A fala de Jesus em Mateus 19 sobre os eunucos diz respeito à acessibilidade do Reino de Deus, em que o abandono dos padrões da masculinidade anunciava uma nova humanidade


Série: A Bíblia e meus amigos LGBTQIAP+ (Parte 3). Texto originalmente publicado na Bodega de Bíblia. Leia também a parte 1, e a parte 2.

É comum entre estudiosos críticos dos Evangelhos e do Jesus Histórico contrapor os ensinos de Jesus, em seu contexto histórico, com a forma como os ensinos de Jesus foram compostos literariamente pelos evangelistas. Ainda que esse seja um exercício acadêmico válido, às vezes a contraposição entre contexto histórico e literário é forçada ou, no mínimo, pressuposta. Eu acredito que o caso de Mateus 19 nos apresenta um exemplo bem diferente sobre um aspecto do método de composição literária seguido pelos evangelistas. 

Vamos, novamente, comparar como Marcos, Mateus e Lucas utilizam uma fala de Jesus sobre divórcio e segundo casamento como adultério. Como vimos no último artigo, o texto-base é Marcos 10. O contexto histórico recordado por Marcos é uma situação em que fariseus colocam Jesus à prova com uma pergunta sobre a validade de um homem se divorciar da sua mulher (v. 2). Para nossa investigação, a fala importante é a conclusão do ensino de Jesus: “Todo aquele que se divorciar de sua mulher, e se casar com outra mulher, estará cometendo adultério contra ela” (v. 11). Eu não quero apontar as diferenças de redação entre os evangelistas, mas simplesmente sublinhar como essa conclusão é utilizada na composição literária de cada um. 

Mateus utiliza essa conclusão em duas ocasiões. Uma delas está em nosso texto de Mateus 19. Ali, como vimos no último artigo, essa conclusão dá ocasião para um questionamento dos discípulos e Mateus insere o logion sobre os eunucos (Mt 19.11–12) para dar uma conclusão definitiva à discussão levantada pelos fariseus. Neste caso, Mateus preserva o esquema narrativo de Marcos 10 e até sua composição literária, seguindo o evento com as narrativas sobre as crianças (Mc 10.13–16; Mt 19.13–15) e sobre o jovem rico (Mc 10.17–31; Mt 19.16–30), mas estabelece uma conclusão diferente, com um propósito mais amplo, como veremos. A segunda ocasião em que Mateus usa a conclusão de Marcos é no Sermão do Monte. Aqui, Mateus utiliza a conclusão máxima sobre o segundo casamento como adultério como parte do ensino de Jesus sobre adultério (Mt 5.27–30), de forma totalmente independente do contexto histórico da narrativa de Marcos 10. Apesar dessa dissociação, Mateus busca manter alguma relação com o contexto histórico. Ele introduz a conclusão com uma variação da fórmula característica do Sermão do Monte (“Vocês ouviram o que foi dito aos seus antepassados”… “Mas eu lhes digo”), citando a “certidão de divórcio” (Mt 5.31), que é a discussão trazida pelos fariseus em Marcos 10 e Mateus 19. Assim, apesar de separada do contexto histórico, Mateus ainda segue a mesma lógica desse contexto para utilizar a conclusão em sua composição literária.

O caso de Lucas é diferente (Lc 16.18).1 Se ficarmos presos à lógica do ensino de Jesus sobre divórcio, a forma que Lucas utiliza a conclusão de Marcos 10.11 não fará sentido. A conclusão aparece em Lucas logo depois de uma afirmação ambígua de Jesus: “Por isso, é mais fácil o céu e a terra desaparecerem do que cair um pequeno traço da lei” (Lc 16.17). Essa fala é ambígua porque não fica claro se Jesus diz isso de forma afirmativa ou negativa. Parece-me que Lucas, de sua própria forma um tanto indireta, está ampliando a lógica de Jesus sobre a interpretação da lei em relação ao seu ensino e ao reino de Deus. Lucas também usa a conclusão sobre divórcio e segundo casamento como adultério no contexto de crítica aos fariseus (Lc 16.13–15). Logo em seguida, Jesus fala sobre a Lei e os Profetas, o evangelho do reino de Deus e pessoas forçando sua entrada nele (Lc 16.16). Na imagem da entrada violenta e de conflito, Lucas estabelece alguns pontos importantes: (1) A entrada do reino de Deus é para todos (πᾶς, pas); (2) a necessidade de força/violência (βιάζεται, biazetai) implica que há impedimentos para tal entrada;2 (3) o conflito está no uso da Lei, sendo que os fariseus a usam para impedir a entrada no reino de Deus, e Jesus e seus discípulos a usam para permitir a entrada de todos no reino de Deus. A lógica de Lucas é semelhante à lógica de Mateus ao incluir o logion de Jesus sobre os eunucos, ou seja, a questão é como interpretar a Lei para permitir o acesso ao reino de Deus em vez de fechá-lo, como faziam os detratores de Jesus e seus discípulos. Nessa lógica, a função da conclusão sobre divórcio e segundo casamento como adultério dada por Lucas é ilustrativa.3 Lucas mostra que, sim, a Lei e os Profetas permanecem, assim como a criação permanece, mas existem “pequenos traços” que devem cair por meio de uma interpretação mais adequada. O que seria essa interpretação mais adequada?

Dado o contexto em Lucas, que fala sobre o amor dos fariseus pelo dinheiro, e o ensino mais amplo de Jesus por todos os evangelhos, é razoável resumir essa adequação citando o texto de Mateus 23. Ali, Jesus fala que a interpretação dos fariseus fecha “o reino do céu diante das pessoas; vocês mesmos não entram e nem permitem entrar os que desejam entrar” (Mt 23.13). Mais adiante, ele contrasta certos valores da interpretação farisaica com aquilo que há de mais importante na Lei: “a justiça, a misericórdia e a fidelidade” (Mt 23.23). É muito interessante, porque, por um lado, essas exigências são pesadas. A entrada no reino de Deus não é fácil, de forma alguma.4 As demandas são, sim, impeditivas para quem não deseja abrir mão de poder, privilégio, fama e riqueza. Aqui é importante esclarecer, então, em que sentido a interpretação dos fariseus fechava o reino de Deus para muitos e em que sentido a interpretação de Jesus e seus discípulos abria o acesso ao reino de Deus para muitos. Objetivamente, interpretações da Lei que fazem demandas que não avançam a justiça, a misericórdia e a fidelidade, estão fechando as portas do reino de Deus indevidamente, tipicamente, para pessoas cujo “erro” não tem a ver com ética e devoção, mas com alguma característica de sua identidade que não se conforma com o “padrão”; já interpretações que fazem demandas que, sim, avançam a justiça, a misericórdia e a fidelidade, estão abrindo as portas do reino de Deus para todos os que estão dispostos a cumprir essas demandas, independentemente de qualquer característica de sua identidade “fora do padrão”. O interessante é que, de certa forma, essa diferença na interpretação da Lei abre as portas para quem as lideranças religiosas queriam fechar, e fecham as portas para as lideranças religiosas que não querem abrir mão de seu poder e privilégio. 

Neste artigo quero mostrar como a inclusão que Mateus faz do logion sobre os eunucos segue uma lógica semelhante a essa de Lucas. A percepção de Mateus, que eu defenderei aqui, é que a questão dos eunucos é muito mais ampla do que a questão do divórcio e do segundo casamento como adultério. Assim como Lucas, Mateus cria sua composição tendo uma questão teológica muito maior e mais profunda, que somente se torna perceptível quando deixamos de lado alguns pressupostos.

Crianças e a entrada no Reino do Céu

O primeiro aspecto do contexto literário de Mateus 19 que precisamos considerar é sua opção por manter a sequência de eventos apresentada em Marcos 10. Essa sequência é a seguinte: Questão sobre divórcio e segundo casamento como adultério (Marcos 10.2–12; Mateus 19.3–12); acesso de crianças a Jesus (Marcos 10.13–16; Mateus 19.13–15); contraste entre o jovem rico e os discípulos em sua disposição de abrir mão de tudo (Marcos 10.17–21; Mateus 19.16–30). Existem outras semelhanças na sequência de Marcos e Mateus, e elas também são relevantes para entender o significado que Mateus dá para o logion de Jesus sobre os eunucos, mas trabalhar com esses três eventos e ensinos de Jesus é o suficiente para nosso tema.

Alguns intérpretes conseguem perceber a conexão entre a fala de Jesus sobre divórcio e segundo casamento como adultério e seu ensino sobre crianças logo a seguir. Para tais intérpretes, falar sobre crianças faz sentido depois de uma discussão sobre casamento e divórcio.5 De fato, a questão da sexualidade e da família é uma conexão importante. No entanto, esse foco específico pode atrapalhar se for visto sob o assunto mais amplo: a acessibilidade do reino do céu. Eu argumentarei bastante para fundamentar essa afirmação, mas aqui eu quero só mostrar o que acontece quando se perde de vista o assunto mais amplo da acessibilidade do reino do céu.  Em primeiro lugar, toda a narrativa sobre o jovem rico, em contraste com os discípulos, perde sua conexão com seu contexto literário.6 Em segundo lugar, o significado da fala de Jesus sobre as crianças se torna um tipo de amenização do chamado ao discipulado radical de Jesus, que chama seus discípulos a se tornarem eunucos. David Turner diz o seguinte: “Ao afirmar o valor das crianças, Jesus também, implicitamente, apoia o casamento”.7

A acessibilidade do reino do céu é um assunto que conecta bem a composição das narrativas de Marcos 10–11. Contudo, parece que Mateus o torna um fio condutor de toda essa parte final do ministério de Jesus, do capítulo 18 até o capítulo 25. Aparentemente, a discussão da interpretação da Lei sobre divórcio e segundo casamento como adultério parecia um pouco deslocada desse fio condutor de Mateus. É aqui que a inclusão que Mateus faz do logion de Jesus sobre os eunucos se torna fundamental para todo esse fio condutor, e não somente para encaixar melhor a narrativa sobre divórcio e segundo casamento como adultério.

Como vimos no último artigo, a figura do eunuco cumpre um importante papel ao apontar para a acessibilidade do reino do céu e a responsabilidade dos discípulos de serem seus “guardiões”, não para impedir, mas para permitir o acesso8 ao reino. Logo em seguida, temos uma narrativa em que os discípulos cumprem seu papel de “guardiões”. Mas eles fazem exatamente o oposto do que deveriam. Eles impedem o acesso ao reino do céu, representado na pessoa de Jesus. Por quê? O texto não explica, mas temos bons motivos para sugerir algo. 

Em Mateus 18.1–6 Jesus relaciona uma pequena criança (παιδία, paidia)9 com a humildade necessária para que seus discípulos “entrem no reino do céu” (εἰσέλθητε εἰς τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν, eiselthēte eis tēn basileian tōn ouranōn, v. 3). Jesus vai além e se identifica com o caráter humilde de pequenas crianças, e faz do acolhimento e cuidado a elas um ato feito para ele (v. 5). Quando chegamos em Mateus 19, a identidade humilde comum a pequenas crianças e Jesus está por trás da narrativa. Os discípulos parecem acreditar que Jesus não tinha tempo ou se preocupava com “questões pequenas”.10 Assim, os discípulos fecham a entrada do reino do céu para um grupo de pequenas crianças por atrelarem suas identidades a um caráter indigno. 

Agora podemos apreciar melhor o logion de Jesus sobre eunucos, sua identificação com pequenas crianças e a entrada no reino do céu. Assim como Jesus se identifica com pequenas crianças, ele estabelece a identificação com elas como critério para pertencer ao reino do céu (Mateus 19.14c). O que Jesus faz ao se identificar com pequenas crianças, exatamente no aspecto de sua identidade que seus discípulos consideravam indigno, é provocar a típica inversão do reino do céu. Os discípulos, se quiserem entrar no reino do céu, terão que se identificar com esse grupo exatamente naquilo que eles acreditavam ser indigno do reino do céu. A mesma coisa acontece com os eunucos. Assim, as pequenas crianças em Mateus 19.13–15 cumprem o mesmo papel que os eunucos em Mateus 19.11–12. A conexão entre os dois grupos, porém, vai além.

Em Mateus 18, a ênfase no caráter humilde das pequenas crianças é explicitado. Em Mateus 19, esse caráter é implícito, mas a ausência de uma qualificação pode ser intencional. Em Mateus 19.14c, Jesus simplesmente diz que o reino do céu é “dos que são como elas” (τῶν… τοιούτων, tōn… toioutōn). A questão não é só a pequenez como representação de humildade, mas também de ser desprezado por não ser importante ou até digno.11 Além disso, como Jesus se identifica tanto com as pequenas crianças quanto com os eunucos, e espera que seus discípulos façam o mesmo, podemos considerar mais uma semelhança entre eles. Eunucos e crianças estão fora das dinâmicas sociais relacionadas à sexualidade.12 A questão não é necessariamente sobre sexualidade, ou seja, ausência de práticas sexuais ou de identidade sexual, mas as responsabilidades e papeis sociais atrelados a ela. A relação entre eunucos e pequenas crianças não está em serem “assexuais” ou “pressexuais” ou “não-sexuais” em si,13 mas sim em como ambos os grupos não correspondem com as responsabilidades e papeis sociais definidos por sexo biológico, gênero e sexualidade.

Com o logion de Jesus sobre os eunucos, que é incluído por Mateus, todas essas relações sobre acessibilidade do reino do céu, seguindo uma lógica invertida, ganham um novo e profundo significado. Como para muitos de sua época, inclusive para seus discípulos, a entrada no reino do céu por homens dependia do cumprimento de certas responsabilidades e papeis sociais atrelados à sua sexualidade, Jesus garante a acessibilidade do reino do céu ao associá-lo a pequenas crianças e eunucos. Essa é a típica inversão do reino do céu: aqueles aspectos considerados indignos se tornam o critério para sua entrada. Como em Mateus 18.1–6 e posteriormente em 20.20–28, essa inversão é concebida como abandono de poder e privilégio, ou pelo menos de aspirações a isso, e a aceitação de uma identidade vulnerável e de servo. Mateus 18 começa com a pergunta dos discípulos: “Quem é o maior no reino do céu?” (18.1). Diante de um pedido de autoridade para Tiago e João no reino vindouro, Jesus responde: “os poderosos exercem autoridade sobre eles… Não será assim entre vós; pelo contrário, quem quiser se tornar poderoso entre vocês, seja esse o que sirva” (20.25c–26). A máxima da inversão é proposta por Jesus: “quem entre vocês quiser ser o primeiro, será o servo” (20.27). Essa inversão, no mundo de Jesus e no nosso também, necessariamente implica no abandono da identidade e dos espaços tipicamente masculinos. E essa inversão também aparece na próxima narrativa de Mateus, seguindo a narrativa das pequenas crianças, em que temos a conclusão: “muitos dos primeiros serão os últimos; e os últimos serão os primeiros” (19.30).

Dificilmente entrará no Reino do Céu

A acessibilidade do reino do céu é uma marca da narrativa que segue. Esse tema não é tão reconhecido porque a expressão “entrar no reino do céu” (εἰσελθεῖν εἰς τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν, eiselthein eis tēn basileian tōn ouranōn, Mateus 19.23) faz parte de um conjunto de conceitos como “vida eterna” (ζωὴν αἰώνιον, zōēn aiōnion, v. 16, 29), “entrar na vida” (εἰς τὴν ζωὴν εἰσελθεῖν, eis tēn zōēn eiselthein, v. 17), “ser perfeito” (τέλειος εἶναι, teleios einai, v. 21), “ter um tesouro no céu” (ἐχειν θησαυρὸν ἐν οὐρανοῖς, echein thēsauron en ouranois, v. 21), “reino de Deus” (βασιλεία τοῦ θεοῦ, basileia tou theou, v. 24) e “ser salvo” (σωθῆναι, sōthēnai, v. 25). Todos esses conceitos são intercambiáveis e apontam para uma única realidade.14 O contexto da interação entre Jesus e o jovem rico explica o uso de tantos conceitos diferentes. No entanto, diante do contexto literário mais amplo de Mateus, temos que reconhecer a prioridade da acessibilidade do reino do céu como fio condutor.15 

No fim de uma troca sobre o que é necessário para “ter a vida eterna”, com a afirmação da necessidade de obediência dos mandamentos—ainda estamos no âmbito da relação entre interpretação adequada da Lei—Jesus diz que ainda falta ao jovem vender todas as suas posses, dar aos pobres, e segui-lo (v. 21). Estamos, portanto, diante do chamado ao discipulado radical de Jesus. Uma leitura superficial do texto limita o chamado a uma questão de abandono das riquezas, o que já é um tanto radical. Mas a exigência é mais profunda ainda. 

Começamos a entender o significado da exigência quando percebemos que existe um contraste entre manter suas posses e seguir a Jesus. Nisso, vemos que não se trata do abandono das riquezas em si, mas de uma troca de vínculo.16 E aqui, mais uma vez, precisamos entender propriedade, posses e riqueza para além de seus valores monetários. Vamos dar atenção aos mandamentos citados por Jesus e também à descrição do que os discípulos abandonaram para entender melhor o que está em jogo aqui.

Quanto aos mandamentos, Jesus nem menciona os mandamentos que exigem uma relação adequada com Deus, pois deve ter reconhecido certa piedade no jovem rico. Os mandamentos que Jesus menciona são aqueles que poderiam colocar em xeque a legitimidade da riqueza do jovem. Caso ele tenha ganhado suas riquezas por meio de ações que causaram a morte de outros (“não matarás”), por meio de diversos casamentos (“não adulterarás”), roubo (“não roubará”), ações ilegais (“não dará falso testemunho”) ou apropriação indevida dos recursos familiares (“honra seu pai e sua mãe”), então ele estaria longe da “vida eterna”. Um caso curioso é que Jesus não cita o principal mandamento relacionado com recursos econômicos: “não cobiçará”. O que Jesus faz é substituir um mandamento negativo (“não faça isso”), por um positivo: “amará ao seu próximo como a si mesmo”. Assim, Jesus coloca o amor ao próximo como um dos critérios para a legitimidade de posses. 

Quando o jovem rico se afasta diante da exigência do discipulado radical de Jesus, uma das respostas dos discípulos é: “nós abandonamos tudo para seguir você”. Como essa afirmação é um tanto genérica, dependemos da lista que Jesus faz logo a seguir para entender do que se trata esse “tudo”. A lista inclui, “casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, [mulheres],17 filhos e campos” (v. 29). 

Quando relacionamos a lista de mandamentos com essa lista, temos uma perspectiva mais clara sobre a relação do jovem rico com suas posses e riqueza. Eliminando uma origem ilegítima e tendo a lista de coisas abandonadas pelos discípulos, só podemos entender que as posses e a riqueza do jovem rico estão vinculadas com sua família. Isso fica ainda mais claro quando Jesus usa o termo “herdar” (κληρονομέω, klēronomeō, v. 29). Existe um contraste entre os discípulos que herdam a vida eterna e o jovem que herda a herança familiar, semelhante ao contraste entre “tesouros no céu” e as riquezas do jovem. Agora podemos entender que as riquezas do jovem rico significam mais do que valor monetário. Elas representam o seu status social vinculado ao seu papel dentro da sua família, possivelmente como filho primogênito. Como um judeu piedoso, as riquezas do jovem, portanto, marcam sua identidade de homem com uma posição relevante na aliança e no reino de Deus, conforme parte da tradição judaica derivada de certos aspectos do Antigo Testamento. 

Sim, o chamado do discipulado radical de Jesus exige que as riquezas sejam usadas para o bem da comunidade, especialmente dos mais vulneráveis. Mas existe um critério mais significativo que somente é reconhecido diante da figura do eunuco. A exigência de Jesus ao jovem rico é que ele se desloque, como os eunucos, do espaço de privilégio masculino que ele tem em sua família e na comunidade religiosa ao seu redor, e que entre num novo espaço de vulnerabilidade, o reino do céu. Assim como no caso das pequenas crianças, Jesus toma uma característica que era considerada indigna como identidade dos que pertencem ao reino do céu e a transforma no critério para entrar no reino do céu. Todo privilégio atrelado à masculinidade, inclusive a riqueza por meio da herança familiar, deve ser abandonado.18 Jesus está chamando o jovem rico a se tornar um eunuco, com ênfase na relação entre masculinidade e riqueza por herança familiar, e não com relação à sexualidade. Portanto, tudo aquilo que falamos sobre os eunucos e o reino do céu está por trás dessa narrativa também. Por outro lado, essa narrativa confirma nossa opção de tradução do verbo χωρέω (chōreō) e, na verdade, de todo o versículo 12: “e existem eunucos que castraram a si mesmos em direção ao reino do céu. Quem puder deslocar-se [para entrar nele], desloque-se”. O motivo é que aqui o movimento de deslocamento e entrada é explícito. Isso acontece tanto pela relação entre “entrar” e “seguir”, como na relação entre “abandonar” (ἀφίημι, aphiēmi), “entrar” e “herdar”. Mais uma vez, sem o logion sobre os eunucos, inserido por Mateus, o desdobramento do seu fio condutor sobre a acessibilidade do reino do céu perde muito do seu significado.

Mateus muda tudo com seus Eunucos

Por fim, quero mostrar como Mateus utiliza o logion sobre os eunucos como conclusão da discussão sobre divórcio e segundo casamento como adultério de uma forma bastante peculiar. Alguns intérpretes se surpreendem que Jesus use a figura dos eunucos logo depois de afirmar o valor do casamento.19 Mas, ao inserir o logion sobre os eunucos nessa discussão, Mateus estabelece o casamento como realidade penúltima na visão de Jesus.20 

Enquanto a discussão sobre divórcio no contexto histórico de Jesus girava em torno da interpretação de Deuteronômio 24.1, o fundamento da resposta de Jesus está em Gênesis 1.27; 2.24; 5.2.21 A citação de Gênesis se torna muito significativa por muitos motivos, todos eles com algum ponto de contato com a conclusão da discussão com a figura dos eunucos.

A questão do divórcio, como é claramente apresentada no texto bíblico, é sobre um privilégio masculino. A pergunta dos fariseus, representativa da discussão do assunto em seu contexto, é sobre a prerrogativa masculina de se divorciar de sua mulher.22 Estamos, portanto, no âmbito dos privilégios masculinos. A citação de Gênesis usada por Jesus inverte totalmente o fundamento do privilégio masculino da discussão. Em primeiro lugar, existe um caráter de igualdade entre homens e mulheres na escolha que Jesus faz de citar Gênesis 1.27 e 5.2, e não a narrativa da criação da mulher em Gênesis 2. Em segundo lugar, a combinação desses textos somente com a conclusão da narrativa da criação da mulher em Gênesis 2.24 estabelece não um privilégio masculino e sim uma vulnerabilidade masculina em relação ao casamento. Indo contra a prática comum no antigo Israel e no contexto de Jesus, o texto fala do homem abandonando pai e mãe para se unir à sua mulher. O texto não diz que essa nova família estará centralizada na família da mulher também. Na verdade, o texto estabelece o casamento como um abandono da família de origem, para a formação de uma nova identidade a partir do relacionamento entre homem e mulher. Podemos falar de uma reorientação ou deslocamento da identidade patrilocal que o casamento estabelece. 

Assim, a resposta de Jesus, citando Gênesis, tira o fundamento do privilégio masculino sobre o divórcio no casamento, e posiciona o homem numa situação de vulnerabilidade, deslocado da sua casa, sua família, sua herança, a fim de formar uma nova família, uma nova identidade, marcada por sua lealdade à sua mulher.23 Carmen Bernabé faz uma afirmação muito pertinente: “A proposta de Jesus é de natureza altamente subversiva e seria extremamente exigente aos homens […] o que está sendo dito aqui é que o relacionamento de um homem com sua esposa tem prioridade frente aos outros dois relacionamentos [com pai e mãe] e aos interesses da família patriarcal. A lealdade que esse relacionamento exige, ao qual marido e esposa estão obrigados, é de maior importância do que vínculos sanguíneos e a linhagem patriarcal”.24 Como afirma Keener, estamos diante de uma questão de prioridade de lealdades.25 A transferência de lealdade de uma família para um novo relacionamento é exatamente o que vimos sobre os eunucos nos últimos artigos. Mais ainda, a transferência de lealdade a partir do deslocamento do espaço masculino da linhagem patriarcal é fundamental no uso que Jesus faz da figura dos eunucos em seu logion. Assim, o uso que Jesus faz de Gênesis e sua exigência de que seus discípulos sejam eunucos se complementam e se reforçam.

Quero expandir meu argumento ao considerar o uso do verbo καταλείπω (kataleipō, “abandonar”) na citação que Jesus faz de Gênesis 2.24. A palavra hebraica por trás do texto da Septuaginta (LXX) e de Mateus é עָזַב (ʿāzab). Em muitas das suas ocorrências, trata-se de um verbo comum para “deixar” ou “largar” alguma coisa. No entanto, ele é usado em algumas situações em que há um claro contexto de aliança ou forte vínculo entre as duas partes. Em Isaías 60.15, o termo é usado para qualificar a experiência de Sião (Jerusalém), comparando-a a um recém-nascido “abandonado”, ou seja, alguém sem nenhum vínculo parental, sem identidade familiar.26 Já em Gênesis 28.15, quando Jacó abandona sua família e sua herança, ilegitimamente adquirida, para salvar sua vida, Deus confirma que permanecerá com ele e não o abandonará. A narrativa de Jacó é uma de deslocamento daquilo que ele imaginava ser a garantia do seu sucesso no espaço masculino da família eleita, para um espaço desconhecido, vulnerável, que é exatamente onde sua identidade como parte da família eleita é afirmada e confirmada por Deus. Quando entendemos a citação de Gênesis 2.24 à luz do logion sobre os eunucos e vice-versa, é exatamente esse significado que temos.

O último ponto importante do uso que Jesus faz de Gênesis como complementar ao seu logion sobre os eunucos está na comparação com o uso de Gênesis 1.27 e 5.2 em algumas tradições rabínicas. No último artigo, vimos que a expressão “homem e mulher os criou”, de Gênesis 1.27 e 5.2, foi usada para dizer que o homem que não tem esposa não é, de fato, homem (Jeb. 63a). Ainda que o uso que Jesus faz de Gênesis sirva para responder à questão sobre o divórcio, há muito mais envolvido aqui. Primeiro, ao citar os textos de Gênesis, Jesus eleva a discussão ao patamar dos ideais divinos e aos princípios que devem regular toda a relação entre marido e esposa.27 Segundo, diante de uma discussão sobre privilégios masculinos, Jesus usa os mesmos textos que fundamentavam certa noção de masculinidade para desmontar esses privilégios e afirmar uma relação entre marido e esposa fora desses privilégios, no deslocamento dessa masculinidade. Em meio a essa disputa interpretativa a partir do texto de Gênesis, poderíamos imaginar que a ordem criacional exige que todos tenham casamentos heterossexuais e pronto. E é aqui que entra a importância do uso do logion sobre os eunucos como conclusão do ensino de Jesus. 

Ainda que em muitos sentidos a ordem criacional e o reino do céu coincidam, eles não podem ser igualados. Os detratores de Jesus podem ter usado a ordem criacional para chamar Jesus e seus discípulos de eunucos por não seguirem o mandamento divino e a ordem criacional. Jesus, então, usa o texto de Gênesis, ou a ordem criacional, para desfazer essa interpretação do privilégio masculino. Já Mateus, ao acrescentar o logion de Jesus sobre eunucos como conclusão dessa discussão, estabelece o reino do céu como superior à ordem criacional nessa questão. Luz diz o seguinte sobre a relação dos eunucos com o reino do céu como parte do ensino completo de Jesus em Mateus 19.3–12: “Então o reino pode ter prioridade sobre a interpretação de Gênesis 1.28 como obrigação para se casar e ter filhos”.28 O logion sobre eunucos como conclusão da fala de Jesus cria um movimento de deslocamento em dois estágios. Primeiro, Jesus demonstra que a ordem criacional exige o abandono dos privilégios da identidade masculina como fundamento do casamento. Segundo, Jesus, na construção literária de Mateus, demonstra que a entrada no reino do céu não depende do cumprimento dessa ordem criacional, mas somente do abandono dos privilégios atrelados à identidade masculina, um abandono representado pela figura do eunuco. 

A combinação da figura do eunuco com o uso do texto de Gênesis sobre a criação do homem e da mulher revela um último e significativo elemento do ensino de Jesus: a nova humanidade do reino do céu. Como a identidade do eunuco se torna um critério para entrar no reino do céu e ser parte da família de Deus, ele se torna a figura representativa da nova humanidade em Jesus.29 Isso pode ser constatado na própria história da Igreja. DeFranza diz: “Livres das preocupações e distrações da família, inocentes e assexuados como crianças e anjos, com vozes angelicais que elevavam a audiência ao céu—eunucos foram transformados do outro imoral para o novo modelo de perfeição cristã”.30 Conforme vimos no último artigo, a grande questão não é o celibato ou a castração, mas o abandono dos privilégios masculinos como critério de entrada no reino do céu. No entanto, no contexto do ideal do reino do céu como uma nova realidade criacional, precisamos considerar a questão da assexualidade. 

No fim da resposta de Jesus aos discípulos que “abandonaram tudo”, ele fala sobre a experiência que os espera “na regeneração” (ἐν τῇ παλιγγενεσίᾳ, en tē palingenesia, Mateus 19.28). Esse termo é muito significativo para nossa discussão, pois está ligado a um novo nascimento, ou seja, uma nova humanidade, numa nova realidade.31 O que Jesus promete aos seus discípulos, que abandonaram “casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, [mulheres], filhos e campos” é cem vezes mais de tudo o que abandonaram e a herança da vida eterna (19.29). Isso não é a espiritualização da família ou da herança, mas uma realidade concreta de um reino, especialmente em contraste com as riquezas e posses do jovem rico.32 A nova humanidade, na nova realidade do reino do céu, não nasce a partir de uma atividade sexual de procriação biológica; pelo contrário, esse novo nascimento se dá no abandono, por parte dos homens, dessa prerrogativa e dos privilégios atrelados a ela. O novo nascimento, então, inclui os discípulos numa nova família, sem nenhum patriarca, onde poderão, ainda, experimentar uma nova forma de ser família e uma nova “herança” que é recebida fora da linhagem patriarcal. Essa herança é o resultado do pertencimento à família de Deus e ao reino do céu e é experimentada nessa nova família de irmãos, irmãs, mães, mas somente tendo a Deus como pai. Não se trata mais de uma herança masculina e patriarcal, mas de toda a família, pois os homens, para a “herdarem”, precisam abandonar seus privilégios masculinos e abrir o caminho, a acessibilidade, do reino do céu a todos.

Mais adiante, Jesus fala sobre sua ressurreição (Mateus 20.19) e, posteriormente, o tema da ressurreição é ligado à questão da sexualidade. Diante da pergunta dos saduceus, que não criam na ressurreição do corpo, sobre casamentos múltiplos, Jesus afirma que na ressurreição, ou seja, na nova realidade do reino do céu, ninguém mais se dará em casamento, sendo como os “anjos do céu” (Mateus 22.30). Moxnes afirma que essa imagem pode remontar à realidade dos primórdios da criação, antes da distinção entre homem e mulher, em que a humanidade (אָדָם, ʾādām) era pressexual.33 Isso conecta muito bem com todo o contexto de Mateus 19, especialmente na relação entre a citação da expressão “homem e mulher os criou”, de Gênesis 1.27 e 5.2, e a figura dos eunucos. Ainda que Jesus tenha usado os textos de Gênesis para falar de uma nova realidade entre homens e mulheres, em combinação com a figura dos eunucos, o movimento seguinte da visão de Jesus é a de uma nova humanidade que pode ter retornado ao seu estado anterior à diferenciação entre homem e mulher. A expressão de Gênesis 1.27, assim, pode ser entendida como uma humanidade criada com as características masculinas e femininas, que posteriormente foram diferenciadas.34 No contexto do “novo nascimento” e da ressurreição, encontrados tanto em Mateus 19 quanto em Mateus 22, é razoável que Jesus esteja, sim, apontando para uma nova humanidade que retorna ao seu ideal dos primórdios da criação, tendo a figura do eunuco como um intermediário dessa visão. Apesar dos eunucos não serem caracterizados pela ausência de atividades sexuais, como vimos, sua identidade ainda era marcada por essa ambiguidade sexual, ou seja, por sexualmente não ser considerado nem homem e nem mulher.

A introdução do tema da ressurreição e da assexualidade nos leva à questão da relação entre escatologia e ética. Como sabemos, a escatologia no Novo Testamento tem um caráter prescritivo, ou seja, o ideal escatológico é um objetivo a ser buscado e vivido aqui e agora. No entanto, também existem realidades escatológicas que não podem ser vividas aqui e agora, como a própria ressurreição do corpo. Essa é uma tensão entre escatologia e ética que não tem respostas fáceis e prontas. Minha posição, quanto ao assunto em questão, é parecida com a que expressei sobre a exigência de se ter filhos biológicos para cristãos. 

Uma experiência assexual como ideal escatológico tem caráter prescritivo para os discípulos de Jesus. Existe uma prioridade dessa experiência e da experiência de uma nova família, não biológica, na visão do reino do céu ensinada por Jesus. No entanto, se todos os cristãos ou toda a humanidade aderirem a essa experiência, teremos um problema que é a extinção da espécie humana. Assim como no caso de filhos biológicos, eu diria que a assexualidade e a família não biológica é um ideal que precisa ser praticado e valorizado entre os discípulos de Jesus. Tal prática serve para que todos saibam que esse é o ideal. Por outro lado, essa prática somente será experimentada por todos na ressurreição final. Enquanto isso, qual deve ser a experiência de todos os discípulos de Jesus que têm nesse ideal o seu objetivo final? Minha resposta é aquela dada no último artigo: deslocamento e abandono dos privilégios atrelados à masculinidade, a fim de que a acessibilidade do reino do céu se abra para todos, seguindo critérios éticos e não características identitárias da masculinidade.

Considerações finais

Eu não esperava ter escrito tanto a respeito de Mateus 19, mas no decorrer da pesquisa e do processo de escrita, ficou claro para mim o quanto esse capítulo, especialmente pela inclusão que Mateus faz do logion de Jesus sobre os eunucos, é fundamental para uma questão central no evangelho de Jesus: a acessibilidade do reino do céu. Ao fim dessa longa jornada, quero esclarecer dois pontos da minha proposta interpretativa, e as implicações ética-teológicas de Mateus 19 para o debate sobre pessoas LGBTQIAP+ e a fé cristã.

O primeiro esclarecimento que quero fazer é sobre o sexo masculino e a masculinidade. É possível que algumas pessoas leiam os meus textos e pensem que eu acredito que há algo ontologicamente ou biologicamente errado em ser homem. Acredito que qualquer pessoa que tenha lido os textos com atenção é capaz de perceber que eu estou lidando com a masculinidade no âmbito do gênero socialmente construído. É claro que tal gênero tem fundamentos em certas características biológicas de um corpo masculino típico. Mas o que geralmente ocorre é a naturalização de construções sociais a ponto de negar a realidade natural de certos corpos masculinos. É possível ser homem e ser infértil ou decidir não procriar. É possível ser homem e não ter um casamento heterossexual. É possível ser homem e não ter atração sexual por mulheres. O que eu espero que tenha ficado claro é que certas características do gênero masculino se tornaram critérios de admissão no reino de Deus, de pertencimento à família de Deus e da experiência da vida eterna. E é nesse ponto de cunho mais religioso que o ensino de Jesus e do evangelho de Mateus é mais significativo. Minha intenção foi mostrar que quando certas características identitárias — neste caso específico, tipicamente masculinas — se tornam critério para o relacionamento entre Deus e a humanidade, então Jesus inverte tudo e transforma essas características em impeditivos para a entrada no reino de Deus, e torna as características tidas como indignas dessa identidade em critério para a entrada no reino de Deus. Não existe nada de errado em nascer e ser homem. Mas para os discípulos de Jesus, ser homem significa seguir certas características que serão o inverso de muitas construções sociais do gênero masculino em qualquer época e cultura. 

O segundo esclarecimento que quero fazer é sobre a linguagem teológica a partir da realidade sexual humana. Eu fiz a seguinte afirmação: “O único centro de identidade masculina de pertencimento à família divina é Deus, e não alguma linhagem patriarcal”. Alguém poderia ler isso fora de contexto e questionar a validade do uso da identidade masculina para Deus. Sem querer entrar numa longa e complexa discussão sobre linguagem humana e teologia, ainda vale estabelecer alguns pontos. É comum ler que a identidade de Deus não é nem masculina nem feminina, porque Deus não tem corpo, é espírito, etc. Eu até concordo, mas nossas limitações humanas deveriam nos impedir de fazer afirmações como essa. O que conhecemos sobre Deus é, inevitavelmente, aquilo que ele revela a nós por meio da experiência criada, material e social.  Dentro dessas limitações, o melhor é dizer que Deus é homem e é mulher, assim como é rei e pastor, uma galinha e um leão, etc., dependendo do que Deus quer revelar a nós, do que nós querermos comunicar sobre Deus e escolhermos um meio criado e humano para fazê-lo. No caso de Mateus 19, Jesus não queria desafiar um conceito masculino da identidade de Deus. Se assim fosse, ele poderia usar a linguagem feminina para afirmar algo sobre a identidade de Deus. Jesus queria desafiar privilégios masculinos que impediam o acesso ao reino do céu. Para tanto, ele eliminou a figura do patriarca do reino do céu, atribuindo-a somente a Deus. Usamos os meios e a linguagem adequados para transmitirmos e conhecermos algo sobre Deus. Às vezes essa linguagem será masculina, às vezes feminina, às vezes animal, às vezes material, etc.

Por fim, algumas implicações de tudo o que vimos até aqui para a discussão sobre pessoas LGBTQIAP+ e a fé cristã. Nosso texto, definitivamente, não serve para corroborar relacionamentos fora da heteronormatividade ou, mais especificamente, o casamento homossexual. O que o nosso texto faz de forma muito profunda é desvalidar muitos argumentos e fundamentos bíblicos e teológicos usados contra a legitimidade da fé cristã de pessoas LGBTQIAP+, mesmo daquelas que assumem essa identidade em práticas e relacionamentos sexuais. Mesmo a narrativa da criação humana de Gênesis, usada por Jesus para, entre outras coisas, elevar o casamento heterossexual, acaba funcionando para desvalidar qualquer uso desse critério para entrada no reino de Deus e pertencimento à família de Deus. De novo, toda vez que alguma característica identitária é usada como critério para a entrada no reino de Deus, Jesus inverte o critério e coloca como “guardiões” da entrada do seu reino exatamente aquelas pessoas que foram colocadas do lado de fora pela elite religiosa. 

O identitarismo masculino patriarcal é muito forte no meio evangélico. Se você abrir um comentário bíblico evangélico vai perceber que se gasta muito mais tinta e energia tentando entender o que Jesus quis dizer com πορνεία (porneia), que é a única justificativa para o divórcio dada por Jesus, do que com o significado de eunucos.35 Isso acontece porque na teologia evangélica não existe nenhuma possibilidade de considerar a importância da figura do eunuco para a visão de Jesus sobre o reino de Deus. Muito mais importante na teologia evangélica é entender quando o divórcio é legítimo e como justificar o casamento entre cristãos já divorciados, sem incorrer em adultério. Como falei no último artigo, um texto que deveria levar ao abandono dos privilégios da masculinidade se torna mais uma desculpa para reafirmar esses privilégios e essa identidade. 

Nesse contexto, a figura do eunuco é uma afronta à identidade evangélica. Qualquer teologia que questione a masculinidade evangélica é criticada nos termos mais fortes. Percebam a ironia das afirmações a seguir. John Eldredge, um pilar do evangelicalismo fundamentalista estadunidense, com diversos livros escritos sobre masculinidade e educação de meninos, inclusive publicados no Brasil, como Coração Selvagem: Descobrindo os Segredos da Alma do Homem, diz o seguinte: “Se você deseja um animal [homens inclusive] mais tranquilo, mais seguro, existe uma solução fácil: castre-o”.36 Num evento sobre masculinidade na Mars Hill Church, Mark Driscoll, pastor fundador da igreja, deu duas pedras aos participantes e disse: “Deus está devolvendo suas bolas para que vocês tenham coragem para fazer o trabalho do reino”.37 Em outro evento evangélico sobre masculinidade, os participantes cantavam uma música com o título “Grow a Pair”. Kristin Du Mez diz se tratar de uma música “lamentando a feminização dos homens pela ‘cultura popular’, uma música em que homens se comprometem a agir como cowboys, se juntar à batalha, montar na sela, empunhar uma espada… e, sim, ‘grow a pair’ [figura de linguagem sobre o par de testículos como símbolo de masculinidade]”.38 Nesse meio, eu não tenho dúvida, afirmar a possibilidade de pessoas LGBTQIAP+ entrarem no reino de Deus e fazerem parte da família de Deus, é um dever teológico-ético para todos os que levam a sério o que vimos aqui sobre Mateus 19 e a visão de Jesus sobre o reino de Deus.

Depois dessa jornada, eu quero explicar dois pontos sobre ética sexual e casamento que eu acredito se alinham com a visão da sexualidade da nova humanidade. O primeiro ponto é que nenhuma identidade sexual, nessa visão, implica na necessidade de práticas sexuais. Homossexualidade, transexualidade, bissexualidade, intersexualidade e heterossexualidade são realidades penúltimas e não últimas. Ao que parece, a assexualidade, como identidade, é o ideal escatológico da visão de Jesus. Isso deve, sim, fazer com que todos os discípulos de Jesus relativizem suas identidades sexuais e práticas sexuais como parte última de sua identidade na família de Deus e no reino de Deus. Deste lado do eschaton, ou seja, na realidade em que vivemos, isso se complica porque a relação da heteronormatividade com a fé cristã fecha a porta do reino de Deus para outras identidades sexuais. Por isso, deste lado do eschaton, todas as identidades sexuais devem ser relativizadas, mas os discípulos de Jesus que não se conformam com a heteronormatividade têm todo o direito de afirmar a sua identidade sexual como digna do reino de Deus. É, de fato, uma experiência ambígua. Contudo, aos discípulos de Jesus heterossexuais, essa ambiguidade também deveria estar presente. Ao mesmo tempo em que devem relativizar sua heterossexualidade, podem afirmar a sua identidade sexual como digna do reino de Deus. A ambiguidade vale para todos.

O segundo ponto é sobre ética sexual. Apesar de a heterossexualidade e outras identidades sexuais precisarem experimentar o mesmo tipo de ambiguidade em relação à visão sexual da nova humanidade do evangelho de Jesus, não há dúvida de que a experiência da prática sexual desses grupos é bastante distinta deste lado do eschaton. Todas as identidades sexuais estão suscetíveis a práticas sexuais incompatíveis com a vida no reino de Deus. Entre os cristãos, não somente se aceitam práticas heterossexuais opressivas, violentas e destrutivas, especialmente para as mulheres, mas tais práticas são recomendadas como ideais cristãos. Tudo isso pelo simples fato de serem práticas heterossexuais. Por outro lado, cristãos não heterossexuais também seguem e, às vezes, promovem orgulhosamente, práticas sexuais irresponsáveis, libertinas e, portanto, destrutivas também. O que falta, portanto, nessa discussão é uma ética sexual que, ao menos, aponte para a visão sexual da nova humanidade do evangelho de Jesus. Sem entrar em detalhes, eu diria que a questão aqui é cuidado mútuo, igualdade, compromisso e lealdade. Nessa visão, eu diria que a bissexualidade é uma identidade sexual com mais impeditivos para se expressar em práticas sexuais. Até onde consigo enxergar, relacionamentos que sigam essa ética sexual, relativizem sua própria identidade sexual sabendo se tratar de uma identidade penúltima, podem se expressar em práticas sexuais, pois têm o potencial de avançar a justiça, a misericórdia e a fidelidade. A heterossexualidade e sua capacidade reprodutiva cumprem um importante papel deste lado do eschaton; a homossexualidade e a transexualidade também podem cumprir importantes papeis deste lado do eschaton, por poderem preservar uma unidade familiar, especialmente fora dos privilégios masculinos do patriarcalismo e não consanguínea; e a assexualidade, de fato, cumpre, talvez, o mais importante papel de todos, apontando para a realidade da sexualidade no eschaton.

Nota:

1. Esta parte do Evangelho de Lucas tem uma composição bem complexa. Para uma análise aprofundada, especialmente dos versículos 16–18, ver John Nolland, Luke 9:21–18:34. Word Biblical Commentary (Dallas: Word, Incorporated, 1993), 814–20.

2. Nolland, Luke 9:21–18:34, 815.

3. Nolland, Luke 9:21–18:34, 822.

4. Nolland diz o seguinte: “O presente versículo [Lc 16.18] tem o propósito de ser ilustrativo sobre o modo como as demandas do reino de Deus usam e confirmam os imperativos da lei e dos profetas (Êx 20:14; Lv 18:20; Dt 5:18; Ml 2:14–16), mas prosseguem para ser ainda mais exigentes de um jeito bem específico” (Nolland, Luke 9:21–18:34, 822).

5. Ver David L. Turner, Matthew. Baker Exegetical Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Baker, 2008), 464; Donald A. Hagner, Matthew 14–28. Word Biblical Commentary (Dallas: Word, Incorporated, 1995), 551–2.

6. Donald Hagner vê uma mudança de foco, ainda que ele chegue a afirmar que Mateus 19.16–30 seja sobre o valor absoluto do reino. Ver Hagner, Matthew 14–28, 555. Turner também vê uma mudança de foco, mas de questões familiares para questões de riqueza e recompensa. Ver Turner, Matthew, 457.

7.Turner, Matthew, 457. Toda a interpretação de Mateus 19 por Turner revela uma ansiedade a respeito do logion de Jesus sobre os eunucos. Há diversos contornos a fim de evitar que o logion seja entendido como uma exigência para todos os discípulos e como uma desvalorização do casamento e da procriação biológica.

8. O texto usa o verbo ἐπιτιμάω (epitimaō), que significa “repreender”. Apesar de ser uma repreensão verbal, o propósito do ato é impedir que determinada ação continue. Isso fica claro quando Jesus responde para não “impedir” (κωλύω, kōlyō) que elas “cheguem” (ἔρχομαι, erchomai) nele (v. 14) Em Mateus, o termo cognato ἐπιτιμᾶν (epitiman, “repreensão”) é usado sobre a multidão tentando impedir que dois cegos tivessem acesso a Jesus (Mateus 20.31).

9. Não se trata de crianças em geral, mas de crianças bem pequenas. Lucas chega a mudar o termo para “bebês” (βρέφη, brephē, Lucas 18.15). Ver Ulrich Luz, Matthew 8–20. Hermeneia. Traduzido por James E. Crouch (Minneapolis: Fortress, 2001), 504.

10. Ver Hagner, Matthew 14–28, 552–3.

11. Luz, Matthew 8–20, 506.

12. Cf. Megan K. DeFranza, Sex Difference in Christian Theology: Male, Female, and Intersex in the Image of God (Grand Rapids: Eerdmans, 2015), 81.

13. Cf. DeFranza, Sex Difference in Christian Theology, 81; Halvor Moxnes, Putting Jesus in His Place: A Radical Vision of Household and Kingdom (Louisville: Westminster John Knox Press, 2003), 92–3.

14. Cf. Turner, Matthew, 472–3.

15. Ver R. T. France, The Gospel of Matthew. The New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 2007), 726; Carmen Bernabé, “Of Eunuchs and Predators: Matthew 19: 1–12 in a Cultural Context.” Biblical Theology Bulletin 33.4 (2003): 129.

16. Luz, Matthew 8–20, 513–4.

17. Um grande número de manuscritos (א C* C3 L W Θ f13 TR lat sy(c),p,h sa mae bo) apresenta ἢ γυναῖκα (ē gynaika) aqui, provavelmente influenciados pela passagem paralela em Lucas 18.29. Ver Hagner, Matthew 14–28, 563.

18. É claro que toda riqueza é um privilégio, uma forma de status e poder. Sendo assim,  o chamado do discipulado radical de Jesus, certamente, exigirá o abandono de riquezas para o bem da comunidade, especialmente os mais vulneráveis. Ver Luz, Matthew 8–20, 514. No entanto, quando percebemos a relação das riquezas com a identidade masculina na família, na comunidade e na religião, a exigência tem menos a ver com as riquezas em si.

19. Ver Luz, Matthew 8–20, 499. France, ao considerar a inclusão de “mulheres” na lista de coisas que os discípulos abandonaram, diz: “Tal separação, exceto por um período temporário, dificilmente seria compatível com a valorização do casamento nos vv. 3–9” (France, The Gospel of Matthew, 745).

20. O próprio France chega perto desse entendimento ao afirmar: “O ideal do casamento estabelecido nos vv. 4–9 permanece o padrão de Deus para seu povo, mas não é, como muitos nos dias de Jesus pressupunham, a única forma de fidelidade aos propósitos do Criador. Nem todos são iguais no povo de Deus, e nem todos são chamados ao mesmo caminho de obediência” (France, The Gospel of Matthew, 726).

21. A primeira parte (“os fez homem e mulher”, Mateus 19.4) é a expressão exata que aparece em Gênesis 1.27 e 5.2 da LXX. Já a segunda parte (“Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne”, Mateus 19.5) é uma citação de Gênesis 2.24, com algumas diferenças entre o texto de Mateus e a LXX. Ver Hagner, Matthew 14–28, 548.

22. Ver Luz, Matthew 8–20, 495. Existia a possibilidade de a mulher iniciar um processo de divórcio, mas não era comum, especialmente no contexto judaico. Isso explica, por exemplo, o motivo de Marcos, um Evangelho para uma audiência não judaica, citar o “outro lado da moeda” e falar da mulher se divorciando do seu marido (Marcos 10.12). Ver Hagner, Matthew 14–28, 546.

23. Carmen Barnabé lembra bem que a discussão sobre divórcio nesse contexto é marcada pela prática do adultério contra o homem e o novo casamento. Adultério é sempre uma ofensa contra o marido, já que o homem podia ter relações sexuais com outras mulheres não casadas e isso não era considerado adultério. Mas na resposta de Jesus, o divórcio e o novo casamento, agora, são atribuídos como causa de adultério cometido pelo homem contra sua mulher. Ver Bernabé, “Of Eunuchs and Predators”, 132–3.

24. Bernabé, “Of Eunuchs and Predators”, 132.

25. Craig S. Keener, The Gospel of Matthew: A Socio-Rhetorical Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2009), 464.

26. A imagem é realmente perturbadora. A confirmação de que realmente se trata de um recém-nascido aparece no versículo seguinte, em que Deus promete que Sião “mamará o leite das nações nos seios da realeza”. Para um estudo histórico-arqueológico de casos de abandono de recém-nascidos no antigo Oriente Próximo, ver Kristine Garroway, Children in the Ancient Near Eastern Household (Winona Lake: Eisenbrauns, 2014), 48–91. 

27. Bernabé, “Of Eunuchs and Predators”, 132.

28. Luz, Matthew 8–20, 550.

29. Moxnes, Putting Jesus in His Place, 95.

30. DeFranza, Sex Difference in Christian Theology, 83.

31. Luz e Hagner preferem limitar o significado do termo somente a uma nova realidade, ou seja, a restauração escatológica. Mas eu sugiro que no contexto literário sobre eunucos, pequenas crianças e abandono da família, um significado mais individual de novo nascimento não pode ser desconsiderado. Ver Luz, Matthew 8–20, 517; Hagner, Matthew 14–28, 565.

32. Ver Hagner, Matthew 14–28, 566.

33. Moxnes, Putting Jesus in His Place, 94. A questão da identidade pressexual da humanidade no momento da sua criação já foi mencionada no artigo sobre os eunucos na Antiguidade.

34. É Assim que certas tradições rabínicas e judaicas entendem o texto de Gênesis 1.27. Ver Luz, Matthew 8–20, 489.

35. O comentário de D. A. Carson é um bom exemplo disso. Ver D. A. Carson, O Comentário de Mateus. Traduzido por Lena Aranha e Regina Aranha (São Paulo: Shedd Publicações, 2010).

36. John Eldredge, Coração Selvagem: Descobrindo os Segredos da Alma do Homem (São Paulo: Thomas Nelson, 2019). Citado em Kristin Kobes Du Mez, Jesus and John Wayne: How White Evangelicals Corrupted a Faith and Fractured a Nation (New York: Liveright, 2020), 174.

37. Citado em Du Mez, Jesus and John Wayne, 196.

38. Du Mez, Jesus and John Wayne, 187.