A iniciativa, realizada pela mesma associação que mantém ordenado o primeiro pastor publicamente bissexual da Igreja Adventista, estimula a conscientização e o estudo sobre gênero e sexualidade em igrejas locais


Pastor Schimid, um dos líderes da Kinship Alemanha pregando pela manhã em Grindelberg (Foto: Mariana Rocha)

No sábado, 22 de abril de 2023, aconteceu na Igreja Adventista do Sétimo Dia de Grindelberg em Hamburgo (IASD),  Alemanha, a primeira parte de dois sábados dedicados ao estudo da temática LGBTQ+ e IASD. Marcus Schwarz, ancião da igreja local e um dos mediadores da programação, informou que o evento foi pensado para promover, dentro da comunidade adventista, o estudo e entendimento sobre as questões que envolvem gênero e sexualidade. O presidente da Associação Hanseática, Pr. Denis Meier, acrescentou que o tema é sobretudo uma conversa: “A ideia não é falar sobre eles (comunidade LGBTQ+), mas falar com eles.” A primeira parte do seminário teve como conferencista os líderes da SDA Kinship Alemanha, Ingrid e Frieder Schmid, e o presidente da Associação Hanseática, Dennis Meier.

Fonte: Reprodução Instagram Adventhaus_Grindelberg

O evento, que começou às 11:00 da manhã e contou com cerca de 170 pessoas, segundo a página oficial da igreja, foi dividido em três momentos distintos. A parte da manhã apresentou uma pregação do Pr. Frieder Schmid, que até 2008, quando se aposentou, foi presidente da Associação Central da Renânia, na Alemanha, e atualmente é um dos líderes da SDA Kinship Alemanha. 

A pregação de Schmid, que teve como título “Sou eu cristão? Se sim, quanto?” se concentrou no texto de Mateus 28.36-40, e enfatizou o critério estabelecido pela Bíblia para separar em dois grupos todos os povos da Terra: os que Deus conhece e chama pra si, e quem Deus diz não conhecer e rejeita. O pastor ressaltou que o critério bíblico para quem é aceito e reconhecido por Deus é apenas o amor e o serviço ao próximo, e não a ocasião ter a teologia ou a orientação sexual “correta”. Para o pastor, a Bíblia claramente apresenta apenas um critério para a separação do joio e do trigo no fim dos tempos, e esse critério não deixa dúvidas: o amor genuíno ao próximo.

Pastor Schimid, um dos líderes da Kinship Alemanha pregando pela manhã em Grindelberg Foto: Mariana Rocha.

Após o almoço comunitário, a programação seguiu com a palestra do Pr. Denis Meier, que teve como tema a relação da IASD mundial com a temática LGBT. Meier baseou sua palestra no artigo “A Igreja Adventista e seus membros LGBT+”, de Ronald Lawson1, traduzido para o português e publicado pela Zelota no Brasil, 

Meier começou sua exposição lendo testemunhos de irmãos e irmãs adventistas na Alemanha, os quais relatam suas longas jornadas até reconhecerem e se aceitarem como parte da comunidade LGBTQ+ no contexto adventista. Entre os testemunhos que foram apresentados, Meier leu também uma carta com a história de aceitação do pastor da igreja de Grindelberg, Saša Gunjević.  

A palestra de Meier foi bastante focada na história dos erros da IASD ao tratar do tema, desde o apoio da igreja aos ministérios de “cura gay”, como o de Colin Cook, cujas histórias de cura não só eram propaganda enganosa, como disfarçavam um processo cruel, violento, e permeado por abusos; e cujo o escândalo foi abafado pela igreja. Meier também criticou a estratégia institucional de não falar com grupos organizados ou mesmo sobre pessoas LGBT+ como um grupo, mas insistir que essa é uma questão que deve ser tratada individualmente. Meier ainda reforçou a crítica ao fato de a Associação Geral da IASD recusar qualquer diálogo com a SDA Kinship. 

Outra crítica feita por Meier à IASD foi em relação à decisão da Associação Hanseática de manter a credencial do pastor Saša. Neste sentido, Meier destaca que a Associação Geral, embora não tenha emitido qualquer nota oficial contra o apoio adventista ao endurecimento da perseguição e criminalização de pessoas LGBTQ+ em Uganda, com previsão até mesmo de pena de morte, emitiu prontamente (através da Divisão Intereuropeia) uma declaração contra a afirmação pública do pastor Saša em Grindelberg, e esta declaração viajou quilômetros. 

Na declaração, a Divisão Intereuropeia reconhece a comoção criada em torno da afirmação de Saša Gunjević em torno de sua bissexualidade, reconhece que o tema é delicado e lamenta que “que ele promova abertamente pontos de vista que minam e contradizem a posição da Igreja”. Por conta de tal “rejeição” à posição oficial da denominação, a nota o desqualificou ao ministério pastoral adventista, e prometeu trabalhar “ao lado” da Associação Hanseática e da União norte da Alemanha para revogar suas credenciais pastorais.

Em conversa com a Zelota, Saša informou que, após a publicação do posicionamento da Divisão Intereuropeia, o presidente da Associação Hanseática enviou um e-mail para todos os pastores e líderes, com o intuito de que permanecessem unidos. Ele complementou que, dada a dificuldade e a periculosidade da situação, o futuro era incerto: “Ninguém sabe o que vai acontecer se as coisas piorarem daqui pra frente.”

A Zelota abordou o Pr. Meier ao final de sua palestra, perguntando sobre a pressão institucional vindo de cima. “A instituição também sou eu”, respondeu. Meier acrescenta que espera da IASD abertura para falar sobre o assunto; ele deseja que a igreja reconheça a falta de clareza sobre o tema, e esteja aberta para diálogo. Ele complementa que aceita a diversidade de opinião sobre o tema na igreja, e que todas as pessoas têm o direito de estar na mesma igreja, inclusive as que têm uma visão tradicional sobre o tema. Meier acrescenta que o que eles (os conservadores) não podem fazer é colocar pessoas pra fora da igreja.

As críticas de Meier à teologia adventista tradicional ficam evidentes em uma carta que Meier escreveu aos membres da Associação Hanseática, e que foi divulgada no site da comunidade junto ao convite para o evento. A carta diz o seguinte:

Queridos da região hanseática, 

“Com a Bíblia em uma mão e o jornal na outra.” Eu cresci ouvindo essa frase muitas vezes em evangelizações e do púlpito. Poderíamos modificá-la facilmente: preste atenção tanto na Bíblia quanto na vida real. Uma atitude saudável e uma tarefa para toda a vida. Quase todos os dias recebo cartas que podem ser resumidas como: “Mas a Bíblia!” Vocês já devem ter imaginado que novamente (ainda) se trata da questão queer. O fato de as pessoas sentirem a necessidade de me dizer isso é, por um lado, um sinal do que é importante para nós e, por outro, sinto-me como o padeiro a quem dizem: “Não esqueça da farinha.”
Eu gostaria de fazer uma sugestão. Tem a ver com a “outra mão”, como exercício mental: No sermão do Monte (Mt 7.16), Jesus diz que podemos reconhecer uma árvore por seus frutos, e que frutos ruins são sinal de uma árvore ruim. Parece que ele também exige esse teste de realidade. Mais tarde, Paulo usa a mesma metáfora e nomeia esses frutos (Gl 5.22 e seguintes).
Este exercício é como um controle de qualidade, portanto, não é completamente seguro: E se, por apenas um momento, deixarmos de lado nossas discussões sobre textos bíblicos e olharmos para os frutos? Se como uma igreja adventista, temos a teologia correta na questão LGBTQ, então deveríamos produzir os frutos corretos. Se não, pode haver apenas duas razões. Ou não nos esforçamos o suficiente (será que uma árvore se esforça?), ou há algo errado com a árvore. Julgar isso é uma decisão pessoal. No entanto, recusar-se a fazer o teste não é uma opção que Jesus dá. Para ajudar, eu traduzi um texto (longo) que conta a história dos adventistas e seus irmãos LGBTQ.2 Se a conclusão será “melhorar” ou “pensar diferente”, isso fica a critério dos leitores interessados e dispostos a aprender. Um aviso deve ser dado como uma citação: aqueles que não aprendem com a história estão fadados a repeti-la!

Seu Denis3

Por fim, a Zelota perguntou se o Pr. Meier se sente um pioneiro da causa na IASD, ou ainda se sente que Deus tem um chamado especial para ele. Meier fez uma pausa e respondeu: “Veja, meu chamado é para cuidar de pessoas; antes de eu ser presidente, eu sou pastor. Não, eu não me vejo como pioneiro. Eu não sou um ativista da causa, eu não sou uma pessoa politizada, eu não tenho familiaridade com o tema; o tema apareceu para mim ainda antes de eu ser presidente, enquanto era apenas pastor, pela necessidade de cuidar de pessoas. A necessidade bateu à minha porta.” O pastor ainda completa que, como presidente, o que deseja da IASD é que haja não só a abertura para falar da comunidade LGBT+, mas para falar com a comunidade, recebê-la e ouvi-la. 

Presidente da Associação Hanseática Denis Meier é ganha de presente da Kinship Alemanha, um cachecol por sua parceria e dialogo com a comunidade adventista LGBTQ+ no país.  Foto: Mariana Rocha.

Na segunda, já pela tarde, Ingrid Schmid, uma das líderes da Kinship Alemanha, introduziu o tema “o compasso do gênero”, no qual procurou detalhar o que a sigla LGBTQIAPN+ significa e as principais implicações científicas do tema na área da saúde, biologia e também na sociologia. Embora esta tenha sido a parte mais “técnica” do evento, senhoras e senhores, no auge do seus 80 anos, interessaram em entender sobre termos, conceitos e sexualidade humana, enquanto senhoras, senhores e jovens queer adventistas presenciavam pela primeira vez uma IASD cuja prioridade era compreendê-los e amá-los.

Em conversa com a Zelota, Ingrid afirmou que considera a situação na Alemanha muito melhor que em muitos países. Atualmente, Ingrid tem conhecimento de duas igrejas adventistas que são afirmativas e já possuem declarações afirmativas divulgadas em seus websites. Uma IASD na Alemanha, em Nuremberg, e outra na Suíça, em Heimberg. Ingrid destacou que a realidade da igreja é diferente em cada país, e por isso é difícil pensar sobre o futuro; “por exemplo, se compararmos com os Estados Unidos e com a Uganda, a Alemanha está mais avançada” acrescentou Ingrid.

Da esquerda pra direita Ingrid Schmid, Pr. Saša Gunjević e Pr. Frieder Schmid (Kinship Alemanha) Foto: Mariana Rocha.

Durante a programação, Ingrid e Meier repetiram diversas vezes que o avanço da discussão do tema nas igrejas locais é barrado pela decisão institucional de não dialogar com a comunidade LGBTQ+ e com organizações como a SDA Kinship. Para Ingrid, “a Kinship é o segredo mais bem guardado da igreja; eles não querem que saibam da nossa existência e do trabalho que fazemos.” Esta falta de diálogo com a comunidade LGBT+ faz parte de uma estratégia de silenciamento e invisibilidade – “não pergunte, não conte”4 –, na qual não se reconhece a existência de uma membresia adventista que é parte da comunidade LGBTQ. 

O evento encerrou por volta das 17h30, com a igreja de mãos dadas, em um círculo, cantando o Pai Nosso. A segunda parte do estudo ocorrerá no dia 7 de outubro de 2023, e o foco será analisar o que o texto bíblico diz sobre homossexualidade. 

Notas:

1. The Adventist Church and Its LGBT Members, in: Spectrum, Band 48, Ausgabe 4, 2020.

2. O texto ao qual se refere Meier é o texto de Ronald Lawson, que mencionamos acima e que foi traduzido pela Zelota no Brasil.

3. Traduzida e adaptada do original por Mariana Rocha para a revista Zelota

4. Referencia à politica “Don’t ask, don’t tell” sobre homossexualidade, presente nas forças armadas americanas. Sobre essa política dentro da igreja ver texto de Lawson, “Não pergunte, não conte”.