Em sua prática exegética, Karl Marx aplicou, de forma invertida, o pensamento de Paulo e João sobre a encarnação de Cristo ao dinheiro: ao invés de ser servo da humanidade, o dinheiro a ela serve como Deus e, por isso, atua como anticristo


Um dos conteúdos menos trabalhados na obra de Marx é o modo como ele utiliza e interpreta textos bíblicos.1 De família e tradição judaica,2 tendo se batizado luterano na adolescência por questões políticas que envolveram a carreira profissional de seu pai,3 Marx estudou em um ginásio de confissão católica, cujo nome era Spee4. Por essa trajetória, desenvolveu uma relação bastante particular e inteligente de manejo dos textos bíblicos. Sua habilidade exegética já pode ser reconhecida no ensaio escrito como exame de requisito parcial para a conclusão de seus estudos pré-universitários, que se tratava propriamente de um comentário teológico à perícope de João 15.1-14. O objetivo do tema proposto era demonstrar “a base, a essência, a necessidade e os efeitos” da união dos crentes com Cristo.5

Para o avaliador dessa prova teológica, Johann Abraham Küpper6, o conteúdo do texto do jovem Karl Marx era “profundo no pensamento, escrito de maneira brilhante e contundente, merecedor de elogios, embora o tema – a essência da união – não seja elucidado, sua causa seja tratada unilateralmente, sua necessidade não seja provada adequadamente”.7 Como comenta Roland Boer, Marx, com seus 17 anos de idade, realizou um trabalho exegético impressionante, mas pecou ao não concluir sua análise reafirmando uma doutrina específica (em qualquer uma das tradições religiosas pelas quais passou).8 Daí a parte final do comentário do Professor Küpper. De todo modo, em seu certificado de conclusão do ginásio e recomendação à Universidade de Bonn (assinado pelo avaliador do ensaio), afirma-se que com respeito à ciência da religião: “Seu conhecimento da fé e da moral cristã é bastante claro e bem fundamentado; ele conhece também, até certo ponto, a história da Igreja Cristã.”9

Fazemos esses apontamentos, claro, não para propor que Marx fosse um fiel e religioso. Ao contrário, Marx declarou diversas vezes seu ateísmo (apesar de não ser propriamente contra a religião). O que nos interessa é indicar a capacidade exegética e hermenêutica de Marx no manejo dos textos bíblicos.10 Em especial porque desejamos apresentar uma argumentação a partir de um excerto dos textos preparatórios para O Capital, conhecido como Grundrisse, no qual Marx faz referência à epístola paulina aos Filipenses.

Nesse material, ao tratar do dinheiro e de sua circulação no “mundo das mercadorias”,11 Marx diz: “De sua figura de servo, na qual se manifesta como simples meio de circulação, converte-se repentinamente em senhor e deus no mundo das mercadorias.” Para bom entendedor, meia palavra basta. O que temos é uma inversão da fórmula de Filipenses 4.5-7: “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens.”12

O paralelo feito pelo intelectual alemão entre a kenósis13 de Jesus no mundo dos homens e o apoderamento do dinheiro no mundo das mercadorias estabelece propriamente uma contraposição entre o movimento de Cristo e o movimento do dinheiro, considerado como senhor e deus das mercadorias. O movimento de Cristo e de seu oposto – portanto, do ou de um anticristo. Se considerarmos com mais cuidado essa inversão explorada por Marx, reencontramos um sentido bastante específico das oposições apresentadas na primeira epístola de João, perícope 2.15-18 (itálicos acrescentados): 

Não amem o mundo nem o que nele há. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele. Pois tudo o que há no mundoa cobiça da carne, a cobiça dos olhos e a ostentação dos bens — não provém do Pai, mas do mundo. O mundo e a sua cobiça passam, mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre. Filhinhos, esta é a última hora; e, assim como vocês ouviram que o anticristo está vindo, já agora muitos anticristos têm surgido. Por isso sabemos que esta é a última hora.”

Aqui, a oposição entre o que há no mundo e o que provém do Pai tem uma referência clara: a cobiça da carne, a cobiça dos olhos e a ostentação dos bens. Trata-se, pois, de um conteúdo material explícito e que toca o problema da cobiça e da concentração de bens (assim como da exposição dessa concentração). A vontade de Deus que permanece se opõe à efemeridade dos bens e da cobiça deste mundo. Na inversão indicada por Marx em referência à carta paulina, temos propriamente esse papel desempenhado pelo dinheiro, como expressão do anticristo. Se seguirmos esse fio marcando como referência a cobiça e a ostentação dos bens, reposicionamos o conteúdo de outra perícope de 1 João, localizada em 4.1-3 (itálicos acrescentados):

“Amados, não creiam em qualquer espírito, mas examinem os espíritos para ver se eles procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo. Vocês podem reconhecer o Espírito de Deus deste modo: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne procede de Deus; mas todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus. Esse é o espírito do anticristo, acerca do qual vocês ouviram que está vindo, e agora já está no mundo.”

O crivo para se reconhecer o espírito de Deus também remete à experiência da kenósis. A confissão de que Jesus veio em carne, que se fez carne, se opõe a quem nega essa relação – quem propõe, portanto, que o Cristo não veio em carne. Esse espírito que não expressa a experiência de encarnação e humanização do Cristo, mas arroga a “divinização”, é anticristo. Novamente, um movimento que encontra eco no texto paulino e potencializa a inversão indicada por Marx no uso que faz dessa estrutura.

A oposição entre o espírito de Deus e o espírito do mundo, entre o movimento de encarnação e esvaziamento de poder de Cristo e o movimento de divinização e “apoderamento” do anticristo, encontra uma raiz comum na estrutura discursiva do Sermão da Montanha, no evangelho de Mateus. Nele encontramos o seguinte, na perícope 6.19-24 (itálicos acrescentados):

“‘Não acumulem para vocês tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem destroem, e onde os ladrões arrombam e furtam. Mas acumulem para vocês tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não destroem, e onde os ladrões não arrombam nem furtam. Pois onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração. Os olhos são a candeia do corpo. Se os seus olhos forem bons, todo o seu corpo será cheio de luz. Mas se os seus olhos forem maus, todo o seu corpo será cheio de trevas. Portanto, se a luz que está dentro de você são trevas, que tremendas trevas são! Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro.’”

Há uma clara oposição entre valores da terra e valores do céu (ou deste mundo e do Reino dos céus). Não se trata apenas do lugar em que se acumulam os tesouros, mas o que é considerado como tesouro a partir do critério da terra e a partir do critério dos céus. Os tesouros da terra são diferentes dos tesouros do céu, pois os valores são diferentes – senão opostos. O tesouro se reconhece pelo lugar em que o coração está, e dessa posição determinados conteúdos podem aparecer como tesouro ou não. Por isso o trecho seguinte a respeito dos olhos bons em oposição aos olhos maus: os olhos que avaliam o mundo da maneira certa, enriquecem todo o corpo. Já os olhos que avaliam o mundo sob critérios maus, aprofundam-se em terríveis trevas. E a última referência para as oposições está a quem se serve, a qual senhor se ama: a Deus ou ao dinheiro (Mamon).

Serve-se ou a um, ou a outro. De certa maneira, a oposição é surpreendente, pois comumente imaginamos o oposto entre bem e mal, entre valores espirituais, a partir de uma referência de um poder divino bom contra outra divindade má. Em geral, ou se serve a Deus ou ao “diabo”. Mas, no caso, o conteúdo de referência é bastante tangível e objetivo: o dinheiro. Se preferirmos utilizar o termo Mamon, temos: ou servimos a Deus, ou ao ídolo feito por mãos humanas que representa o poder de outro objeto também fruto do trabalho humano e de relações sociais – que é a forma dinheiro. O uso da inversão do texto de filipenses por Marx, portanto, não é sem propósito, de pouco caso ou apenas uma ironia. Consiste propriamente em um trabalho exegético inteligente e amadurecido ao longo do tempo.

Por volta de 15 anos antes do texto dos Grundrisse do qual partimos em nossa discussão, Marx já tratava no principal artigo do Jornal de Colônia, número 179, de Mamon como o “governante desse mundo”.14 Denunciando o Estado cristão defendido por parcelas da burguesia alemã, Marx passeia por uma série de referências às interpretações tradicionais que são feitas de passagens do Novo Testamento para começar propriamente seu trabalho de crítica ao dinheiro.15 Na evolução de sua produção teórica, não utilizará mais a tradição neotestamentária de Mamon, passando a recuperar a figura de Moloque, como representação da exigência feita por sacrifícios humanos em troca de prosperidade e riqueza.16

Como destaca Enrique Dussel, trata-se do amadurecimento da crítica ao fetiche, do germe da teoria do fetichismo de Marx, por meio da qual são reveladas as relações sociais e materiais que constituem e se escondem por trás de determinados produtos históricos do trabalho humano: “Se Moloque é a quem são oferecidas vidas em sacrifício, se Mamon é o dinheiro, o Fetiche é obra ou produto das mãos do próprio homem, objetivando nele seu próprio poder.”17 Nesse sentido, podemos notar que no uso da inversão da kenósis para denunciar o dinheiro como anticristo está propriamente um passo de crítica ao fetichismo – trabalhado como crítica à idolatria.

Tocamos, portanto, em um problema de critérios para a avaliação e valorização do mundo: se eles partem do serviço a Deus ou do serviço ao dinheiro, como colocado no Sermão da Montanha. Lemos na continuidade do texto do Evangelho segundo Mateus, na perícope 6.25-34 (itálicos acrescentados), o seguinte:

“‘Portanto eu lhes digo: não se preocupem com suas próprias vidas, quanto ao que comer ou beber; nem com seus próprios corpos, quanto ao que vestir. Não é a vida mais importante do que a comida, e o corpo mais importante do que a roupa? Observem as aves do céu: não semeiam nem colhem nem armazenam em celeiros; contudo, o Pai celestial as alimenta. Não têm vocês muito mais valor do que elas? Quem de vocês, por mais que se preocupe, pode acrescentar uma hora que seja à sua vida? Por que vocês se preocupam com roupas? Vejam como crescem os lírios do campo. Eles não trabalham nem tecem. Contudo, eu lhes digo que nem Salomão, em todo o seu esplendor, vestiu-se como um deles. Se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada ao fogo, não vestirá muito mais a vocês, homens de pequena fé? Portanto, não se preocupem, dizendo: ‘Que vamos comer?’ ou ‘que vamos beber?’ ou ‘que vamos vestir?’ Pois os pagãos é que correm atrás dessas coisas; mas o Pai celestial sabe que vocês necessitam delas. Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas. Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã se preocupará consigo mesmo. Basta a cada dia o seu próprio mal.’”

Em decorrência da oposição entre os senhores, temos uma discussão sobre o fundamento permanente e o produto contingente da história: a vida é fundamento para qualquer alimento, o corpo é fundamento para qualquer possibilidade de vestimenta. Sem a necessidade de se alimentar para manter a vida, o alimento não tem sentido ou valor, assim como a roupa não tem conteúdo em si mesmo, a não ser que vista um corpo que necessita se proteger do sol, do vento ou do frio. Quando se valoriza o mundo a partir do serviço ao dinheiro, o produto das mãos humanas tem mais valor que as próprias mãos que o produziram. Contudo, não temos muito mais valor? Essa é a questão posta. A partir do critério do serviço a Deus, os valores deste mundo se invertem, e o próprio dinheiro e o que pode comprar ganham estatuto secundário. O fundamental se encontra na justiça do Reino de Deus, que valoriza as coisas a partir de seus fundamentos reais e efetivos e não pelos produtos contingentes das ações e da história humana.Nesse sentido, a inversão da kenósis feita por Marx é, a bem da verdade, uma chave hermenêutica para uma tradição crítica à idolatria, mas de um tipo específico: à centralidade do dinheiro e de todas as relações sociais que o acompanham. O movimento de denúncia contra esse elemento central a uma economia de mercado como a capitalista apresenta propriamente uma crítica ao espírito do anticristo, que nega a encarnação do Cristo não apenas como um advento teológico isolado, mas como um critério espiritual permanente.

Notas:

1. As obras sobre o tema que possuem maior fôlego e relevância não foram traduzidas para o português, por exemplo. Destaquemos como exemplo Marxism and religion (1987), de David Mcclellan, Las metáforas teológicas de Marx (1993), de Enrique Dussel, e a recente trilogia On Marx, Engels and Theology (2011-2015), de Roland Boer. Cabe, também, menção à produção teórica de Franz Hinkelammert, que não trabalha propriamente comentários específicos sobre o uso da tradição bíblica feita por Marx, mas a apresenta em seus comentários sobre a teoria de Marx e, mais ainda, as aplica como chaves hermenêuticas e interpretações em seus escritos.

2. Ver Micahel Heinrich (2019), Karl Marx and the birth of modern Society: the life of Marx and the development of his work. Volume I (1818-1843). Monthly Review Press: New York, pp. 351-354.

3. Ver Enrique Dussel (1993), Las metáforas teológicas de Marx. Verbo Divino: Navarra, p. 28.

4. Ver Enrique Dussel (1993) Las metáforas teológicas de Marx. Verbo Divino: Navarra, p. 29.

5. Ver Karl Marx-Friedrich Engels (1975), Marx-Engels Collected Works: Volume I (1835-1843). Lawrence & Wishart Ltd: London / International Publishers Co. Inc.: New York, pp. 363-364.

6. Ver Micahel Heinrich (2019), Karl Marx and the birth of modern Society: the life of Marx and the development of his work. Volume I (1818-1843) Monthly Review Press: New York, p. 100.

7. Karl Marx-Friedrich Engels (1975), Marx-Engels Collected Works: Volume I (1835-1843). Lawrence & Wishart Ltd: London / International Publishers Co. Inc.: New York, p. 758, nota 198.

8. Ver Roland Boer (2012), Criticism of Earth On Marx, Engels and Theology. Brill: Leiden, pp. 208-219.

9. Karl Marx-Friedrich Engels (1975), Marx-Engels Collected Works: Volume I (1835-1843). Lawrence & Wishart Ltd: London / International Publishers Co. Inc.: New York, p. 644.

10. De acordo com seu certificado de conclusão do ginásio e recomendação à universidade, Marx tinha grande habilidade com as línguas clássicas latina e grega, tendo destacada sua facilidade em traduzir e trabalhar com textos complexos. Há ainda a indicação de hebraico, mas sem preenchimento de seu nível ou capacidade no trato com a língua. Ver Karl Marx-Friedrich Engels (1975), Marx-Engels Collected Works: Volume I (1835-1843). Lawrence & Wishart Ltd: London / International Publishers Co. Inc.: New York, p. 643-645.

11. Karl Marx (2010), Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 – esboços da crítica da economia política. Boitempo: São Paulo, p. 165.

12. Para os textos bíblicos utilizamos a tradução da Nova Versão Internacional.

13. Kenósis é um conceito, na teologia cristã, que denota o esvaziamento da vontade própria em prol da aceitação de uma vontade divina, superior à sua.

14. Ver Karl Marx-Friedrich Engels (1975), Marx-Engels Collected Works: Volume I (1835-1843). Lawrence & Wishart Ltd: London / International Publishers Co. Inc.: New York, pp. 184-202.

15. Ver Roland Boer (2012), Criticism of Earth On Marx, Engels and Theology. Brill: Leiden, pp. 53-68.

16. Ver Enrique Dussel (1993), Las metáforas teológicas de Marx. Verbo Divino: Navarra, pp. 34-36.

17. Enrique Dussel (1993), Las metáforas teológicas de Marx. Verbo Divino: Navarra, p. 39.