Tanto Ellen G. White quanto William Foy, um dos profetas precursores do millerismo, se utilizaram do texto apócrifo de 2Esdras como Escritura Sagrada para validar suas visões


Por Matthew J. Korpman | Professor adjunto de estudos bíblicos na Universidade La Sierra, completando seu doutorado em Novo Testamento na Universidade de Birmingham. Tem um mestrado em Religião pela Yale Divinity School, juntamente com três bacharelados em religião, arqueologia, e filosofia, assim como um bacharelado em roteirização para filmes. Traduzido e adaptado do original em inglês1 por André Kanasiro para a revista Zelota.

Ellen G. White e William Foy (fonte: encyclopedia.adventist.org; montagem: Jayder Roger)

Duas áreas amplamente ignoradas da história adventista continuam a produzir resultados surpreendentes quando recebem atenção: o ministério profético de William Foy e o relacionamento do adventismo com os livros apócrifos e pseudepígrafos. Para ambos os tópicos, um ano em particular se provou um divisor de águas para historiadores adventistas. No caso dos apócrifos, foi o artigo seminal de Ronald Graybill, de 1987, que lançou luz sobre um tópico cuja existência ninguém conhecia.2 Nesse mesmo ano, estudos sobre Foy foram radicalmente alterados quando Delbert Baker publicou um livro sobre sua descoberta de que um dos primeiros e passageiros profetas do adventismo (ou, mais precisamente, do millerismo) não tinha, como concluíram os volumes apologéticos de história dos primórdios, rejeitado seu ministério profético.3

Ambas as descobertas subverteram pressupostos passados e favoreceram concepções radicalmente novas do adventismo primitivo. Os apócrifos, ao invés de serem antitéticos ao adventismo, se demonstraram uma parte integral de sua identidade inicial. Foy, ao invés de ser conhecido primariamente por rejeitar um chamado profético, foi compreendido como um fiel precursor primitivo juntamente com (e não substituído por) White nos círculos mileritas primitivos. Contudo, de modo similar à obra inicial de Graybill e Fortin4 sobre os apócrifos, que deve ser vista à luz de pesquisas atualizadas,5 nova atenção também deve ser dada a Foy. Enquanto a pesquisa acadêmica anterior se focava em elevá-lo a histórias apologéticas aparentemente novas, trabalho adicional é necessário para cavar mais fundo em seus relatos visionários e a conexão entre esta literatura e White.

Neste artigo, faço uma fusão entre estes dois campos de estudo, e analiso a questão da relação de Foy com os apócrifos. Eu quero propor três argumentos em particular. Primeiro, Foy baseou uma de suas visões diretamente no livro apócrifo de 2Esdras (também conhecido pelos acadêmicos hoje como IV Esdras). Segundo, White usou as visões publicadas de Foy literariamente enquanto escrevia seu próprio relato de sua visão inicial, que também se baseou em 2Esdras. Terceiro, White deu preferência a 2Esdras de novo e de novo sempre que Foy mudava coisas de 2Esdras, indicando que 2Esdras para ela carregava uma autoridade como escritura que não era compartilhada por Foy como profeta millerita. Por fim, como parte de uma análise mais ampla de aplicação prática, quero sondar a preferência de White por 2Esdras ao invés da visão do próprio Foy, combinada à afirmação dela de que Foy foi um verdadeiro profeta, como evidência de sua própria autoconsideração como “luz menor”.

Uma fonte comum de inspiração visionária

Além de estudos passados que citaram os muitos casos nos quais a jovem Ellen White citou ou aludiu direta ou indiretamente aos apócrifos,6 alguns podem ainda querer evidências adicionais de seu uso deles. A despeito do fato de que ela promovia os apócrifos entre 1849 e 1850, notando em visão que “os sábios destes últimos dias deveriam entendê-lo”, e a despeito de outra visão declarando-o “a Palavra de Deus” e insistentemente alertando os adventistas a “atá-lo ao coração”,7 muitos permanecem incertos quanto a como compreender seu pensamento inicial, dado o modo assistemático com que ela discutia o tópico.

Para os que ainda estão questionando se ela realmente acreditava e confiava nestas obras em um nível comparável ou igual às Escrituras, ajuda retornar às suas primeiras visões publicadas no jornal millerita Day-Star, em 1846. Conforme já estabelecido por estudos anteriores, incluindo o de Graybill, White “usou sua [2Esdras] linguagem em suas primeiras visões”,8 e Denis Fortin subsequentemente notou em acordo: “Ellen White provavelmente estava ciente do conteúdo e da escolha de palavras de 2Esdras”.9 Conforme colocado por Donald Casebolt, é um “fato” estabelecido que ela “as incorporou [referências a 2Esdras] a uma descrição do que viu no Céu”.10 Isto em si mesmo era algo que White não estava tentando esconder, pois no panfleto que republicou estas visões, “A Word to the ‘Little Flock’” [“Uma palavra ao ‘pequeno rebanho’”] (1849), Tiago White forneceu referências das “Escrituras” para provar as fontes de autoridade para as ideias de Ellen White, entre elas seis citações de 2Esdras. Estudos adicionais de Graybill e Korpman descobriram mais duas referências que não foram citadas formalmente por Tiago White.11

Sem o conhecimento de muitos, William Foy — outro profeta millerita que publicou várias de suas visões em panfletos — com frequência citava, aludia, e baseava suas visões na influência de 2Esdras. Outro fato menos conhecido é que White foi uma leitora não só de 2Esdras,12 mas também de Foy. Ela admitiu em anos posteriores ter uma cópia de suas visões impressas, as quais disse ter continuado a ler mais de meio século depois.13 Este é um fato importante, pois oferece uma oportunidade de lançar luz sobre como estes dois profetas mileritas abordaram e se apropriaram da autoridade de 2Esdras.

É valioso reconhecer que tanto Foy quanto White escolheram repetir a mesma visão contada em 2Esdras, e assim notar que a primeira visão de White e de Foy não foi realmente “original” a nenhum dos dois, mas, ao invés disso, foi parcialmente uma reimaginação ou reconfiguração da mesma visão “bíblica” dada anteriormente em 2Esdras. O fato de que suas visões nasceram de um livro apócrifo indica que a obra carregava autoridade para as comunidades para quem eles falavam — um fato apoiado por pesquisas recentes no tópico. Embora seja possível imaginar que ambos os profetas simplesmente viram algo em visão que era similar a 2Esdras, e meramente usaram a linguagem do apócrifo para preencher os detalhes, o próprio fato de que citaram tal linguagem demonstra que as comunidades para as quais eles falaram ressonariam com ela.

E quanto aos que mantêm questionamentos e ceticismo a respeito das opiniões iniciais de White sobre os apócrifos? A tabela abaixo deve ajudar a resolver tais dúvidas. Na comparação tripartite, a visão antiga original de 2Esdras é apresentada juntamente com os dois relatos “reescritos” (ou re-experienciados?) de Foy e de White. Quando estes três relatos são apresentados lado a lado, fica aparente como Foy modificou 2Esdras — e também como White subsequentemente modificou Foy.

2Esdras 2.42-28 (KJV)William Foy (1842)14Ellen White (1846)15
Eu, Esdras, vi sobre o monte Sião um grande povo, o qual eu não podia contar, e todos adoravam o Senhor com cânticos. E no meio deles havia um jovem de grande estatura, mais alto que todos os outros, e sobre a cabeça de cada um ele colocou coroas, e foi mais exaltado … Estes são aqueles que retiraram as vestes mortais e puseram as imortais, e confessaram o nome de Deus: agora são coroados, e recebem folhas de palmeira. Então disse eu ao anjo, Quem é o jovem que os coroou, e lhes deu folhas de palmeira em suas mãos? Então ele respondeu e disse a mim, Este é o Filho de Deus, a quem eles confessaram no mundo. Então comecei a exaltá-los grandemente, por permanecerem tão firmes pelo nome do Senhor. Então o anjo disse a mim, Siga teu caminho, e diga ao meu povo que coisas e grandes maravilhas do Senhor, teu Deus, tu viste.Eu então contemplei, e eis que havia um grande portão diante de mim. O portão era tão alto, que sua altura eu era incapaz de ver. Diante do portão estava um anjo alto e poderoso, com vestes puras e brancas; seus olhos eram como fogo ardente, e ele carregava uma coroa em sua cabeça, a qual iluminava esta planície sem fim. O anjo ergueu sua mão direita, e a colocou sobre o portão, e o abriu; e conforme giravam suas resplandecentes dobradiças, ele clamou em alta voz, às hostes celestiais, “Sois todos bem-vindos!” Então, os … santos, grandes e pequenos, cantaram em alta voz, e passaram pare dentro do portão … Eu então contemplei uma multidão inumerável vestida em vestes brancasdispostas em um quadrado perfeito … com cartões sobre seus peitos; e a cada um foi dada uma coroa de brilho. O guia falou, dizendo, “Estes são aqueles que passaram pela morte.” … Foi disposta diante de mim no espírito uma multidão inumerável … e em sua mão direita eles seguravam cartões … Meu guia, agora, informou-me o que eu devo fazer; dizendo, “Teu espírito deve retornar ao mundo, e tu deves revelar essas coisas que tu viste. …”E os anjos entoaram uma nota mais alta e novamente cantaram, enquanto a nuvem se aproximava ainda mais da terra … Todos nós adentramos as nuvens juntos, e passamos sete dias ascendendo ao mar de vidro, quando Jesus trouxe consigo as coroas e com sua própria mão direita as colocou em nossas cabeças. Ele nos deu harpas de ouro e folhas de palmeira de vitória. Aqui no mar de vidro os 144.000 se dispuseram em um quadrado perfeito … Todos ficaram perfeitamente satisfeitos com suas coroas. E eles foram todos vestidos com um glorioso manto branco, de seus ombros aos seus pés. Anjos estavam em derredor enquanto marcharemos pelo mar de vidro até o portão da Cidade. Jesus ergueu seu poderoso braço glorioso, o colocou sobre o portão e o empurrou por suas dobradiças douradas, e nos disse, Vocês lavaram suas vestes em meu sangue, permaneceram firmes por minha verdade, entrem … e todos nós clamamos Aleluia, o Céu é barato o bastante, e tocamos nossas harpas gloriosas e fizemos ecoar os arcos do Céu … e ele [Jesus] disse, vocês devem voltar à terra novamente, e relatar aos outros o que eu revelei a vocês.
Sentenças que Foy e White copiaram de 2Esdras estão em negrito. Sentenças que Foy copiou de 2Esdras, mas que White escolheu não repetir de Foy ou Esdras, estão em negrito e sublinhadas. Sentenças que White copiou de Foy estão em itálico e sublinhadas.

Quando White escreveu sua própria versão da visão, muitos anos depois de Foy, ela copiou sua linguagem não só diretamente de 2Esdras, como se estivesse citando qualquer outro livro da Bíblia, mas também do relato publicado anteriormente por Foy, um detalhe que o  artigo recente de Casebolt sobre os apócrifos na Spectrum também notou.16 Ainda em 1987, Tim Poirier tinha observado que este foi “um dos paralelos mais próximos entre as visões de Foy e as de Ellen Harmon”.17 Quando este fato é reconhecido e, mais importante, estudado, percebemos outra coisa: a Sra. White valorizava e preferia 2Esdras a Foy.

Muitas coisas são dignas de nota em uma análise das colunas paralelas. Fica claro que a visão de Foy modifica certos detalhes significativos de 2Esdras. A mais proeminente é que Jesus, ou literalmente “o Filho de Deus” (2Ed 2.47) é colocado como “um anjo alto e poderoso” no relato de Foy. No entanto, percebam como White escreve sua própria visão. Embora ela utilize tanto Foy quanto 2Esdras em seu relato escrito, sempre que Foy diverge de 2Esdras, White escolhe manter a sentença conforme preservado em 2Esdras ao invés de reter as mudanças de Foy. Por outro lado, sempre que Foy acrescenta algo que não necessariamente contradiz 2Esdras, White escolhe incluir estes detalhes e descrições aos de 2Esdras.

Visões preferenciais e a autoridade de 2Esdras

Com efeito, Ellen White demonstrou preferência e víés claros e diretos a favor da obra apócrifa de 2Esdras, de modo que quaisquer detalhes colocados por Foy passaram a ser subservientes ao relato “bíblico” original. Esta pequena preferência ajuda a sublinhar seus comentários descrevendo os apócrifos como “a Palavra de Deus” e “tua Palavra” durante este mesmo período,18 ilustrando que 2Esdras, para ela, possivelmente diferente de Foy,19 era inspirado em um sentido bíblico (assim como Tiago White o descreveu) e, como tal, não deveria ser modificado ou adulterado. Para Ellen White, em essência não havia diferença entre os apócrifos e a Bíblia em termos de inspiração e autoridade. Enquanto outros teriam considerado os apócrifos da mesma autoridade subserviente que Foy e seus escritos, White considerava tanto o 2Esdras apócrifo quanto o livro do Apocalipse como “tua Palavra”.

Esta distinção entre a visão de Foy e a visão original de 2Esdras cria um contraste para Casebolt, que propôs que White “conferia a 2Esdras, os apócrifos em geral, e William Foy em particular, uma posição profética genuína”, e que “Ellen Harmon dependeu de Foy além de 2Esdras.”20 Na verdade, Foy atuou como suplemento adicional a 2Esdras, aparentemente da mesma forma que ela argumentava com outros que suas visões deveriam ser usadas em relação com a Bíblia.

Com isto notado, também é importante ver como esta descoberta abre novas formas importantes para entendermos a autoconcepção de White. Por exemplo, está claro que White aceitava Foy como profeta e considerava suas visões verdadeiras (portanto, ela utilizou sua obra). Ela notou, em uma entrevista de 1906, que “Foy … teve quatro visões … ele caiu no chão [por quase uma hora] … ele teve todas estas [visões] antes de mim.”21 Isso confirma que a própria White reconhecia o que a tabela demonstra: ela e Foy tiveram a mesma visão — uma visão cuja fonte comum era as imagens “bíblicas” de 2Esdras. Ela também notou que estas visões “foram escritas e publicadas”, e que ela reteve esta publicação entre “meus livros”, mas aparentemente o perdeu em algum lugar porque “nos mudamos tantas vezes”.22

Além disso, ela notou que, antes de ter suas próprias visões, ela já tinha ouvido pessoalmente o relato de Foy sobre sua visão, e “sempre se sentava muito perto do púlpito” quando ele falava, e que “ele levava testemunhos notáveis”.23 Ela disse que seu primeiro encontro com as visões de Foy em Portland, Maine, foi somente “um tempo depois que as visões” tinham ocorrido. De fato, de acordo com White, ela tinha ido mais de uma vez para escutá-lo, pois relatou que “meu pai sempre levava com ele quando ia” escutar.24 Ela também lembrou que Foy, quando mais tarde ouviu a visão da própria White, a encontrou, e, ao ouvi-la, “pulou para cima e para baixo … louvou o Senhor”, e ficou empolgado, pois “era exatamente o que ele tinha visto, exatamente o que ele tinha visto”.25

No entanto, a tabela também demonstra que está igualmente claro que ela também via uma demarcação entre a compreensão de Foy e o “texto” apócrifo no qual ambos se basearam. Para White, Foy era um profeta que recebeu visões verdadeiras, mas suas habilidades proféticas não lhe autorizavam a modificar as “Escrituras”. Além disso, não parece que White se incomodou com o fato de que Foy de fato alterou as “Escrituras” ao contar suas visões, ou que ele tenha entendido coisas errado (tais como erros doutrinários sobre a divindade de Jesus ou a condição dos mortos).26 Foy foi capaz de entender as coisas errado — estar em erro — e ainda assim funcionar como um profeta millerita verdadeiro aos olhos de White. De fato, seu uso de “testemunhos” para descrever as visões de Foy, a mesma palavra que ela usava para descrever suas próprias visões, é importante neste sentido, pois traz nossa atenção a como White pode ter se compreendido à luz do exemplo de Foy.

Ela podia notar que “Nessas cartas que escrevo, nos testemunhos que apresento, coloco diante das pessoas exatamente aquilo que o Senhor me apresentou. Não escrevo um artigo sequer, na revista, expressando meras idéias minhas. Correspondem ao que Deus me revelou em visão — os preciosos raios de luz que brilham do trono.”27 Da mesma forma, ela podia escrever que “há uma corrente da verdade, reta, sem uma única sentença herética, na qual eu escrevi”,28 e em outros lugares afirmar que seus testemunhos “nunca contradizem Sua Palavra”.29 Em seu estudo sobre este tópico, Warren Ashworth observou: “Ellen White deve ter acreditado que, quando fazia declarações em relação a doutrina, assim como qualquer outro tópico, suas declarações eram bíblica e doutrinariamente sólidas.” Contudo, como ele também notou, ela rejeitava a implicação disso na prática.

Em 1910, quando os líderes da igreja estavam divididos quanto ao significado do “sacrifício diário” em Daniel 8, S. N. Haskell insistiu que eles deveriam chegar a uma compreensão do termo “com a ajuda do Espírito de Profecia”, pois Ellen White tinha escrito em relação ao “sacrifício diário” em Primeiros Escritos, mas ela recusou. “Eu suplico aos senhores H, I, J e outros de nossos líderes, que não façam referência aos meus escritos para sustentar suas opiniões sobre ‘o sacrifício diário’. … Eu não posso consentir que quaisquer de meus escritos sejam usados para resolver este assunto. … Eu não tive instrução sobre o tópico sob discussão.30

Esta leve nuance também pode ajudar a iluminar seu próprio entendimento de seu dom, e como ela entendia a diferença deste para a inspiração das Escrituras. Se Foy podia cometer erros, contradizer as Escrituras, ou acrescentar ideias estranhas que tinham que ser rejeitadas — enquanto ainda mantendo sua autenticidade como profeta — então White também podia. Se Foy tinha que ser corrigido pela Bíblia se os dois em algum momento sequer parecessem contradizer um ao outro — embora isso não minasse a habilidade de Foy de ser um verdadeiro visionário de Deus — então White também poderia ser corrigida pela Bíblia e não ter seus próprios dons questionados. Ela se descreveu em mais de uma ocasião como “a luz menor”,31 e, ao estudar sua utilização de Foy e de 2 Esdras, pode ser possível entender melhor o que ela queria dizer.

A importância de uma “luz menor”

Já em 1873, White começou a usar o termo “luz menor” para se referir ao ministério de João Batista em comparação com Jesus Cristo (“uma luz maior”).32 Em 1887, ela fez referência à “era judaica” antes do nascimento de Jesus (incluindo o Antigo Testamento?) como “a luz menor”, em comparação com a “luz mais completa e gloriosa” que Jesus trouxe.33 E em 1894, ela chamou a lua de “luz menor” em comparação com o sol.34 À luz destes exemplos, está claro que “a luz menor” permanecia para ela uma autoridade, mesmo quando colocada em uma hierarquia com a luz maior. João Batista funcionou como um profeta, mas não teve Escrituras registradas por ele. Ele podia estar errado e até mesmo duvidar de Jesus como o Messias (Mt 11.3; Lc 7.19). Contudo, ele permanece um profeta verdadeiro e importante. A lua é uma luz menor, pois reflete a luz originada no sol (e não tem luz própria), mas ainda é uma luz necessária. E o tempo antes de Jesus permanece importante e com autoridade, mesmo que seja reinterpretado através do paradigma de Jesus. Desta perspectiva, quando White parecia usar este termo em referência ao seu próprio ministério, ele sinalizava sua crença em sua autoridade, mas também evidenciava um senso de humildade: ela compartilhava uma fonte de inspiração similar à da Bíblia, mas não uma autoridade similar.

Pareceria que, para White, Foy também foi um exemplo de tal “luz menor”. Ele era considerado inspirado, mas não tinha autoridade o bastante para reescrever as Escrituras, ou, neste caso, 2Esdras. E, da mesma forma, tampouco tinha ela. Pois quando o assunto era autoridade, havia mais em comum entre Foy e ela que entre as Escrituras e ela. Portanto, pode-se concluir que os adventistas, que, quando encontram uma contradição entre White e a Bíblia (tal como se Eva deixou Adão no Éden para ser tentada), escolhem ecoar White ao invés da Bíblia (Gênesis 3.6 diz que Adão estava “com” Eva), estão fundamentalmente desonrando a compreensão que a própria White tinha de si mesma. Julgando a partir deste estudo, pareceria que, para White, alguém que reconhece que ela se afastou da Bíblia e escolhe desconsiderar seus comentários sobre ela não estaria praticando uma hermenêutica errada, e sim demonstrando o reconhecimento apropriado de sua posição na hierarquia entre luzes menores e luzes maiores. Assim como Foy podia estar errado ao representar um pós-vida ativo em suas visões ou sustentar uma cristologia questionável, mas ainda ser considerado um profeta verdadeiro, White também pode entender coisas errado e permanecer uma verdadeira profetisa aos seus próprios olhos.

Conclusão

A relação literária aparentemente obscura e interessante entre William Foy e Ellen White — os quais se basearam e confiaram na obra apócrifa de 2Esdras — pode nos ajudar a entender o que os comentários visionários de White sobre os apócrifos significavam na prática de sua própria leitura exegética e hermenêutica das Escrituras. Ela lança uma luz potencialmente nova sobre sua própria autocompreensão de seu ministério profético ao contrastar sua abordagem a Foy e à obra apócrifa de 2Esdras que estava em sua Bíblia.

Nem mesmo um profeta como Foy (e presumivelmente White também) era capaz de mudar as verdades que ela acreditava estarem contidas no livro apócrifo e/ou no resto da Bíblia. Como ela alertou aos presentes durante a visão de 1849, “atem-no ao coração … atem-no, atem-no, atem-no”! Dadas as evidências de como ela navegava Foy e 2Esdras, está claro que ela de fato fez exatamente isso dentro de sua própria prática devocional. No fim, então, qualquer tentativa de acadêmicos adventistas de compreender a opinião de White sobre as Escrituras e a autoridade bíblica deve considerar suas opiniões a respeito dos apócrifos.

Notas:

1. Matthew J. Korpman, “William Foy and the Apocrypha: Demonstrating Ellen White’s Early Belief in the Authority of 2 Esdras,” Spectrum 51.2 (2023): 12-18.

2. Ronald Graybill, “Under the Triple Eagle: Early Adventist Use of the Apocrypha,” Adventist Heritage 12 (Inverno de 1987): 25-32.

3. Delbert W. Baker, The Unknown Prophet: Revised and Updated (Hagerstown, MD: Review and Herald Publishing Association, 2013 [1987]).

4. Cf. Denis Fortin, “Sixty-six Books or Eighty-one? Did Ellen White Recommend the Apocrypha?” Adventist Review 179.13 (2002): 10-13.

5. Cf. Matthew J. Korpman, “Ellen White and the Pseudepigrapha: Jasher, Enoch, and the Amalgamation of Man and Beast,” Spes Christiana 33.2 (2022); “Endorsing the Septuagint: Ellen White and Her Later Views of the Apocrypha,” Academia Letters (2022): 1-7; “The Protestant Reception of the Apocrypha,” em The Oxford Handbook of the Apocrypha, ed. Gerbern Oegema (Nova Iorque, NY: Oxford University Press, 2021): 74-93; “Forgotten Scriptures: Allusions and Quotations by Ellen White to the Apocrypha,” Spes Christiana 31.2 (2020): 109-146; “Antiochus Epiphanes in 1919: Ellen White, Daniel, and the Books of the Maccabees,” Adventist Today (2020): 30-33; “Adventism’s Hidden Book: A Brief History of the Apocrypha,” Spectrum 46.1 (2018): 56-65. Ver também Donald E. Casebolt, “‘It Was Not Taught Me By Men’: Ellen White’s Visions and 2 Esdras,” Spectrum 46.1 (2018): 66-73.

6. Korpman, “Forgotten Scriptures,” 109-146.

7. Ellen White, “Remarks in Vision,” Manuscrito 5, 1849.

8. Graybill, “Under the Triple Eagle,” 31.

9. Fortin, “Sixty-six Books or Eighty-one?” 12-13.

10. Casebolt, “‘It Was Not Taught Me By Men,’” 71.

11. Graybill, “Under the Triple Eagle,” 31; Korpman, “Forgotten Scriptures,” 119-120.

12. Para um panorama da história da influência dos apócrifos sobre Foy e o millerismo, cf. Graybill, “Under the Triple Eagle,” 25-32; Korpman, “Adventism’s Hidden Book,” 56-65.

13. Ellen White, “Interview with Mrs. E. G. White Regarding Early Experiences,” Manuscrito 131, 1906. “Ele teve quatro visões … Elas foram escritas e publicadas, e é estranho que eu não consiga achá-las entre meus livros. Mas nós nos mudamos tantas vezes. Ele teve quatro.”

14. William E. Foy, The Christian Experience of William E. Foy Together with the Two Visions (Portland: J. C. H. Pearson, 1845), 10-11, 174, 179.

15. Ellen Harmon [White], “Letter from Sister Harmon,” The Day-Star 9.7-8 (Janeiro de 1846): 31-32.

16. Casebolt, “‘It Was Not Taught Me By Men,’” 69. White “acrescenta elementos da visão de William Foy a [sua versão de] 2Esdras. Foy viu uma ‘multidão inumerável,’ de seres pequenos, do ‘tamanho de crianças de dez anos’; enquanto Ellen Harmon também viu ‘uma companhia inumerável de pequeninos’ que podem ‘usar suas asinhas e voar para o topo das montanhas, e colher flores que jamais se secam.’” O paralelo de Casebolt é diferente do que eu discuto aqui, mas demonstra que, em mais de um local, White parece depender de Foy em relação a sua utilização de 2Esdras em seus primeiros dias.

17. Tim Poirier, “Black Forerunner to Ellen White: William E. Foy,” Spectrum 17.5 (1987): 23-28. “Foy é importante por causa dos paralelos significativos entre suas visões e as posteriores de Ellen White,” 23. Autores anteriores, como Poirier, notaram vagamente que percebiam paralelos entre Foy e White, mas não exploraram estas implicações, nem perceberam que ambos dependiam de 2Esdras.

18. White, “Remarks in Vision.”

19. Um estudo futuro teria que determinar se Foy tratava as Escrituras no geral com uma habilidade de modificar os detalhes. Caso seja este o caso, suas modificações não expressam uma opinião mais rebaixada dos apócrifos, mas simplesmente uma abordagem diferente quanto a inspiração.

20. Casebolt, “‘It Was Not Taught Me By Men,’” 72.

21. Ellen White, “Interview with Mrs. E. G. White Regarding Early Experiences,” Manuscrito 131, 1906.

22. White, Manuscrito 131, 1906.

23. White, 1906.

24. White, 1906.

25. White, 1906.

26. Embora mereça seu próprio artigo, a escolha de Foy de mudar o filho de Deus para um anjo, uma mudança com a qual White discordava, é digna de uma nota de passagem em relação a como isso pode refletir as crenças cristológicas do próprio Foy. Da mesma forma, as visões publicadas de Foy também retratam que cristãos mortos recebem a vida eterna após a morte e se tornam anjos, povoando o céu, enquanto a terra continua. Infelizmente, este aspecto heterodoxo de Foy foi amplamente ignorado por historiadores e acadêmicos adventistas até hoje.

27. Ellen White, Testemunhos para a Igreja, vol. 5  (Mountain View, CA: Pacific Press Publishing Association, 1882), 67.

28. Ellen White para Mabel White, Carta 329a, 1905.

29. Ellen White para Irmã Rasmussen, Carta 106, 1907.

30. Warren S. Ashworth, “The Lesser and the Greater Lights: A Re-examination of the Relationship of the Writings of Ellen White to the Bible,” Journal of the Adventist Theological Society 9/1-2 (1998): 20.

31. Ellen White para Irmãos e Irmãs, Carta 196, 1902.

32. Ellen White, “John’s Mission and Death,” Review and Herald 41.17 (1873): 130.

33. Ellen White, “Christ and the Law; or the Relations of the Jew and Gentile to the Law,” Signs of the Times 13.33 (1887): 513.

34. Ellen White, “Sermon/Sunday Afternoon Sermon,” Manuscrito 43a, 1894.