O Decreto Dominical não se aplica mais à realidade atual e precisa ser revisado à luz da complexidade da ação divina para iluminar questões mais importantes sobre o tempo do fim


*Série Decreto Dominical (parte 1)

Dr. Jon Paulien | The Battle of Armageddon — Traduzido e adaptado por André Kanasiro para a Revista Zelota

Jon Paulien é um teólogo adventista norte-americano. Pastor em Nova Iorque por muitos anos, Paulien lecionou Interpretação do Novo Testamento no Seminário Teológico da Universidade Adventista de Andrews. Ele também foi reitor da Universidade Adventista de Loma Linda de 2007 a 2019, e atualmente leciona na mesma Universidade. Estudioso do Apocalipse já em sua dissertação de doutorado, Paulien publicou vários livros a respeito do assunto para a IASD norte-americana.

A COVID-19 mudou muitas coisas no mundo. Antes da COVID, quando seus talentos eram requisitados, você logo era convidado a entrar num avião e visitar partes interessantes do mundo. Depois da COVID você pode ser convidado para falar do conforto de seu próprio escritório ou sua própria casa. Como resultado de tais convites, eu pude interagir com adventistas do sétimo dia e outros nas Bahamas, na Terra Nova, Malásia, Filipinas, Europa, e localidades que eu prefiro não mencionar. Estes eventos têm frequentemente envolvido alguns momentos de perguntas e respostas, e têm permitido que eu sinta a pulsação do movimento adventista do sétimo dia de formas que não poderiam ser possíveis em outros cenários.

Uma grande questão, que parece estar mais na cabeça de adventistas fora do mundo ocidental que qualquer outra, é o conceito de um futuro decreto dominical, particularmente nos Estados Unidos. Isso pode ser uma surpresa para os ocidentais, que estão bem cientes de que não há nenhum decreto dominical no radar de negociações públicas no momento. Mas para muitos adventistas do sétimo dia no Caribe, na África e na Ásia, o conceito de um decreto dominical é uma ameaça real e iminente de importância crítica. A narrativa segue algo nesse sentido: “Ellen White [mensageira especial da IASD — 1827-1915] previu claramente, com base em visões do Senhor, que antes do fim dos tempos o Congresso dos EUA vai aprovar um decreto dominical nacional, impondo a guarda do domingo a todos os americanos. Leis como essa serão então adotadas pela Europa, e em última instância por todo o mundo.”

O apelo especial dessa ideia é que este seria o sinal mais claro e mensurável do Fim para os que crêem na Segunda Vinda de Cristo. A ideia de que o evangelho será pregado por todo o mundo como testemunha a todas as nações é clara, mas seria extremamente difícil de ser verificada, se não impossível. A ideia de que fomes, terremotos e pestilências aumentarão antes do Fim ainda deixa em aberto a questão do quão ruins esses eventos têm que ser para se qualificarem como apocalípticos. O quão massivos e frequentes serão os terremotos que estão por vir? O quão severas serão as pestilências? Determinar que o Fim está próximo com base em qualquer terremoto, fome ou pestilência em particular tem se mostrado uma missão impossível ao longo dos séculos. Mas em contraste com esses outros “sinais”, uma lei específica nos salões do Congresso dos Estados Unidos da América seria um sinal específico e mensurável do Fim! Quando tal lei estiver sendo debatida no Congresso e sua aprovação parecer provável, poderemos todos saber que o Fim está próximo. O conceito é claro, simples e muito atraente para pessoas que gostam de saber como e quando as coisas vão terminar. Ele dá a elas algo único para procurar no ciclo de notícias. Dá uma sensação boa ter “conhecimento dos bastidores” em uma questão de tamanha importância.

Mas será que essa ideia se adequa aos princípios bíblicos de interpretação profética? Será que o propósito de tal previsão é satisfazer nossa curiosidade a respeito do tempo do Fim? Ou estamos usando o dom da profecia de formas para as quais ele nunca deveria ser usado? Um problema em nos fixarmos em um detalhe como esse é que isso pode nos cegar para o cenário mais amplo da profecia. Nós podemos criar um foco desbalanceado que nos faz esquecer de características proféticas muito mais vitais para a sobrevivência espiritual, como um relacionamento vivo com Jesus Cristo.

Na série Decreto Dominical eu vou tentar explorar três linhas de evidências em relação ao tópico. 1) O que podemos aprender sobre profecias não cumpridas com profecias que se cumpriram? Ao antecipar decretos dominicais específicos, nós estamos prestando atenção a como a própria Bíblia passa de previsão a cumprimento? Vamos revisar meu estudo anterior a respeito de profecias que se cumpriram na Bíblia, buscando diretrizes pertinentes à previsão específica de um decreto dominical nacional nos EUA. 2) Nós estudaremos cuidadosamente Apocalipse 13:13-17, a fonte bíblica para a ideia de um decreto dominical nacional/internacional. Será que essa previsão é tão clara na Bíblia quanto alguns têm pensado? Há outras maneiras através das quais poderia ocorrer uma contrafação do verdadeiro sábado? 3) Vamos olhar de perto as declarações-chave nos escritos de Ellen White que são usadas para apoiar a ideia de um decreto dominical nacional. O quão claras são essas declarações? A que época e lugar ela estava se referindo? Há condições similares em jogo atualmente?

Princípios de interpretação

Profecias não cumpridas têm sido a maldição dos intérpretes proféticos há milênios. Até mesmo os adventistas do sétimo dia têm com ela uma história cheia de altos e baixos, como indica o próprio Grande Desapontamento. Quando falamos de um decreto dominical nos eventos finais da história da Terra, estamos lidando com profecias não cumpridas. Há uma previsão profética. O cumprimento ainda não veio. Então você está lidando com uma profecia não cumprida. Você está projetando a expectativa de um resultado a partir das palavras da profecia. Mas a história está forrada de tentativas de fazer exatamente isso, a maioria das quais se demonstrou falsa.

Então como alguém pode ou deve falar confiantemente a respeito de uma profecia não cumprida? A resposta se torna aparente quando mencionada. Você avalia o resultado provável de uma profecia não cumprida com base nas profecias cumpridas da Bíblia. Conforme você visita as profecias cumpridas da Bíblia você começa a ter uma noção de como Deus opera no mundo, como Ele passa da previsão para o cumprimento, como Suas ações anteriores projetam como serão Suas ações posteriores. Profecias já cumpridas nos dão a perspectiva que necessitamos para julgar apropriadamente as que não se cumpriram. Eu reportei meu estudo a respeito de profecias cumpridas no livro What the Bible Says About the End-Time [O que a Bíblia Diz a Respeito do Fim dos Tempos] e em um resumo atualizado e encurtado no capítulo 2 do meu outro livro, The Deep Things of God [As Coisas Profundas de Deus]. Eu vou resumir aqui os princípios que eu descobri nesses estudos, com um ou dois textos-prova para cada princípio. Argumentos mais detalhados podem ser encontrados nos livros supracitados. Mas aqui vou resumir só o suficiente para discutir o tópico em questão.

Princípio Um (1): Deus é consistente. Esse princípio não deveria ser controverso. Se Deus é Deus, esperamos uma certa consistência em Suas palavras e ações. O que Deus diz, Ele faz. O que Ele faz, Ele tende a repetir. A profecia se alicerça na consistência de Deus. Como Ele é consistente, nós antecipamos que Ele fará o que Ele diz e repetirá o que Ele faz. As palavras de Deus projetam como Ele agirá no futuro. As ações anteriores de Deus projetam como Ele agirá no futuro. A profecia existe porque é possível contar que Deus fará o que Ele diz. Mas esse princípio precisa ser equilibrado por um segundo.

Princípio Dois (2): Deus não é sempre previsível. Apesar de Deus ser consistente, às vezes Ele nos surpreende. Como Deus é Deus, nós não podemos sondar completamente Suas palavras e ações. Seus pensamentos são superiores aos nossos pensamentos, e Seus caminhos são superiores aos nossos caminhos (Is 55:8-9). Há uma consistência nas ações de Deus entre a criação, o Dilúvio e o Êxodo, por exemplo. Mas uma análise cuidadosa demonstra que Deus não repete cada detalhe das ações anteriores nas ações posteriores. Profecias cumpridas também demonstram que Deus nem sempre cumpre cada detalhe de um padrão ou de uma profecia anterior. Então é necessária certa medida de cautela santificada na avaliação de profecias não cumpridas. “Quão insondáveis são os seus juízos, e inescrutáveis os seus caminhos! Quem conheceu a mente do Senhor?” (Rm 11:33-34, NVI). O Espírito de Deus é como o vento, você “não pode dizer de onde vem nem para onde vai” (Jo 3:8, NVI). Sugerir que a consistência de Deus exige que Ele cumpra nossa compreensão de cada palavra e detalhe de uma profecia é deixar de observar o que está nas próprias Escrituras. Quando afirmamos que dominamos os detalhes do futuro com base nas profecias, nós nos abrimos ao desapontamento e até ao auto-engano.

Princípio Três (3): Deus é criativo. Deus não se limita às palavras e ações do passado. O antítipo nem sempre leva a cabo o tipo em uma correspondência ponto por ponto. Deus pode transcender o que fez antes, acrescentando novos elementos não discerníveis a partir da profecia ou das ações anteriores de Deus. Isaías 43:18-19 (NVI) diz: “Esqueçam o que se foi; não vivam no passado. Vejam, estou fazendo uma coisa nova!” Essa passagem está no contexto da promessa de Deus de repetir a experiência do Êxodo na libertação futura de Israel da Babilônia. Mas Ele é claro ao dizer que o cumprimento não será limitado a uma repetição dos detalhes históricos do Êxodo. Deus vai transcender o Êxodo, acrescentando novos aspectos inesperados ao cumprimento. Tomados em conjunto, esses três princípios devem nos prevenir contra certezas excessivas quanto a cada detalhe de uma previsão divina antes que chegue o cumprimento. Deixe que Deus seja Deus!

Princípio Quatro (4): Deus encontra pessoas no lugar em que elas estão. Sempre que Deus se revela para um profeta, Ele o faz dentro da época, do local e das circunstâncias do profeta. Toda linguagem se baseia na soma total das experiências de um povo. Então Deus se comunica com os profetas no vocabulário deles, não no dEle, pois Sua linguagem não seria compreendida. Esse provavelmente é o princípio menos declarado explicitamente na Bíblia, mas está presente em vários textos. Ele é demonstrado, por exemplo, pelos quatro evangelhos. Uma única história é contada de quatro formas diferentes para alcançar uma ampla variedade de mentes. E ele é demonstrado na pessoa de Jesus Cristo, que veio à terra como um judeu do Primeiro Século, acostumado com os modos da galileia. Para entender o cumprimento de uma profecia, é necessário primeiro entender a linguagem, a época e o local do profeta. Isso é tão válido para Ellen White quanto é para qualquer um com quem Deus tenha se comunicado.

Princípio Cinco (5): Deus frequentemente espiritualiza a História. Começando com a história do Êxodo, nós vemos uma espiritualização das ações históricas de Deus na criação e no Dilúvio (Êx 14:21-22). Cenário e linguagem básicos são repetidos, mas Deus usa o vocabulário de modo figurado ou espiritualizado; passando de Adão para Israel, do Éden para Canaã, e de um mundo caótico e coberto por água para o caos espiritual da escravidão de Israel no Egito. Nos profetas, a história do Êxodo se torna o modelo para a transformação espiritual que Deus fará em Seu povo no futuro. A mesma coisa acontece em Apocalipse 13, onde o Pentecostes, os magos do Faraó, o Monte Carmelo, a criação de Adão, a imagem de Nabucodonosor e a apostasia de Salomão fornecem contexto para o grande conflito espiritual do fim dos tempos. No Novo Testamento em geral, as coisas de Israel são aplicadas à comunidade espiritual da igreja, e a linguagem da geografia de Israel é aplicada a todo o mundo. Perder a espiritualização das raízes de uma profecia é não entender seu objetivo.

Princípio Seis (6): Deus usa a linguagem do passado e presente do profeta para descrever o futuro. Isso se relaciona com o princípio quatro, mas passa do geral para o específico. Deus encontra as pessoas no lugar em que elas estão. Ele fala com os profetas na linguagem de suas épocas, seus locais e suas circunstâncias. Então previsões divinas do futuro são emolduradas como extensões naturais da época, do local e da compreensão do profeta. O Dilúvio seria uma desintegração da criação, seguida por uma nova criação. A escatologia de Deuteronômio 28 dependeria da obediência ou desobediência de Israel à aliança dali em diante. O retorno da Babilônia seria uma repetição do Êxodo. Um exemplo clássico disso é Isaías 11:15-16. É previsto que Israel será liberto da Assíria quando Deus usar um vento para secar o Rio Eufrates, de modo que os israelitas poderão cruzá-lo com suas sandálias. A profecia foi cumprida no retorno de Israel da Babilônia, mas nem um único detalhe acabou acontecendo exatamente como previsto. Ao invés de Israel, foi Judá que retornou. Ao invés da Assíria, eles retornaram da Babilônia. Ao invés de um vento, foram os engenheiros de Ciro que secaram o eufrates; ao invés de cruzar o leito do rio, o povo de Deus cruzou as pontes, pois Ciro os libertou do cativeiro. Os primeiros dois são explicados pela localização de Isaías no tempo (presente de Isaías), quando Israel ainda existia e a Assíria dominava o mundo. Deus o encontrou onde ele estava. Os dois últimos são explicados pelo uso da linguagem do Êxodo (passado de Isaías) para descrever a futura libertação de Deus.

Princípio Sete (7): Cumprimentos proféticos são compreendidos mais claramente durante ou após sua ocorrência. O registro de previsões futuras com base em profecias não é um bom registro. Os primeiros seis princípios nos ajudam a explicar esse histórico lamentável. Parte do problema é o próprio propósito da profecia. A profecia não nos foi dada para satisfazer nossa curiosidade a respeito do futuro (apesar dessa ser a forma através da qual muitos abordam profecias), mas foi dada para ensinar-nos como viver hoje e para fortalecer nossa fé na época do cumprimento. Jesus diz essencialmente isso em João 14:29: “Isso eu lhes disse agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, vocês creiam.” Durante ou após o cumprimento de uma profecia vai ficar evidente o que Deus estava fazendo, e a fé será fortalecida. Este mesmo princípio deve nos prevenir quanto a esperar uma clareza cristalina em relação ao futuro antes do cumprimento.

Princípio Oito (8): Há dois tipos de profecia, a Clássica e a Apocalíptica. A forma através da qual profecias se cumprem é impactada por essa distinção. A profecia apocalíptica pode ser observada nas visões de Daniel 2 e 7, e em passagens como Apocalipse 12. Ela tende a envolver uma série de eventos históricos que se seguem, um após o outro, desde os dias do profeta até o Fim. Cumprimentos duais ou múltiplos não devem ser esperados, pois a profecia cobre todo o período desde os dias do profeta até o fim. Profecias apocalípticas tendem a ser incondicionais, Deus compartilhando as grandes pinceladas da História que Ele prevê ocorrendo. Em contraste, a profecia clássica é vista em livros como Isaías, Oséias e Jeremias. Há um foco muito forte na situação imediata, e se o fim de todas as coisas estiver no horizonte, ele é uma extensão natural da situação, época e local do profeta. Há fortes elementos condicionais, o cumprimento é dependente da resposta humana.

Os escritos de Ellen White se encaixam no estilo clássico de profecia. Ela fala para sua situação imediata, encorajando a fidelidade em Deus nas Escrituras. Quando ela comenta sobre o futuro, fala em termos de uma extensão natural da situação imediata, ao invés de previsões claras de coisas que não existem em seus dias. Por exemplo, ela não antevê uma guerra ou energia nuclear, ela não fala de telefones celulares, computadores, da internet, do terrorismo islâmico, de viagens espacias, das duas Guerras Mundiais, ou da ascensão do secularismo e do pós-modernismo. Quando ela descreve a ação policial no fim dos tempos, os policiais estão portando espadas, algo mais comum em seus dias do que hoje! Isso não significa que Deus era incapaz de compartilhar nosso futuro com ela, só que tal revelação não era central ao seu propósito profético: encorajar a fidelidade a Deus e a atenção cuidadosa às Escrituras. E em relação às profecias ela diz, “Cumpre lembrar que as promessas e as ameaças de Deus são igualmente condicionais” (Eventos Finais, 38). Um bom exemplo de uma profecia condicional foi sua declaração em 1856, de que alguns em seus dias viveriam para ver Jesus voltar. Obviamente as condições para aquela profecia nunca foram cumpridas, e ainda estamos aqui em 2020.

No próximo artigo vamos começar a analisar Apocalipse 13:13-17, a passagem da Bíblia que é citada mais frequentemente em relação à possibilidade de decretos dominicais no futuro da Terra. Após uma exploração renovada de Apocalipse 13, nos voltaremos às principais declarações de Ellen White sobre o assunto.