Novo livro de Victor Azevedo, “Humanamente Deus”, evidencia a impotência da classe média consciente frente a um mundo em desintegração


Há algum tempo Ivone Gebara vem levantando um questionamento sobre a qualidade da teologia: “Teologia é biografia,”1 afirma ela. Para aqueles formados em certa tradição crítica essa ideia não soa totalmente nova; um conhecido crítico do cristianismo no século 19 já teria dito algo próximo disso, que a religião é o reflexo da natureza humana, do próprio humano. Formular teologia, para Gebara, seria expressar aquilo que se viveu e se vive a partir do que se crê. Rubem Alves também caminhou nesse sentido enquanto reformulava sua teologia passado o tempo da libertação: fazer uma rede em que caiba o corpo era então a tarefa.2 Em certo sentido, foi isso o que restou para aqueles que foram animados pela memória do Cristianismo de Libertação. Aquele sujeito histórico que animava as formulações teológicas na América Latina saiu de cena; conforme comenta Elsa Tamez, sobraram algumas lutas que deveriam seguir como referência, mas o céu já não estava mais estrelado.3 Por outros caminhos, Victor Azevedo faz o mesmo trajeto. Humanamente Deus (2023), que acaba de ser publicado, é no final das contas uma expressão da sua experiência de fé, quase uma confissão que explica o seu próprio percurso. Mas para além de meramente narrar sua história, o jovem pastor pretende fazer teologia, dizer quem Jesus é ou não é; dar uma “interpretação do evangelho e da pessoa de Jesus para os dias de hoje”, como diz seu subtítulo.

O livro que agora passamos a acompanhar é marcado por um conflito – ao fundo, um conflito pelo qual o próprio autor passou e está tentando dar conta. Em certo sentido, o texto tem uma lógica bem linear. O primeiro capítulo apresenta e defende que “a forma como escolhemos crer nEle e a maneira como O vemos mudam a nossa compreensão do mundo e das pessoas”,4 ou seja, a forma pela qual cremos em Deus é também a forma como vivemos. O segundo capítulo então apresenta que Jesus é a referência de Deus para nós: “Jesus não é um acontecimento no meio da história humana, mas o ápice da história, por nos mostrar o que nós, seres humanos, podemos nos tornar e ao mesmo tempo revelar quem Deus é.”5 O terceiro capítulo vai então dizer quem Jesus é – no caso, o Cristo que redime tudo, o velho lema da Missão integral: “O evangelho todo para a humanidade toda.” O jovem pastor também começa a apresentar que o Cristo tinha um conflito com os poderes do seu tempo, como se sabe. “Afinal, em um mundo hierárquico cujos governantes são o ego, a ganância e o eu, quando alguém aparece para falar de nós, do perdão e da igualdade é, de fato, ameaçador para todo o sistema.”6 Azevedo chega a dizer que Jesus tinha uma política; sua arte de governar é servir uma comunidade sem muros e unida em amor. Critica que o “Jesus espiritual” é um desvio do Jesus da comunidade que une todos os diferentes: “A verdade é que esse Jesus que criamos em nossa história, que não se importa com as questões que tocam o nosso mundo, pode até ter o que dizer aos fantasmas, mas não acrescenta muito a quem tem carne, fome, sede e frio.”7 A tarefa é então resgatar esse Jesus que dava pão a quem tinha fome e alívio para os sobrecarregados.

No quarto e quinto capítulo, nosso autor retoma a sua experiência, onde a figura de Jesus sempre esteve num mundo longe da vida real, de problemas reais. “Notei, então, que havia um abismo gigantesco entre a imagem do Deus do evangelho e aquela que eu tinha criado dele.”8 Ele logo comenta que a verdadeira espiritualidade está no olhar para o outro, está em estender a mão: “Viver a espiritualidade não é excluir quem não pensa igual a gente no nosso grupinho fechado: é incluir todo mundo para sentar na mesa e saborear juntos o banquete da redenção.”9 Jesus não quer ser adorado, quer ser seguido, ser imitado.

Esse brevíssimo percurso que estamos fazendo é todo feito com diversas referências ao tal conflito entre uma espiritualidade individual/individualista e uma espiritualidade comunitária/Jesus. O último capítulo se ocupa em apresentar como o nosso autor faz essa travessia, onde coloca como figura central o já conhecido Ed René Kivitz. Em certo momento, ele comenta que, em meio a uma crise, recebia muitas ligações de pastores tentando consertá-lo, ou seja, tentando fazer com que ele seguisse em uma espiritualidade individualista. Mas Azevedo teve então uma conversa com Ed René:

Lembro de ouvir dele as seguintes palavras: “Às vezes durmo mal por sentir que sou rico. No Brasil em que vivemos, onde muitos não têm o básico para viver dignamente, eu sou muito rico.” Me emocionei. Nunca tinha escutado alguém, muito menos um pastor, dizendo isso. Foi como se eu olhasse para ele dizendo aquilo e pensava: vou seguir isso, porque seguir isso é seguir a Jesus.10

Aí está. O jovem pastor agoniado com os rumos do mundo sentiu suas dores em outro pastor que há tempos tentava dar conta daquele sentimento. Em meio a um mundo desintegrado em pura violência, onde não corre nenhuma esperança real, o que o evangelicalismo de bom coração tem a dizer é que seus pares de classe média tenham dó daqueles que estão sendo destroçados pelo trabalho. Seguir a Jesus torna-se ser caridoso, apoiar organizações sem fins lucrativos, ou até mesmo abrir as suas. A ironia objetiva é que o bon vivant que prefacia o texto, Ed René Kivitz, diz fazer parte do que chama de Tradição Teológica dos Dois Terços do mundo; em outras palavras, o mesmo quer se referir às teologias que foram produzidas no Terceiro Mundo, como a Teologia da Libertação e da Missão Integral. A ironia, ou diagnóstico de época, é que Victor deixa claro: “ai de nós, ricos em nossas bolhas de ignorância, que não conseguimos sentir as dores que assolam o mundo”;11 não se trata de mudar as coisas, nem de acreditar ilusoriamente que a libertação ainda vai vir, como nossos velhos liberacionistas. Agora resta sentir as dores, ressentir o privilégio de estar integrado em um mundo em plena desintegração. O que propõe nosso jovem pastor? Que a igreja é uma outra sociedade, que a construção do reino de Deus é a formação de uma “cidade dentro da cidade”. Em certo sentido, a aposta é também resultado de uma experiência prática onde nós, a classe média ressentida com o sofrimento dos que sobraram, criamos nossas próprias comunidades para acreditar que nestas as coisas são diferentes do mundo real, e assim deixamos acesa a chama da boa nova; crendo-se que fazer o ritual da comunidade é colocar um novo tijolo na construção dessa outra cidade, a qual teria uma mesa onde todos têm seu lugar. Curioso mesmo é que na metáfora o reino de Deus é uma cidade, e assim é igual São Paulo, cidade à qual os trabalhadores que a levantaram nunca tiveram acesso. Em outras palavras, a experiência que Victor apresenta em seu livro é constitutiva de certa classe social; dentro dessa experiência se tem como referência uma classe subalterna para a qual se deve criar o Reino de Deus, mas criando-a como uma comunidade que essa classe subalterna não consegue acessar ou entender. Seja na cidadania brasileira, seja na cidadania das igrejas de bom coração, os que estão fora do circuito do valor seguem fora de sua participação, mesmo que sejam necessários para a sua formação. Roberto Schwarz já previra algo similar a isso:

Diante das novas tendências estruturais, mais segmentadoras que integradoras, com as suas desqualificações sociais duras e sobretudo o desemprego tecnológico, não será fácil as elites decidirem e entenderem, até para uso particular, em que consiste ser parte de um país ou governá-lo. Só por coração cristão ou deformação esquerdista antiga os cidadãos da faixa atualizada, aliás policlassista, sentirão afinidade com os que sobraram.12

Aos irmãos cristãos de bom coração como Victor e seu mentor, o que sobrou como evangelho foi ressentir que os não integrados à máquina do mundo estejam marcados para morrer. Não sem razão, já que, nesse ritual de sofrimento que chamamos de Brasil, a coisa mais próxima de seguir a Jesus que a classe média pode fazer é tentar reduzir o número de mortos nessa guerra social de baixa intensidade. O conflito no qual o jovem pastor entra e toma posição é o conflito da consciência dos integrados no sistema face aos destruídos por ele; a conversão ganha outro sentido aqui também. Mesmo sem dizê-lo claramente, Victor dá conteúdo teológico para toda uma experiência de certa classe média nacional, que, sendo evangélica e também ressentida com os rumos do mundo, unifica as duas coisas de uma forma particular. Em um cenário no qual a classe média está se desmanchando e a periferização se tornou o novo centro, a pergunta que nos ocorre é se este evangelho está integral, pois, se este for o evangelho completo, ele não é destinado a toda a humanidade.

Notas:

1. Ivone Gebara e Jung mo Sung. Direitos humanos e Amor ao próximo. São Paulo: Editora Recriar, 2020.

2. Rubem Alves. Entre deuses e caquis, prefácio de Por uma Teologia da Libertação, São Paulo: Editora Recriar; Editora Siano, 2019.

3.  A biblista faz seu diagnóstico em Abajo de un cielo sin estrellas (1995); aquele céu estrelado que dava sentido para a luta política parece ter desaparecido nos anos 90. 

4.  Azevedo, 2023, p. 36.

5. Azevedo, 2023, p. 45.

6. Azevedo, 2023, p. 71.

7.  Azevedo, 2023, p. 82.

8.  Azevedo, 2023, p. 101.

9. Azevedo, 2023, p. 103. 

10.  Azevedo, 2023, p. 128.

11.  Azevedo, 2023, p. 85.

12.  Roberto Schwarz, Fim de século, In Sequências Brasileiras, 1999, p. 162.