a conquista dos militares. Na virada de 1971 para 1972, Médici aproveita o momento para endereçar uma mensagem à sociedade brasileira. Pela televisão e rádio, o otimismo programado fica evidente:8

“A nação tem hoje a tranquila consciência de sua grandeza, em termos realistas, possíveis e viáveis. Temos agora a certeza de que o eterno país do futuro se transformou, afinal, no país do presente.” 

A mensagem do presidente autorizava o otimismo no Brasil como um projeto de poder. Não uma utopia, mas realidade. Não para o futuro, mas para o presente. O milagre brasileiro era projetado, propagandeado, e virtualmente vivido através das estratégias do regime. Quando as luzes de 1971 foram apagadas, não só o ano, mas tudo que era velho ficava para trás: o milagre foi inevitavelmente associado aos 150 anos da independência do Brasil (1822-1972). Isto é, o “Sesquicentenário da Independência”, que ganhou as rádios, a televisão, os jornais e ruas do país. O discurso patriótico girava entre D. Pedro I, evocado como herói da independência, Tiradentes, como mártir, e a ditadura, como herdeira natural e responsável por concluir aquilo que os primeiros começaram. 

Um cortejo de proporções nacionais era esperado naquele ano; os restos mortais do imperador voltariam ao seu lugar. O Brasil receberia, mais uma vez, D. Pedro I. Seu corpo, vindo de Portugal, viajaria para todas as capitais brasileiras, assegurando o projeto de integração nacional do regime. O espetáculo estava armado, e grupos inteiros da sociedade se manifestaram para dar sua contribuição às festividades. Ainda em 1971, o governo criava a Comissão Executiva Central (CEC), uma coordenação de todas as atividades festivas programadas para o próximo ano. Praticamente todos os gabinetes da administração pública compunham o CEC, além da Associação de Emissoras de Rádio e TV e da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).9 

A CEC representava bem a capacidade de articulação dos setores civis pelos militares. Suas principais tarefas eram definir datas, personagens e acontecimentos que seriam recuperados e associados à prosperidade econômica e social proporcionada pelos militares — ainda que essa prosperidade tivesse razões outras, e fosse limitada a uma parcela bastante reduzida da população.

Apesar de alguns eventos terem despontado antes do dia 21 de abril, a largada é dada no dia de Tiradentes. António Jorge Correia, presidente da CEC, articula em todas as cidades do país os “Encontros Cívicos Nacionais”. Para ele, o evento é

“Inédito no mundo, com a mobilização da população de todo o país para, numa mesma hora, em praças públicas, escolas, hospitais e até penitenciárias ouvir a saudação e chamamento do presidente Médici […] e cultuar a bandeira entoando o Hino Nacional.”10

Entre abril e dezembro, a ditadura desfilou pelas avenidas do Brasil. A grande festa teve duração de quase seis meses. Além das viagens de D. Pedro I, a ditadura era representada pelas figuras de seus presidentes: Castello Branco, Costa e Silva e Médici, que estampavam os selos comemorativos do Sesquicentenário e dos aniversários da “Revolução de Março”.11 Na escala regional, a Independência e a “revolução” eram celebradas pelas associações de bairros, esportivas, religiosas, colégios, de maneira a impregnar o cotidiano das pessoas. 

A viagem de D. Pedro I precisava de um fim apoteótico. No derradeiro 7 de setembro, após um velório de cinco meses no qual a urna de D. Pedro I visitou, de norte a sul, quase todas as capitais com grande euforia, o Brasil estava em clima de final de copa. Pela primeira vez, um presidente se deslocava da Guanabara para a avenida Paulista. Em São Paulo, capital do “Brasil livre” do Ipiranga, também representante do “milagre” e do Brasil moderno, a multidão poderia ser contada em meio milhão de pessoas. 

Em todas as capitais, cidades menores ou maiores, as paradas e desfiles eram multiplicados. A marcha na capital paulista era de 18 mil homens, enquanto no céu 82 aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) acompanhavam o desfile. Das janelas dos prédios liam-se frases como: “Avante, Brasil, Avante”; “Brasil no ano do Sesquicentenário” e “Brasil, conte comigo.” A historiadora Janaina Martins traduz a euforia daquele ano nas seguintes palavras:  

O momento alto da festa e que finalizaria a longa jornada de D. Pedro, em seu retorno ao Brasil, foi a cerimônia de inumação e seus despojos, realizada no dia 6 de setembro, à qual se seguiram os tradicionais desfiles do dia 7. Nesse sentido, a emoção demonstrada pelos paulistas diante da urna do Imperador explicava-se, em parte, pelo fato de estarem participando da apoteose de uma grande festa, iniciada cinco meses antes e que, então, vivia seu grand finale.”12 

No contexto de comemoração dos 150 anos da independência, e coroação do “milagre econômico” promovido pelos militares, a IASD estava em sintonia com a propaganda ufanista dos militares. É justamente no dia 6 de setembro, no coração dos acontecimentos, que a IASD aparece com destaque. A Revista Adventista orgulhosamente imprime, na capa da edição de dezembro daquele ano, uma imagem do Coral Carlos Gomes se posicionando como um mosaico em “150”, aos pés do Monumento à Independência no Ipiranga em São Paulo. No rodapé podemos ler:

“Sesquicentenário da Independência – No dia 6 de setembro, diante do monumento do Ipiranga, em S. Paulo, no ato de colocação da urna contendo os despojos de D. Pedro I na cripta, o Coral Carlos Gomes, com 10 coros, abrilhantou a solenidade, que contou com a presença de S. Excias, o Presidente e Vice-Presidente da República, o Governador de S. Paulo, o Primeiro Ministro de Portugal e outras altas autoridades.”

Fonte: Capa da Revista Adventista, dez., 1972.

O Coral não estava cantando em um desfile de desbravadores comum. Também não estava em qualquer festa da Independência. A IASD, através de seu Coral, participava da coroação do maior projeto midiático e de propaganda da ditadura. E dava o suporte cultural às linhas desenhadas por um projeto fascista de poder. Esse suporte cultural vai além da apresentação no ápice do movimento de 1972. Naquele ano, o mesmo coral, Carlos Gomes, orquestrado pelo maestro Flávio Araújo Garcia, referência musical no meio adventista, produziu um disco com a marca do IAE, gravando hinos pátrios. A capa do disco contém a mesma foto da capa da Revista Adventista de dezembro de 1972: o Coral, posicionado aos pés do monumento, formando o número 150. Na contracapa, a bandeira do Brasil cobre metade do espaço. Pequenos desenhos cobrem o espaço deixado pela bandeira. Com o fundo azul, estão desenhados uma espécie de plataforma industrial; uma máquina agrícola e duas roldanas industriais. É possível que esses elementos representem a ideia daquilo que a ditadura estava oferecendo: o “milagre econômico” brasileiro. No canto, o símbolo do IAE, em que as iniciais do Instituto aparecem dispostas em torno de uma cruz.

Fonte: Capa do disco “Coral Carlos Gomes”.
Fonte: Contracapa do disco “Coral Carlos Gomes”.

O lado A do disco possui as seguintes faixas: (1) Hino Nacional Brasileiro; (2) Hino à Bandeira Nacional; (3) Hino à Independência; (4) Hino à Proclamação da República; (5) Choro do Luar; (6) Azulão; e (7) Canção do Marinheiro. O lado B: (1) Suíte Integração; (2) Canção do Expedicionário; (3) Jacaré tá no Caminho. Esse repertório foi usado em apresentações públicas do Coral ao longo daquele e dos próximos anos. A canção “Suíte Integração”, resume o espírito do momento: 

“Paraíba masculina, mulher macho, sim senhor. […] Ó Minas Gerais! Quem te conhece, não esquece jamais. Quer viver os sonhos lindos que eu vivi? Venha ver as maravilhas de Guarapari! […] Linda cidade, eu vou mostrar: Rio de Janeiro, eu gosto de você. Gosto de quem gosta deste céu, deste mar, dessa gente feliz. Gente feliz que trabalha, que anda, que corre, que luta e produz pra nação. Ê Ê Ê, São Paulo! Ê, São Paulo! São Paulo da garôa, São Paulo terra boa. […] São, São Paulo, meu amor. Meu amor, Brasil.”

Esse repertório foi usado em apresentações ao longo de 1972, e das comemorações do Sesquicentenário, dentre as quais o Coral fez parte. A Revista Adventista de Janeiro de 1973 ainda escreve sobre as apresentações do ano anterior:

“Em São Luiz (MA) e Manaus (AM), o Coral Carlos Gomes participou das comemorações do Sesquicentenário da Independência, cantando, segundo programa oficial previamente traçado, à chegada dos despojos de Dom Pedro I naquelas capitais. Cinco canais de TV transmitiram a mensagem cantada do Carlos Gomes. Em Manaus, a TV Cultura, Canal 2, transmitiu a audição para todo o Brasil, via Embratel, e gravou o Hino Nacional a quatro vozes — um dos números mais apreciados do repertório do coral.” 

Após entender o contexto daquele ano, as ruas tomadas pelas cores verde-amarelas e a parceria civil-militar para legitimar a ditadura, a frase afixada nos murais do IAE ganha novas proporções: “Amamos o Brasil porque amamos a Deus”. Sabemos que “amor”, “Deus”e “pátria”, não estão juntos sem motivo. Não por acaso, foi essa mesma pátria, militarizada, que em 1968 autorizou o funcionamento da Faculdade Adventista de Enfermagem (FAE). No ano seguinte, em 1973, a Faculdade Adventista de Educação (FAEd) receberia sua autorização, assinada pelo General Médici e pelo Ministro da Educação, Dr. Jarbas Passarinho.13 Uma mão lava a outra na relação entre a IASD e os militares.

A década de 1970 é a de maior aproximação cultural entre a IASD e a ditadura. Enquanto o Estado buscava solidificar o traço do cidadão comportado, ordeiro, que defende e ama a pátria, a IASD já possuía um modelo para oferecer. As publicações da Revista Adventista14 ilustram, em diversas edições, o sentimento orgulhoso dessa aproximação, reforçando a ideia de que uma das dimensões do cristianismo prático é o inevitável amor à pátria, desenvolvendo assim uma espécie de “patriotismo religioso”. Em 1972, outro evento registra a importação moral do regime aos corredores eclesiásticos. Os detalhes de “Manaus 72” são importantíssimos para compor o quadro geral da história. A mesma revista, em dezembro de 1972, conta a história do evento:

“Grande trabalho de relações públicas, utilizando-se da presença do Coral, do Quarteto, e convidando autoridades ilustres para proferir palestras sobre temas da atualidade e de interesse nacional. O Cel. Floriano Pacheco, Superintendente da Zona Franca de Manaus, foi um dos brilhantes oradores, durante a hora da Pátria. O Dr. Osias Monteiro, da Secretaria de Planejamento do Governo, falou sobre a Amazônia legal. A Profa. Eurides Brito da Silva, também ocupou a tribuna com raro brilhantismo. O Dr. João Batista Clayton Rossi falou sobre o papel da igreja no combate aos tóxicos. […] Cada dia prestava-se uma homenagem especial a um vulto ilustre de nossa pátria. Eis os homenageados: Exmo. O Sr. Presidente da República, Gal. Emílio Garrastazu Médici; D. Pedro I; Edson Arantes do Nascimento (Pelé), pelo exemplo como jovem abstêmio e que não faz propaganda de produtos nocivos à saúde; Eurides Brito da Silva, pelo seu exemplo de fiel adventista mesmo no exercício de elevadas funções no cenário nacional. […] Fica, igualmente, o desafio permanente a todos os jovens, para que permaneçamos leais aos compromissos assumidos com Deus, com a Igreja e com a Pátria.”

Dentre os nomes citados, a professora Eurides Brito da Silva foi uma das homenageadas. Ela atuou durante todo período militar nas instâncias da administração pública para a educação; também foi deputada federal já nos anos democráticos, atravessando partidos como o PFL (herdeiro do ARENA), até o PMDB (herdeiro do MDB). A Revista Adventista15 afirma que ela era uma adventista fiel, mesmo “no exercício de elevadas funções no cenário nacional.” 

Em 2019, a então deputada foi condenada em segunda instância a oito anos e quatro meses de prisão por corrupção passiva, em decorrência da operação “caixa de Pandora”, deflagrada em 2009. É evidente que a igreja não é responsável por fiscalizar a conduta de adventistas no governo, mas, nesse contexto, não se pode dizer que os adventistas eram isentos, apolíticos ou apartidários. O nome da IASD estava sequestrado pela exaltação e apoio ao establishment militar.

Édson Arantes do Nascimento, o Pelé, também compôs o hall de homenageados por Manaus 72. Parte do esforço do CEC era associar os campeões de 1970 (Copa do Mundo de Futebol, México 70), ao momento pretensiosamente vitorioso e otimista que vivia o Brasil. A seleção canarinho, o jingle “Pra Frente Brasil”, simbolizava esse país que aparentemente dava certo. Assim como o Pelé, outro homenageado pela IASD era Dom Pedro I. Como já vimos, D. Pedro era o trunfo da ditadura para 1972. A IASD usava os personagens eleitos pelo CEC para refletir uma homenagem em seu evento direcionado à juventude.

Em foto, os fiéis adventistas aparecem segurando bandeirinhas do Brasil, o verde-amarelo domina o evento. Os preletores de Manaus 72 são quase todos oficiais do governo; e diariamente o evento reservou a “hora da pátria”, em que algum personagem era homenageado. Entre eles, talvez uma das figuras mais agressivas da ditadura, responsável direto por crimes, assassinatos e torturas; talvez nossa experiência mais próxima de um regime fascista: o  presidente dos “anos de chumbo”, Médici.

Fonte: Revista Adventista. Dezembro de 1972. Disponível em: https://acervo.cpb.com.br/ra

Além disso, as palavras “Deus”, “igreja” e “pátria” aparecem com frequência na mesma frase. O evento é um exemplo de como a IASD interpretava o mundo político durante a ditadura militar: com as lentes de Médici. São complexas as evidências de parcerias firmadas entre a instituição e os militares. O discurso ufanista é constantemente abraçado pela IASD, que se compromete como suporte cultural, oferecendo ao regime o jovem livre dos tóxicos; comportado e ordeiro; que ama Deus, a família e a pátria.

“Afeto que se encerra em nosso peito juvenil”

Escute a música “Hino à Bandeira Nacional”, do Coral Carlos Gomes, enquanto lê o texto.

Em 1976, nos anos de Ernesto Geisel — quarto presidente da ditadura militar —, a parceria entre a IASD e a ditadura continuava a todo vapor. No Dia das Mães do mesmo ano, a rede Globo ofereceu à instituição 30 segundos nos horários comerciais para veicular a campanha “Palmas para você, mamãe”:

“O espaço na TV, que custaria Cr$ 81.000,00 cada inserção, foi cedido gratuitamente pela direção da emissora. A campanha foi idealizada pelo departamental de Jovens da União Este-Brasileira. Além das mensagens na TV, 350 ‘outdoors’ foram colocados nas capitais existentes no território da UEB e milhares de cartazes em dezenas de cidades. A campanha culmina no segundo domingo de maio com a juventude adventista em massa nas ruas realizando homenagens pessoais. […] A finalidade da campanha é gravar bem a imagem do jovem adventista e conseguir uma abertura evangelística em todas as camadas sociais. […] Na tarde do segundo domingo, será feita homenagem à esposa do Governador do Rio de Janeiro. Simultaneamente será tentada a mesma homenagem à primeira dama do país, Sra. Geisel, em Brasília.”

Já na semana da independência, no dia 7 de Setembro de 1976, não só a Revista Adventista , como também os jornais O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde, assim como as redes Tupi e Globo, trazem em suas matérias a apresentação do coral de adolescentes do IAE-SP ao presidente Ernesto Geisel: “Coral de Adolescentes Canta Para o Presidente”, é o título da matéria adventista.

“Às 17 horas e 45 minutos do dia 6 de setembro, véspera do Dia da Pátria, o Palácio do Planalto, em Brasília, presenciou um dos mais comoventes espetáculos artísticos até hoje realizados naquele palácio presidencial. O Coral de Adolescentes do Instituto Adventista de Ensino, de São Paulo, sob a regência do maestro, professor Gerson Pires de Araújo, e da pianista professora Eunice Marquat Garcia, apresentava-se para prestar homenagem a Sua Excelência, o Presidente da República, General Ernesto Geisel. Usando um uniforme de cores atrativas e ostentando a faixa verde-amarela, símbolo da República Federativa do Brasil, o Coral cantou e encantou. Cantou com entusiasmo, técnica, confiança e conhecimento. Encantou pela simpatia que irradiava de todos os companheiros.”

Esse é o preâmbulo da matéria da Revista Adventista, que segue trazendo a repercussão na imprensa: 

“O jornal ‘O Globo, edição do dia 7, em sua terceira página, publicou sob o título ‘Adventistas oram para que Presidente tenha uma boa viagem ao Japão”, longa matéria da qual destacamos o seguinte: ‘O Presidente Geisel ouviu ontem uma prece em sua intenção, feita por um dos integrantes do Coral de Adolescentes do Instituto Adventista de Ensino de São Paulo.”

Fonte: O Globo, 07 de Setembro de 1976, página 03. Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/busca/?busca=adventistas+oram

A matéria é apoteótica. O palácio recebe um dos “mais comoventes espetáculos” realizados até aquela data. Além disso, o coral está ali não apenas para homenagear a pátria, mas “para prestar homenagem a Sua Excelência, o Presidente da República, General Ernesto Geisel.” Na reportagem do Globo, o título é aquele anunciado pela Revista Adventista. Ela inaugura suas linhas com as seguintes palavras: 

“Além das quatro músicas interpretadas, os membros do Coral fizeram saudação a Geisel, salientando a satisfação do grupo pela oportunidade de ser recebida pelo Presidente, e agradecendo pelos benefícios que ele vem prestando ao Brasil, ‘nesta hora em que o País passa por dificuldades, sobretudo de natureza econômica.’”

Junto com os Ministros dos gabinetes Civil e Militar, o Presidente ouviu a oração e aplaudiu ao fim de cada música interpretada, entre elas ‘Amo-te, Brasil’, a ‘Oração de São Francisco’ e ‘Haja Paz na Terra’”. O Jornal do Brasil, trouxe uma nota menor, sem foto:

“No final da tarde de ontem, o Presidente Geisel foi homenageado pelo coral do Instituto Adventista de Ensino de São Paulo que, depois de cantar as músicas ‘Amo-te meu Brasil, Oração de São Francisco de Assis e Paz na Terra,’ recitou um poema agradecendo a oportunidade de homenagear o Chefe do Governo na Semana da Pátria.” No mesmo ensejo da nota, o jornal conclui: “O Ministro da Marinha, Almirante Azevedo Henning, baixou ordem-do-dia alusiva à Independência do Brasil.” 

Na sequência, o jornal transcreve a nota, que visita o golpe de 1964 nas seguintes palavras: 

“Fiel às suas tradições, a Marinha, integrada com o Exército e a Aeronáutica, pôs em 1964 um paradeiro aos desmandos de uma minoria que, de forma solerte e insidiosa, buscava impor um regime contrário à índole e às aspirações do nosso povo.”

Em resposta à Zelota, o Dr. Gerson Pires de Araújo, atualmente coordenador do Curso de Bacharelado em Teologia no Centro Universitário do Instituto Superior de Teologia Aplicada (UNINTA), afirmou que houve “amplo desenvolvimento” do país no período da ditadura, apesar da provável existência de “inocentes” entre os “sacrificados” pelo  regime. Sua visão desenvolvimentista expressa os ideais que os militares comunicaram à população nos períodos de chumbo; mesmo que indiretamente, considera como “sacrifício” os assassinatos perpetrados pelo regime.

O professor também explicou que as apresentações do coral a Geisel — conforme seu relato, o coral também se apresentou para o general na inauguração de uma agência do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS, atual INSS) em São Paulo, no dia 19 de novembro de 1976 — foram iniciativas evangelísticas para com as autoridades constituídas. Mesmo “discordando em seu íntimo” dos métodos violentos empregados pela ditadura, Gerson Pires ressaltou que essa discordância não se traduzia em reprovação pública, e que sua apresentação para o General não representava apoio ao governo.

Fonte: Semana de História do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP), campus Engenheiro Coelho (EC),  intitulada “1964: 50 anos da instauração do regime civil-militar no Brasil”. Apresentação feita no dia 25 de agosto de 2014.

Em detrimento da “neutralidade” da IASD diante da situação política do país, a Revista Adventista ainda demonstrava os resultados duradouros do forte investimento em propaganda e otimismo realizado no governo antecessor de Médici, agora transferido em palavra e ação ao governo Geisel. Em outubro de 1976, a revista publica o seguinte texto:

PATRIOTISMO ADVENTISTA ENCANTA UBERLÂNDIA 

Sete de setembro. Dia de vitórias para a Igreja Adventista em Uberlândia, MG. Aproximadamente cem jovens e juvenis, rigorosamente uniformizados, desfilaram para 40 mil assistentes. No desfile pátrio, em que participaram colégios, entidades de classe e de serviço, contingentes militares, etc, a Igreja Adventista foi a única organização religiosa a se apresentar. Quarenta desbravadores uniformizados, lideraram a representação conduzindo grande escudo do clube e uma faixa “Somos um Brasil que vai pra frente” . Quatro desbravadores em trajes especiais caracterizaram quatro das muitas atividades do clube. A pombinha-símbolo, em madeira, com quase dois metros, e duas placas, uma de cada lado com seis metros de comprimento cada uma com a inscrição Jovens Adventistas do 7.° Dia e jovens portando letreiros verde-amarelos destacavam a filosofia de vida dos adventistas: “Amamos a Deus”, “Não Fumamos” , “Não Bebemos”, “Não Usamos Tóxico”, “Amamos a Pátria”.

No evento, a IASD era a única organização religiosa a marchar. Como se estivesse — de forma nostálgica — ainda servindo ao programa da comissão executiva de 1972. Os dizeres das faixas carregadas pelos adventistas estão alinhados com aqueles do Brasil como país do presente, que “vai para frente”. 

Estavam forjados os elos de chumbo entre Deus e a pátria, erguidos como troféu pelo “modelo perfeito” de jovem aos olhos do regime: obedientes acima de tudo, jovens saudáveis que adoram a Deus e a seu país. Ao passo que vendia esse modelo, a IASD comprava a imagem de nação próspera fornecida pelo governo e a replicava em suas faixas, marchando com os militares, que escreviam, com o sangue das vítimas, os dizeres de um Brasil inventado por eles e aceito por nós.

“Irmãos, não tiranos hostis”

Escute a música “Hino à Proclamação da República”, do Coral Carlos Gomes, enquanto lê o texto.

O General João Batista Figueiredo foi o último presidente militar. Apesar da ditadura aproximar-se de seu fim, o governo seguia atuando na ilegalidade: mesmo com aparência mais branda, prisões, censuras e torturas faziam parte das operações corriqueiras do regime. Nesse novo contexto, a IASD continuava a estreitar seus laços com o governo federal, tendo como âncora um de seus representantes mais ativos entre os militares: o Procurador da República João Batista Clayton Rossi. 

Em novembro de 1967, a Revista Adventista faz sua primeira referência a Rossi, nos anos militares: 

“O Dr. João Batista Clayton Rossi, advogado adventista de Brasília, foi incansável, usando de seu prestígio e dinamismo, localizando pessoas-chave dentro das repartições e explicando-lhes o nosso problema. Finalmente, o prazo foi prorrogado, e dobrada agora é a nossa responsabilidade. Temos um prazo de 2 anos para o término da obra.” 

A matéria explica os desafios que a organização encontrava para a construção da Igreja Adventista do Plano Piloto. O terreno era localizado na Avenida L-2, tinha 25.000 m2, sendo seu valor estimado em NCr$ 300.000,00. “O terreno onde estamos construindo a Igreja Adventista do Plano Piloto em Brasília, foi uma doação do Governo à União Sul-Brasileira.”

Anos atrás, em 1972, no evento já citado “Manaus 72”, Rossi palestra sobre o papel da igreja no combate aos tóxicos e é personagem importante na aproximação da IASD com os oficiais do governo presentes. Em 1976, novamente ao lado da Profa. Eurides da Silvia, Rossi é um dos mais citados pela Revista Adventista em julho, pela inauguração da IASD em Brasília, da qual futuramente será membro e ancião. Na mesma edição, existe uma nota intitulada “Agradecimento ao Governo Brasileiro”, que encerra a entrevista com Rossi dizendo: 

“A atenção do Governo em favor dos Pastores Berg e Clajus faz crescer ainda mais a nossa admiração e respeito por aqueles que conduzem nosso País. Que Deus abençoe as autoridades constituídas do Brasil.”

As aproximações com os militares continuaram durante o governo Figueiredo, para o qual o Dr. Clayton Rossi também trabalhou. No dia 19 de novembro de 1979, o Coral Jovem do IASP (atual UNASP-HT) se apresentou para o Gen. Figueiredo em uma audiência particular, em comemoração ao Dia da Bandeira. Seu regente era o ainda jovem Eli A. R. Prates, que posteriormente fundaria o grupo musical adventista Prisma Brasil. Apenas dois dias depois, Clayton Rossi visita o Gen. Figueiredo com outros convidados, como o então deputado adventista Igo Losso (ARENA). O encontro é narrado pela Revista Adventista de Janeiro de 1980:

“Na quarta-feira, dia 21 de novembro, um grupo composto de 8 pastores e 2 leigos (Dr. João Batista Clayton Rossi e Deputado Federal Igo Losso), visitou o Presidente da República, General João Figueiredo. ‘Para mim é uma grande honra receber pessoas tão puras quanto os senhores. Até me sinto melhor diante de homens como os pastores adventistas.’ […] O presidente estava descontraído, ao contrário do que se esperava. Falou demoradamente sobre seus anseios como governante e reafirmou seu propósito de ajudar o povo em suas lutas e sofrimentos. Ao final, uma coleção de livros da CASA foi entregue ao presidente, que disse: ‘Vou lê-los, e espero dormir mais tranquilamente.'” 

De fato o presidente, que chefiava o Serviço Nacional de Informações (SNI) antes de tornar-se presidente, tinha muitos motivos para ter um sono pertubado. A matéria segue: “Na ocasião, S. Excelência ouviu de um dos visitantes, palavras de agradecimento em nome de todos os pastores e obreiros adventistas, pela aprovação da lei que beneficia os religiosos no que respeita ao INPS.” 

Ainda em 1979, dez dias antes do relato acima, em 19 de novembro de 1979, uma foto registra o momento em que o coral jovem do IASP, comandado pelo seu regente Eli Prates, se apresentou ao general.

Fonte: Semana de História do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP), campus Engenheiro Coelho (EC),  intitulada “1964: 50 anos da instauração do regime civil-militar no Brasil”. Apresentação feita no dia 25 de agosto de 2014.

Em resposta à Zelota, o Dr. Eli Prates, atualmente Diretor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão e professor do ensino superior do UNASP-HT afirmou que a visita do Coral ao General Figueiredo foi uma iniciativa evangelística e apolítica, e que faria o mesmo por Lula, Boulos ou Bolsonaro. Segundo ele, a ocasião tocou profundamente o General Figueiredo, que alongou a visita para além do programado em sua agenda e estava visivelmente emocionado ao final dela. 

O professor citou Romanos 13 para justificar a deferência a uma autoridade “instituída por Deus”. Quando questionado sobre os paralelos de tal postura com a do Pr. Adolfo Minck, na Alemanha nazista, o professor desconversou: “Não vamos trabalhar com suposições.”. Ele também esclareceu que a visita do coral foi uma iniciativa da Profa. Eurides Brito em conjunto com o Dr. Wilson Jorge Rossi, irmão do já falecido Dr. João Batista Clayton Rossi. De acordo com Eli Prates, Wilson Rossi ainda o teria abordado recentemente para tratar de uma possível visita de grupos musicais adventistas ao atual presidente, Jair Bolsonaro (sem partido).

Wilson Rossi, atualmente ancião e “comendador” da igreja do UNASP-SP, foi funcionário público durante o regime militar, presidindo o INPS de SP à época da visita de Geisel, e tem frequentado as Assembleias Gerais (AG) da Igreja Adventista desde 1962, participando de onze delas. Wilson se recusou a receber as perguntas da Zelota senão pessoalmente, algo inviável no atual momento da pandemia, e cordialmente nos estendeu um convite para acompanhar grupos musicais adventistas numa possível apresentação futura ao presidente Bolsonaro.

Ele recebeu o título de cidadão paulistano pela Câmara de Vereadores da cidade, no projeto de decreto legislativo 20/90, lido em 7 de novembro de 1990. Anexo ao documento da Câmara está a extensa de atividades estudantis de Rossi. Entre as inúmeras honrarias, medalhas e titulação, destacamos alguns parágrafos, importantes para a composição de todo período até agora destacado. 

  • Membro participante do Ciclo de Estudantes sobre Segurança Nacional e Desenvolvimento realizado pela Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, em São Paulo, de 04 de julho à 16 de outubro de 1974. 
  • Candidato à Câmara Federal por São Paulo, nas eleições de 15 de novembro de 1978. Legenda: Aliança Renovadora Nacional. (ARENA)
  • Suplente de Deputado Federal, diplomado pelo Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, em novembro de 1968. 
  • Membro da Comitiva do Sr. Vice-Governador do Estado de São Paulo em visita oficial ao Estado da Bahia, 1972. 
  • Hóspede Oficial da Prefeitura de Salvador nas festividades comemorativas do Sesquicentenário da Independência do Brasil. 
  • Convidado para ser Chefe do Gabinete do Presidente do Instituto Nacional de Previdência Social no Rio de Janeiro.
  • Convidado pelo Ministro de Estado da Previdência e Assistência Social para ser seu Assessor Parlamentar em Brasília. 

A Escola Superior de Guerra (ESG) dava sustentação ideológica ao regime militar. A Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento (DSND), proposta pela ESG, era responsável pela propulsão de políticas e ações dos governos militares. Seu Manual é bastante claro acerca das finalidades dos procedimentos:“A Política Nacional se desdobra em Política de Desenvolvimento e em Política de Segurança, admitindo, respectivamente, os seguintes conceitos: Política Nacional de Desenvolvimento, integrada na Política Nacional, é a arte de orientar o Poder Nacional no sentido de seu fortalecimento global, visando à conquista e à manutenção dos Objetivos Nacionais. Política Nacional de Segurança, integrada na Política Nacional, é a arte de orientar o Poder Nacional, visando a garantir a conquista ou a manutenção dos Objetivos Nacionais (ESG, 1975: 83).”16

“Jacaré tá no caminho”

Escute a música “Jacaré da no Caminho”, do Coral Carlos Gomes, enquanto lê o texto.

Olhando para trás, é inegável o apoio não oficial da IASD à ditadura militar. Ela absorve a retórica do governo e tem muito a oferecer aos ditadores. Os inimigos da ditadura passam a ser os inimigos de Deus. As palavras “Deus” e “Pátria” se tornam íntimas, por tantas vezes colocadas no mesmo contexto e frase no principal periódico adventista. 

A IASD atinge o auge desse modelo ao atuar em um dos anos mais simbólicos de todo o período, produzindo disco com hinos pátrios; se apresentando com coros e faixas, no auge da propaganda militar; produzindo eventos com os mesmos contornos dos eventos, entre tantos outros acontecimentos. A IASD é quase uma extensão da estética e padrões golpistas; no mínimo um instrumento útil à propaganda militar. 

Pessoas como Eurides Brito da Silva, João Batista Clayton Rossi, Flávio Garcia, Wilson Jorge Rossi e Eli Prates demonstraram, seja pelas suas filiações partidárias (ARENA), pela oferta cultural, pela aproximação com os generais, ou pela reprodução da ideologia e estética da ditadura, uma parceria não oficial com o governo. Se nas igrejas, congressos e palácios, a IASD apoia indiretamente o regime, seria a conta sangrenta dos porões da ditadura indiretamente dela também? Afinal, para um mero espectador, a IASD desfilava de mãos dadas aos militares.

Não é possível julgar os adventistas envolvidos com os militares; os que conversaram com a Zelota não afirmam (explicitamente) qualquer alinhamento ideológico com o regime. Eles defendem sua atuação ao lado dos governantes como “evangelistas apolíticos”, na aparente esperança de comover os torturadores por meio da música. 

No entanto, esse protagonismo não é convincente, haja vista o desempenho da propaganda concedida pela IASD no auge publicitário da ditadura militar; o declarado alinhamento moral que a instituição promovia em seus periódicos; e principalmente as relações políticas com as instâncias da ditadura cultivadas pelos nomes mencionados, que eram partidárias e nada tinham de neutras.

No afã de viver em paz  os governantes, a IASD pretende se camuflar em uma “capa de neutralidade política”, mas era intermediada por interesses partidários que mancomunavam com os ideais da ditadura militar. Naturalmente, a IASD gozava de benefícios para o funcionamento de suas instituições; a história sugere que é preferível fechar os olhos à injustiça para conquistar interesses organizacionais. Teria a IASD comprado a propaganda de Médici sobre o Brasil em troca de privilégios, seguindo o exemplo de seus antecessores na Alemanha? Hipotecamos a nossa fé para administrar o lugar entre Deus e a Pátria?

Em face às ideologias militares em plena ascensão no governo de Jair Bolsonaro (sem partido), a IASD tem a oportunidade de olhar criticamente ao passado a fim de não cometer os mesmos erros; e, se possível, tomar decisões mais corajosas e radicais contra a injustiça. Como diria a canção “Jacaré tá no caminho”, última música do disco Coral Carlos Gomes (lado B): 

Jacaré tá no caminho
tá querendo me pegar
Oi que bicho tão danado
É mió nós dois voltar

Notas:
  1. GALEANO, Eduardo. 2010. As veias abertas da América latina. São Paulo: L&PM. p. 305 e 312.

2. Ibidem, p. 229.

3. PEDROSA, Mário. A opção brasileira. Rio de Janeiro, 1966. apud GALEANO op.cit. loc. cit. p. 231.

4. Jornal O Estado de São Paulo, 4 de maio de 1964. apud GALEANO op.cit. loc. cit.

5. GALEANO, Eduardo. 2010. As veias abertas da América latina. São Paulo: L&PM. p. 232.

6. COIMBRA, Cecília Maira Bouças. ROLIM, Marcos. Tortura no Brasil como herança cultural dos períodos autoritários. Revista CEJ. Brasilia, nº 14, ago.2001. apud  A Tortura dos Tempos da Ditadura Militar no Brasil e a corrupção dos dias atuais frente ao direito à verdade e à memória. LIMA  U.T. Diana e VILELA. A. Janaina. Publica Direito. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=a383d162a97be62a Acesso em: 21/05/2021.

7. PRADO, Luiz Carlos Delorme e EARP, Fábio de Sá. “O ‘milagre brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda (1967-1973).”

8. Presidente Emílio Garrastazu Médici. Nosso Caminho. Brasília. Departamento de Imprensa Nacional, 1972 pp. 76- apud Janaina Martins op. cit. loc. cit.

9. Decreto 69.344, de 08 de outubro de 1971. In: Antonio Jorge Corrêa. As comemorações do Sesquicentenário. Rio de Janeiro: Comissão Executiva Central do Sesquicentenário da Independência do Brasil, 1972. Biblioteca do Sesquicentenário, p.13. apud Janaina Martins. op.cit. loc. cit. 

10. Fundo Comissão Executiva da Comemoração do Sesquicentenário da Independência. Arquivo Nacional/SDE- Documentos Públicos, código 1J. Pasta 51A. Recorte do Jornal: “Todo o Brasil cantará o hino na mesma hora”. Jornal não identificado, 03/03/1972. apud Janaina Martins. op.cit. loc. cit. 

11. Janaina Martins. Op. Cit. Loc. Cit. p. 306.

12. Janaina Martins. Op. Cit. Loc. Cit. p. 54.

13. Stencel, Renato. (1990). O Processo de Expansão da Educação de Nível Superior Adventista no Brasil (PDF). Londrina: Universidade Estadual de Londrina.

14. Exemplos de algumas edições que trazem o orgulho da aproximação: Janeiro de 1972; Dezembro de 1972; Janeiro de 1973; Outubro de 1976.

15. Revista Adventista Dezembro de 1972. p. 18. Disponível em: https://acervo.cpb.com.br/ra. Acesso em 21/05/2021.

16. Nadia G. Gonçalves. Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento na Ditadura Civil-Militar: Estratégias e a Educação. p.3. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, 2011.