A base do fundamentalismo cristão se concentra em classes médias da sociedade que comandam as instituições religiosas como reação às expansões e crises do capitalismo


Por Bruno Reikdal Lima. Publicado originalmente pela Revista Pasos, do Departamento Ecumênico de Investigações, n. 172, julho-agosto de 2023, sob o título “Fundamentalismo y reproducción social en América Latina”.

Apoiadores de Bolsonaro – Out. 2022. Sérgio Lima/AFP

Não é necessário apresentar uma longa argumentação sobre a grave situação de crise do sistema capitalista. A crise ambiental global causada pelo desenvolvimento industrial e econômico moderno nos últimos três séculos, o excesso de desperdício e a não absorção dos subprodutos descartáveis do processo produtivo pela dinâmica cíclica de reprodução das condições de equilíbrio para a própria reprodução da vida como a conhecemos, a destruição dos direitos trabalhistas e de seguridade social, o avanço do subemprego ou desemprego, acompanhado pelo aumento de jornadas e a diminuição da capacidade de consumo da maioria das populações no mundo, as recorrentes tensões e ameaças de guerras regionais ou mundiais, novas crises reais ou potenciais de endemias e pandemias, crises institucionais e governamentais no Norte e no Sul global, enfim, muitos aspectos de um quadro generalizado de problemas no qual estamos presos e contra os quais talvez estejamos resistindo e lutando de alguma maneira.

Sob essa crise generalizada de um sistema-mundo moderno e hegemonicamente capitalista, nos interessa o papel desempenhado pelas religiões, em especial as chamadas “fundamentalistas”. Em nosso continente latino-americano, no Caribe e em territórios de Abya Ayala, há uma recente expansão de movimentos religiosos radicalizados e reacionários que, pouco a pouco, começaram a impactar a vida política de nossos países e povos. No Brasil, isso ficou patente com a eleição de Bolsonaro e sua base de apoio, assim como em suas próprias campanhas eleitorais, das quais um dos lemas foi “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Mas o fenômeno também foi visível no golpe na Bolívia em 2019, com os movimentos em torno de Luis Fernando Camacho e com Jeanine Añez, que assumiu sem legitimidade o governo boliviano segurando uma grande Bíblia em suas mãos. Há exemplos em cada um de nossos países, sob o mesmo padrão de crescimento e o apoio de setores de classe média das populações, de modo semelhante e alinhados em agendas comuns.

Nesse sentido, nos últimos anos as discussões a respeito do avanço do chamado “fundamentalismo” (ligado a esses grupos religiosos radicalizados e reacionários) aumentaram gradativamente. Por outro lado, poucas são as análises que relacionam de modo consistente a articulação entre a crise generalizada e o surgimento dos fundamentalismos – em especial no continente. Evidencia-se que há uma conexão entre o grande quadro sob o qual estamos presos e estes movimentos religiosos, mas não se procura apontar quais são seus elementos fundamentais.

Dessa maneira, nesse texto pretendemos indicar alguns dos traços característicos do padrão de avanço dos movimentos religiosos radicalizados e reacionários em nossos países. Propomos apresentar algumas hipóteses que acompanham uma tese geral: o fundamentalismo é um efeito da crise da modernização capitalista e uma tentativa de estabilização da ordem em defesa de privilégios das classes médias.1 

A questão tem múltiplas possibilidades de abordagem e é de extrema complexidade, com particularidades em cada território e, ademais, envolvendo diferentes campos da atividade humana e do saber teórico sobre ela. Por isso, em primeiro lugar, assumiremos algumas definições básicas e a delimitação de nosso foco. Em seguida, observaremos as mudanças históricas e econômicas de nosso continente para indicar como o processo de industrialização e modernização de nossos países no século 20 cria condições para novas espiritualidades (conservadoras e reacionárias). Por fim, concluiremos com algumas considerações sobre estratégias de luta e resistência contra esses movimentos que estão alinhados com a defesa da reprodução social capitalista e em oposição aos projetos alternativos de sociedade.

Fundamentalismo e reprodução social

O primeiro movimento necessário para nossa argumentação é definir o conceito de fundamentalismo. Conforme comenta Jorge Pixley, o fundamentalismo como movimento religioso e social surge nos Estados Unidos, ao final do século 19, e tem suas bases apresentadas em 1912, com a primeira publicação de livretos chamados The Fundamentals. Como Pixley indica, o desenvolvimento teórico fundamentalista se apresenta como uma reação à produção teológica filha do Iluminismo europeu, em especial os métodos histórico-críticos de leitura da Bíblia e as contestações de determinadas doutrinas a partir do avanço das ciências modernas. Por outro lado, o movimento era composto em sua maioria por pequenos proprietários de terra que estavam perdendo sua produção de subsistência e pequenos mercados locais, dado o acelerado processo de industrialização2 imposto pela aliança de uma burguesia nacional e o novo governo pós Guerra Civil.

Trata-se de uma classe média “velha” e de pobres que agora tinham o risco de perder seus meios de vida para uma nova sociedade que emergiu com as cidades e indústrias modernas. O período de transição e reposicionamento desses grupos e famílias para uma nova ordem social e produtiva foi fértil para o surgimento de novas espiritualidades contraditórias em relação às mudanças promovidas pela modernização. A partir da metade do século 19, ocorreu a consolidação de grupos como adventistas, testemunhas de Jeová, mórmons, novos grupos menonitas estadunidenses (advindos de conflitos entre os amish a partir de 1850) e os batistas. Estes, por sua vez, propuseram e formalizaram sistematicamente as bases do fundamentalismo (no início do século 20, também foram o berço dos movimentos pentecostais).

A reação religiosa contra a modernização tem como inimiga a teologia moderna e ilustrada, mas não necessariamente o mundo moderno capitalista. Desse modo, luta ideologicamente para sustentar e manter a ordem patriarcal, valores de dominação tradicionais, mas não a produção familiar de subsistência. Há uma aceitação e adequação ao novo modo de produção, uma transição para as cidades e uma busca por privilégios (além da manutenção de privilégios existentes). É uma reorganização da classe média, agora em adaptação às novas dinâmicas produtivas e sociais, mas em reação à destruição dos valores tradicionais que sustentavam as relações de controle nas pequenas propriedades – e também as relações escravistas, especialmente no Sul dos EUA.

Os conflitos ideológicos do período também são apresentados nas discussões que Angela Davis (2011) nos mostra quando trabalha as contradições entre as lutas feministas brancas e negras na transição da produção familiar para a industrial urbana, assim como entre a dominação patriarcal e os novos papéis desempenhados pelas mulheres de classe média estadunidenses entre a metade do século 19 e o início do 20.3 Em geral, uma mudança acelerada, deflagrada por um processo de modernização capitalista, põe em crise a ordem ideológica e de dominação vigente, o que requer uma adequação desses valores às novas relações produtivas, de modo a promover uma racionalidade de conservação dos valores, mas em busca da defesa de privilégios em uma nova dinâmica e estrutura social – traço característico do fundamentalismo religioso.

Contraditoriamente, portanto, os fundamentalismos nascentes nos EUA se opunham a valores modernos que ameaçavam as justificativas para a dominação patriarcal e racista, mas não à mudança produtiva. Ao contrário, como estratégia, adequavam esses valores à reprodução social em defesa de privilégios de classe (média) e da garantia de inclusão produtiva no novo modo de produção. Sua modernização conservadora também propiciava o imaginário de uma sociedade potencialmente evangélica e responsável pela salvação de todo o mundo – a ideologia muito conhecida do Destino Manifesto.

Nesse sentido, vemos com Pixley uma definição estrita de fundamentalismo: “movimentos religiosos que sejam a) escriturísticos, b) virulentamente antimodernistas, c) autoritários e patriarcais, e d) tenham projetos políticos restauracionistas”. Contudo, devemos compreender que se trata de um antimodernismo limitado ao âmbito ideológico, e não ao produtivo. Pelo contrário, há uma defesa do modo de produção que beneficia os grupos privilegiados de classes médias e também as elites. Por outro lado, também não se deve confundir “restauracionista” com a “reestruturação de uma sociedade medieval” ou “feudalismo”. O restauracionismo diz respeito à manutenção de relações de dominação baseadas em valores desenvolvidos sob outras dinâmicas sociais e produtivas.

Assim, o fundamentalismo está adequado à reprodução social capitalista e a defende à medida em que não põe necessariamente em questão os privilégios e as relações de dominação (especialmente patriarcal e racista). Opera, portanto, como ideologia de manutenção da ordem social vigente. Como indica Hinkelammert, a ideologia é uma explicação da totalidade da realidade social a partir de um ponto de vista que toma posição diante de uma estrutura social e produtiva. Dessa maneira, é sempre comprometida com um projeto de sociedade (vigente e/ou futura) e pode ser conservadora, reformista ou revolucionária: “Como conservadora, afirma e estabiliza a estrutura social existente tal qual é; como reformista, foca mudanças dentro da estabilidade dessas estruturas, e como revolucionária tende a negar às estruturas existentes sua legitimidade […]. Nesse sentido, o pensamento ideológico é sempre um pensamento comprometido, mesmo que muitas vezes não se apresente como tal.”

O fundamentalismo, portanto, se realiza historicamente como uma ideologia conservadora comprometida com um projeto de sociedade nos marcos da manutenção das relações de produção capitalistas, as quais seguem em processos de modernização. Nossa tese, assim, visa articular o movimento religioso radicalizado e reacionário atual de nossas sociedades latino-americanas com a crise da ordem capitalista e suas soluções modernizantes – no século 20 como projetos de industrialização, e a partir dos anos 2000 sob o neoliberalismo e suas agendas de austeridade e mercado total.

A modernização da América Latina e o fundamentalismo

São bastante difundidas e conhecidas as etapas de desenvolvimento e modernização econômica e social em nosso continente. Há vastas discussões e diferentes posições e perspectivas para interpretar todo o nosso processo histórico; mas em termos gerais, é possível indicar três etapas de mudanças produtivas, sociais e de desenvolvimento capitalista na América Latina. Depois das independências nacionais e da constituição de Estados modernos sob marcos liberais ou republicanos de tipo europeu, a partir do final do século 19 e início do 20, temos uma primeira fase de desenvolvimento capitalista e de industrialização entre os anos 1930 e 1950. Novos maquinários, a formação de grandes latifúndios e a expulsão progressiva de camponeses e pequenos proprietários de terra baseados em economias familiares, de subsistência e comércios locais, acompanham a implementação de centros industriais e a expansão gradativa de regiões urbanas.

Em maior ou menor grau, tal movimento ocorre em todo o continente. Ele é conhecido como o desenvolvimento industrial sob a estratégia de substituição de importações, que impulsiona em nossos países novas funções na dinâmica do mercado mundial. Todavia, esta janela de oportunidade de mudança econômica sob a industrialização capitalista foi limitada e propiciada por uma conjuntura muito particular, na qual os países industrializados (e centrais no mercado mundial) estavam em crises econômicas internas e envolvidos nas grandes guerras no território europeu (1918-1945). Com o fim desse período, o centro volta sua atenção para a periferia e percebe ameaças à ordem centro-periferia estabelecida, dadas as novas estratégias de modernização em disputa – tanto as realizadas sob os marcos capitalistas quanto as desenvolvidas partir de revoluções e de novos movimentos camponeses, operários e populares, animados pelos ideais comunistas e apoiados por estes.

Desse modo, a partir do fim da década de 1950, uma ofensiva do centro do capitalismo começa contra os projetos de desenvolvimento nacional independentes em nosso continente. Some-se a isso os limites das estratégias de desenvolvimento escolhidas por nossas elites e temos o fim da primeira etapa de modernização, que agora encontra uma terra com novas cidades, grandes latifundiários e famílias com cada vez menos meios de manutenção de sua própria vida. As indústrias não são suficientes para absorver a mão de obra, e a terra está cada vez mais concentrada. Ademais, os pequenos produtores enfrentam mais dificuldades para competir com a indústria do campo (que se volta para atender as necessidades dos países do centro, para exportação, e não as necessidades de nossos povos).

Nesse quadro geral, há uma grave crise de produção e de garantia dos meios de vida para as maiorias. A partir da década de 1950, portanto, começaram movimentos populares mais radicalizados, em busca de novas alternativas de desenvolvimento. A segunda etapa, assim, será conhecida pelas lutas de libertação e por projetos de desenvolvimento autônomo, alternativo e independente dos centros capitalistas, assim como a reação destes (constituída pela aliança entre elites e classes médias locais e as estratégias das elites do centro, em especial os EUA). Temos, dessa maneira, a Revolução Cubana (1959) e o início da reação radicalizada das ditaduras cívico-militares, apoiadas pelos Estados Unidos e sob as doutrinas de Segurança Nacional (começando com a ditadura brasileira no Cone Sul, em 1964).

Esta segunda etapa de modernização capitalista nos países tomados pelas ditaduras foi marcada por uma industrialização dirigida pelo Estado a serviço das elites locais e alinhada com os interesses imperialistas estadunidenses, durante a chamada Guerra Fria (1946-1989). É um período violento e de enfrentamento no campo e nas cidades. A modernização capitalista avançou, ameaçou a vida das pessoas, potencializou a expulsão dos camponeses e o crescimento desordenado dos centros urbanos. As grandes favelas e periferias cresceram exponencialmente, assim como o desemprego e a incapacidade dos serviços públicos em atender as necessidades das maiorias. Um crescimento desordenado e desequilibrado.

Nesse período, a resistência popular também é grande. É o período mais potente da Teologia da Libertação e dos movimentos de religiosidade popular. Seu maior alcance foi nas regiões do interior de nossos países, conectadas com a luta pela vida no campo e contra as contradições da modernização. Nas novas cidades, a rede de luta ainda não tinha raízes. Assim, o povo que chegava do campo em busca de trabalho ficava nas periferias e sem apoio familiar, comunitário ou tradicional. Era necessária a criação de novas organizações e espiritualidades. Nesta conjuntura, crescem as tradições protestantes novas – especialmente as pentecostais –, adequadas às dinâmicas das cidades e nascidas das crises da modernização nos países do centro do mercado mundial.

Se no campo a resistência lutava e encontrava meios para defender a vida das comunidades, nas cidades as novas ordens religiosas o faziam com outro modo de trabalho, outro projeto religioso e institucional, e com uma nova organização de redes de apoio mútuo. Tratam-se da formação de laços sociais nas periferias urbanas. Neste segundo caso, se estabelecia uma espiritualidade adaptada às novas dinâmicas sociais modernas, mas conservadora em seus costumes e ideologias. Filhas do conservadorismo fundamentalista estadunidense, essas novas espiritualidades operavam no pólo oposto ao das espiritualidades libertadoras, comprometidas com a luta popular tradicional no continente. Novas configurações sociais e novas contradições promoviam o fundamentalismo discretamente, na aparente luta entre a ordem (industrial, capitalista e moderna) e a rebelião (camponesa, socialista e “atrasada”).

Com as perseguições e violências internas, assim como com o fim do bloco socialista centrado na URSS (1989), uma terceira etapa de modernização capitalista se desenvolveu na América Latina. Estamos nos referindo à estratégia de mercado total implementada por meio da abertura econômica ao capital internacional, aliada às democracias neoliberais. Agora, o mercado mundial quase não encontra resistência para seu avanço sobre as relações sociais. Dessa maneira, a partir da década de 1990, os grandes projetos de privatização e ajustes estruturais entraram em voga e destruíram os direitos básicos e o acesso aos meios de produção, reprodução e desenvolvimento da vida da maioria das populações, agora não mais concentradas no campo, mas em transição para as cidades (onde só é possível ter acesso aos meios de vida se a população está incluída no processo produtivo e, portanto, com renda mínima para pagar pelos serviços essenciais).

Esse período contraditório tem avanços e retrocessos do ponto de vista dos novos movimentos sociais. De todo modo, o mais interessante é que se trata de uma etapa na qual o crédito para consumo aumenta para as massas. Estas, mais adaptadas às novas dinâmicas produtivas, têm em trabalhos informais ou autônomos, sem cobertura de seguridade social, a possibilidade de garantir os meios de vida. Em um primeiro momento, isso aparece como uma vitória, dado que nesse momento chegam em muitas casas eletrodomésticos antes inacessíveis, e há uma melhoria na educação formal de algumas camadas sociais baixas que formam as chamadas novas classes médias: classes pobres com acesso a privilégios de educação e consumo.

Sob esses marcos gerais, tivemos entre os anos de 1990 e 2000 o ápice do avanço das religiões pentecostais e protestantes adequadas à nova ordem econômica – em especial entre as chamadas “classes médias baixas” e os pobres. Há, por um lado, portanto, uma potencialização de movimentos alinhados aos fundamentalismos e tradicionalmente ligados aos interesses dos EUA. Por outro, emergem novos movimentos sociais ligados às lutas das minorias e novos sujeitos sociais. Ao mesmo tempo, surge uma onda de governos progressistas e o aumento de blocos conservadores e fundamentalistas. A partir dos anos 2010 (em especial depois da crise financeira mundial de 2008), uma nova rodada de movimentos reacionários é impulsionada em nome da manutenção da ordem capitalista – e, portanto, de uma nova proposta de modernização que teve como apoio os grupos conservadores, testados mais uma vez em sua defesa contraditória adequada ao capitalismo.

As camadas sociais comprometidas com esta luta são as classes médias privilegiadas e beneficiadas pela ordem. Estas classes estão ligadas aos centros urbanos e têm uma espiritualidade fundamentalista. Operam, por sua vez, uma função de estabilização da ordem,e utilizam seu privilégio para ocupar cargos decisórios na sociedade (seja no poder público com frentes parlamentares religiosas ou com uma estratégia missionária focada em empresários), assim como recebem apoio de instituições religiosas e políticas estrangeiras (em especial, claro, estadunidenses). Nas igrejas, tradicionalmente, portanto, os cargos decisórios e de poder são ocupados por pessoas destas classes médias, as quais guiam suas comunidades a partir de seus interesses. Orientam, portanto, as massas pobres de fiéis para tomadas de posição que não correspondem aos interesses próprios de seus pares do mesmo grupo social.

Obviamente, fazemos aqui uma generalização do quadro, que tem suas especificidades em cada território e população. De todo modo, o interesse está em compreender que o avanço do fundamentalismo não diz respeito exclusivamente a uma capacidade de convencimento missionário de uma mensagem evangélica alienada do processo histórico, social e econômico no qual ela se encontra. O fundamentalismo se potencializa nas contradições da modernização capitalista e atua de maneira adequada à reprodução social, mas em defesa de seus privilégios – de classe e, claro, ideologicamente justificados. O fundamentalismo na América Latina pode ser observado a partir das lutas populares, de ação e reação.4

As classes sociais e o fundamentalismo

A manutenção, busca, produção e/ou reprodução de uma religiosidade ou espiritualidade se dá sob as dinâmicas de reprodução social. Somente é possível ler a Bíblia, ir ao culto, à missa, caminhar com nossos grupos religiosos e vivenciar nossas experiências de fé junto a irmãs e irmãos se, antes de tudo, estivermos vivos. Nossas possibilidades de vida não são decididas somente pelos nossos, isoladamente, senão em interdependência com todos os demais e com a organização da produção social como um todo. A garantia de reprodução das condições e dos fatores de produção é um ponto básico e necessário para que no dia seguinte possamos voltar a trabalhar e realizar nossos meios de vida.5

Assim, tenhamos em conta um modelo muito simples, apenas como ilustração ideal e genérica de como deveria funcionar a reprodução social sob o capitalismo, para que vejamos onde e como se dão as lutas em torno do avanço do fundamentalismo:

Idealmente, um produto social total é produzido e utilizado para garantir as condições de vida da totalidade da ordem social e produtiva. Quando distribuído, este produto deve ser “reprodutivo” à medida em que paga os custos de produção, e garante uma renda necessária para a manutenção da força de trabalho e dos próprios meios de produção. A força de trabalho precisa estar viva e disponível no dia seguinte. Desse modo, pressupõe-se que estão disponíveis meios de vida necessários para sua reprodução e salários compatíveis com o mínimo necessário para sua vida. Os trabalhadores e as trabalhadoras, portanto, venderam sua força de trabalho para ter salários suficientes para garantir sua vida e a produção de um novo produto social total. Sob o capitalismo e a forma de propriedade privada, os meios para produzir este produto social total são privados e, dessa maneira, as pessoas têm que vender sua força de trabalho para os donos dos meios de produção, que, por sua posição na divisão social do trabalho, coordenam e gerenciam a produção total.

Este novo produto total é distribuído no capitalismo sob a forma de mercadorias que são produzidas não para o consumo, mas para a venda. Assim, fecha-se o ciclo na medida em que, com a venda das mercadorias, são distribuídos os recursos necessários para garantir a reprodução das condições e dos fatores de produção. A reprodução social começaria um novo ciclo.

Contudo, não é assim que as coisas ocorrem. A forma de distribuição pelo mercado apenas garante o acesso ao necessário para a reprodução social às pessoas que estiverem incluídas no ciclo produtivo. Alguém que não tem salário ou renda não tem garantido o necessário para a reprodução de sua vida e de sua família ou seus dependentes. Dessa maneira, é possível que a reprodução social seja realizada independentemente das grandes massas da população. E do ponto de vista do sistema produtivo, isso não é um problema. Se a produção do produto social total é realizada e, ao ser distribuída, não diminui o lucro obtido por meio do mercado em um determinado período, a garantia das condições de vida de pessoas não incluídas no processo de produção não aparece como necessária.

Portanto, para os incluídos e mesmo privilegiados, o sistema oferece condições para sua reprodução e para a reprodução estável de sua família. Por outro lado, a exclusão e os desequilíbrios precisam ser justificados e legitimados para os outros que não estão incluídos. Aí entra a função ideológica: a explicação das vantagens, da justiça e necessidade desse sistema que não contempla condições de vida para todas as pessoas. Entram em jogo os interesses das classes e como estas disputam, se coordenam, organizam, conformam ou confrontam a ordem.

Vejamos, mais uma vez, outro modelo geral que reflete esquematicamente a divisão das classes no interior da reprodução social:

Esta divisão de classes leva em conta o fundamental para a reprodução social, que é a função desempenhada por cada camada social: a posição, portanto, tem mais a ver com o papel no interior da divisão social do trabalho do que com a renda individual. Isso é central em um primeiro momento para não confundir classe com capacidade de consumo. Ao mesmo tempo, não são negadas as diferenças salariais e de renda, senão que estas são compreendidas a partir da reprodução social. Desse modo, é possível compreender, inclusive, que a renda muitas vezes varia entre as classes médias, de tal modo que alguém com um trabalho com maior instabilidade ou insegurança pode ter salários maiores e melhores que classes de uma posição mais privilegiada e estável.

Contudo, o mais importante é perceber que a diferença qualitativa entre a classe capitalista e as demais é o controle sobre os meios de produção e, portanto, sobre a coordenação social do trabalho e os rumos da produção social. A gerência das finanças e da administração técnica da produção em cada setor, por sua vez, cria uma classe média alta, que participa ativa, mas subordinadamente nas tomadas de decisões sobre a produção social. Seriam os hoje chamados “CEOs” das grandes corporações e dos grandes grupos financeiros. Mas, para o funcionamento da “máquina social”, são necessárias funções de manutenção do sistema e de seus fatores. Assim, temos uma camada de classes médias de profissionais liberais (como médicos, juízes, advogados, docentes e etc), que tratam de sustentar os trabalhadores e a própria ordem social que garante os marcos para transações, mudanças, tomadas de decisões e o funcionamento de serviços e indústrias.

Neste grupo, também poderíamos adicionar os médios e pequenos empresários, que muitas vezes são terceirizados para baixar os custos de produção das grandes empresas, gerando uma competição entre estas pequenas empresas que acumulam trabalhos administrativos e produtivos – aliviando os gastos das grandes empresas com determinados setores e mesmo com salários e disputas por preços baixos. Em uma camada mais baixa, temos os trabalhadores qualificados e assalariados de trabalhadores da indústria ou no campo. São trabalhos que exigem qualificação específica, mas não de manutenção do sistema produtivo, senão da produção “efetiva”. Ocupam um tipo de posição de transição entre as classes médias tradicionais e os grupos por vezes denominados “novas classes médias”.

A diferença entre esse grupo e as classes baixas que por vezes podem ser confundidas com as “novas classes médias” (observadas a partir do aumento da capacidade de consumo, especialmente mediante acesso facilitado a crédito) é a função de trabalho assalariado não qualificado, muitas vezes reprodutivo, em serviços e trabalhos de muita exigência da força física. Dessa maneira, as classes baixas assumem empregos instáveis e muitas vezes temporários. Por sua vez, também têm suas posições na reprodução social ameaçadas pela força de trabalho não absorvida e sem qualificação, que, buscando ser incluída no sistema produtivo, força uma diminuição dos salários e uma situação de substituição de mão de obra. Como classe baixa de empobrecidos, desenvolvem serviços informais, sob subemprego ou desemprego, e dependem de programas sociais ou apoios de redes solidárias, voluntariado, ou mesmo da criminalidade.

De todo modo, toda esta ordem social sob classes necessita de justificação e legitimação. A religião, por vezes, enquanto garantidora de laços sociais e redes de apoio para as classes baixas e empobrecidas, opera como meio de compreensão da realidade social. Dessa maneira, pode crescer como instituição entre as classes empobrecidas e, ao mesmo tempo, reproduzir uma ideologia de defesa da manutenção desta ordem, à medida em que suas lideranças são grupos que obtiveram uma educação formal qualificada, própria das classes médias. São organizadas, portanto, hierarquicamente a partir de grupos de classes médias e de seus interesses em disputa no interior da reprodução social. 

Estas classes, por sua vez, ao passo que desenvolvem importantes funções na produção e na manutenção do sistema produtivo, têm um papel com menor estabilidade. Isso porque, à medida em que classes mais baixas acessam serviços de educação formal mediante crédito ou mesmo como efeito da inclusão de uma geração anterior no sistema produtivo, estas colocam em risco a estabilidade das classes médias “tradicionais”. Assim, do ponto de vista das classes médias em suas variações, a luta é por posições privilegiadas – seja por conquista ou por manutenção de privilégios. Desse modo, a tendência é que assumam uma posição conservadora em relação ao sistema social de produção. 

Como temos visto, trata-se de um ambiente propício para um discurso e uma prática organizacional e institucional fundamentalista e conservadora. Esta apoia, por um lado, o modo de produção capitalista; mas, por outro, luta para manter estruturas de dominação que garantam privilégios por meio de ideologias de legitimação do domínio, controle e exploração. Caso enfrentem uma ameaça aos seus privilégios, caçam os “culpáveis” pela desestabilização da ordem social. Assim, um problema estrutural da reprodução social sob o próprio capitalismo se converte em uma questão de valores sociais e religiosos, morais, colocados em perigo pelos corpos e as novas “ideias” de sujeitos sociais (identificados como causadores do problema, o que substitui uma crítica à ordem social como uma totalidade contraditória, injusta e mesmo irracional em sua maneira de organizar a produção, distribuição e consumo do produto social total).

Estratégias e resistências: o fundamentalismo no caso brasileiro

Com suas diferenças e particularidades, em todo o continente temos um movimento muito semelhante com respeito ao crescimento do fundamentalismo entre os grupos cristãos (sejam protestantes ou católicos). A própria expansão evangélica tem uma curva de crescimento geral comum, e acompanha as mudanças sociais que são fruto da modernização capitalista em suas etapas. A adaptação e reação entre católicos, com novos movimentos carismáticos e midiáticos, segue as tendências propiciadas por estas mudanças sociais e produtivas, com suas contradições e evoluções. O fundamentalismo não cai do céu e nem vem do inferno: é fruto de nossa história, e nela temos que enfrentá-lo.

Para isso, é importante uma análise (ainda que geral e simplificada) como a que realizamos no presente texto. Na reprodução social, sob uma determinada divisão de classes, são demarcadas as possibilidades de ações e de produções ideológicas em disputa pelos rumos da sociedade. Em cada camada social a luta aparece de um modo, com um determinado sentido, e requer estratégias distintas. Uma coisa é o enfrentamento entre as classes médias que protagonizam a dirigência institucional das igrejas. Outra coisa é a disputa junto às classes empobrecidas que ocupam a maioria das cadeiras de fiéis em cultos e missas. Uma coisa é a discussão ideológica contra o profissional da ideologia. Outra é contra o consumidor e membro fiel da instituição orientada por grupos de ideólogos.

Nas eleições gerais no Brasil dos últimos quinze anos, por exemplo, a participação de religiosos (em especial, evangélicos) fundamentalistas aumentou muito, e chamou a atenção da mídia tradicional e de pesquisadores. O que lhes interessa é a função disruptiva desses grupos, ao mobilizarem as classes populares em uma direção contrária à tendência normal de seus próprios interesses ou posições tradicionais de classe. Isso porque entre a maioria pobre da população brasileira (50% mais ou menos) o apoio aos partidos de esquerda (em especial, o Partido dos Trabalhadores) é hegemônico, e constitui sua maior base. Entretanto, entre o 30-35% de evangélicos da população, a tendência é outra. A maioria dos fiéis evangélicos é das classes baixas e empobrecidas (em torno de 60%), mas o apoio à esquerda é minoritário neste segmento: apenas 30% dos evangélicos declaram apoio ao Partido dos Trabalhadores, por exemplo.6

Neste quadro, a mobilização popular nesse grupo religioso desvia da tendência da sociedade em geral e, portanto, interessa às classes médias e às elites este componente religioso. O fundamentalismo, historicamente constituído junto a estas bases, aparece como um recurso social importante para a luta ideológica em defesa da ordem social. Recebe, assim, apoio e privilégios. Mas não todo o grupo, senão as lideranças dirigentes, “filhas” das  (novas) classes médias que organizam suas instituições sob a defesa de suas posições. Reproduzem em sua hierarquia e nas pregações os valores conservadores adequados a este tipo de luta, aliados à fé popular que se organiza em torno da sobrevivência e da luta por inclusão no sistema produtivo – oferecendo laços sociais, redes de proteção social e mesmo atendendo pessoas com serviços que não são ofertados nem pelo Estado, nem pelo Mercado nas periferias das cidades.

A defesa da igreja e de seu fundamentalismo tradicional por parte das classes baixas está conectada com a defesa das condições de reprodução de sua própria vida e de suas famílias. Assim, se convertem ideologicamente em aliadas das classes médias em luta por seus privilégios, que, por sua vez, se adequam aos interesses de manutenção da reprodução social sob o capitalismo orientado pelas elites. No Brasil, isso ficou muito claro nas eleições de 2022, e as alianças formadas entre os grupos religiosos e empresariais junto ao movimento fascista que sustentava a figura de Jair Bolsonaro. A adesão popular à campanha de Lula (seu principal adversário) tinha pouco a ver com a luta religiosa e a mobilização de evangélicos mais ligados à esquerda. A base de apoio popular que garantiu a derrota eleitoral (e não social) do fascismo foi a tradicional entre os mais pobres, sem grande impacto ou interferência das organizações evangélicas que trataram de criar grupos antifundamentalistas.

O desvio da tendência geral no segmento evangélico não sofreu alterações. Isso porque a disputa ideológica realizada contra o fundamentalismo que se alinhava com o fascismo bolsonarista ficava limitada às classes médias e dirigentes. Não eram percebidas as diferenças entre as classes sociais e suas respectivas estratégias de atuação. Desta maneira, a disputa ideológica aparecia às pessoas como uma disputa pela fidelidade dos fiéis, uma disputa entre lideranças, com suas igrejas e instituições, contra outras lideranças e instituições pela fé verdadeira, e não como uma luta de resistência política, econômica e social. A discussão, portanto, terminava nos limites dos grupos de classe média por visibilidade e narrativas. Não estava em questão o enfrentamento nas periferias e a ausência das condições de produção e reprodução da vida das pessoas – muitas vezes atendida exatamente pelas instituições religiosas que aí se desenvolveram historicamente a partir dos valores fundamentalistas, sob a direção central das classes médias.

O que fica claro é que, no fundo, a luta contra o fundamentalismo só é possível se está aliada a um projeto alternativo de sociedade que exponha as contradições sociais e as lutas de classes que ocorrem internamente nas próprias igrejas. Isso, por sua vez, aparece como um problema na manutenção da ordem hierárquica de todas as instituições religiosas – estejam estas baseadas no fundamentalismo ou não. Isso porque tais projetos põem em questão a manutenção de privilégios e da ordem de dominação religiosa direta, escapando do controle das classes médias. Exigiriam, portanto, uma nova ordem religiosa mais democrática e popular, que promovesse autonomia aos fiéis para questionar os privilégios religiosos e/ou sociais que sempre estão alinhados.

Notas:

1. Discussões sobre essa tese foram desenvolvidas com maior cuidado nos últimos anos, com uma abordagem a partir da realidade brasileira, desde as eleições de 2018. Assim, é possível acompanhar o amadurecimento e o desenvolvimento da temática na coletânea Fascismo como religião (2022), publicada pela Editora Pajeú, e nos artigos Fascismo como religião nas eleições de 2022, No vale de lágrimas entre a religião e a política.

2. Sobre o tema, ver de Charles Sellers, The Market Revolution: Jacksonian America (1815-1846) (Oxford: Oxford University Press, 1991), em especial o primeiro capítulo. Com o avanço da modernização capitalista nos Estados Unidos, toda a estrutura baseada na propriedade familiar, com uma divisão patriarcal do trabalho familiar orientada para a subsistência, fica ameaçada e é progressivamente substituída por novas dinâmicas produtivas urbanas e industriais.

3. É fundamental ler sob esta perspectiva os primeiros cinco capítulos de Davis em Mulheres, raça e classe (São Paulo: Boitempo, 2016).

4. Muitas de nossas reflexões aqui desenvolvidas tem como referência o trabalho sobre a reprodução social sob as crises do capitalismo desenvolvido por Wim Dierckxsens, em especial Capitalismo y población (San José: Departamento Ecuménico de Investigaciones [DEI], 1979) e Los límites de un capitalismo sin ciudadanía (San José: DEI, 1998).

5. Esta é uma tese básica das teorias econômicas que projetam desenvolvimento equilibrado, em especial atualizadas criticamente na produção teórica de Franz Hinkelammert e Henry Mora Jiménez em Hacia una economía para la vida (San José: DEI, 2005).

6. Uma análise desses dados e suas fontes de modo detalhado podem ser encontrados no artigo anteriormente mencionado, No vale de lágrimas entre religião e política.