O encontro, tradicional para a comunidade LGBTQIAPN+ adventista, contou com uma palestra de Marcos Apolônio, voluntário da organização internacional, e uma pregação do Pr. Edson Nunes Jr.


26 dez., 2022 | Redação Zelota

Grupo de participantes da primeira mini-campal da Kinship Brasil (Foto: Itamar Matos; Montagem: Jayder Roger)

Nos dias 12-14 de novembro de 2022, a organização Kinship Adventista do Sétimo Dia Internacional (SDA Kinship), que há décadas luta pela afirmação LGBTQIAPN+ na Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), realizou o primeiro Mini Kampmeeting brasileiro, uma série de encontros de confraternização, adoração e comunhão para a comunidade LGBTQIAPN+ adventista. O encontro empresta o nome de um evento adventista tradicional desde sua fundação, o “Campmeeting” – conhecido na cultura brasileira como “Campal” –, em que adventistas, geralmente jovens, acampam juntos em meio à natureza, participando de programações focadas na confraternização entre irmãos e na adoração a Deus. 

Abrindo o evento, o encontro de sábado (12) foi realizado na igreja Cidade de Refúgio, localizada no bairro de Santa Cecília. O auditório teve suas primeiras fileiras ocupadas por cerca de 40 participantes, que cantaram músicas tradicionais adventistas, como “Brilhar por Ti” e “O poder do amor”, enquanto uma bandeira arco-íris tremulava em um telão no topo do palco. A alegria do grupo por finalmente se reunir presencialmente só era comparável ao seu nervosismo por estar em um ambiente religioso sem esconder sua sexualidade. “Tive várias crises de ansiedade antes de vir, e até cheguei a vomitar, mas estou aqui”, confidenciou um dos participantes no momento de pedidos e agradecimentos.

Passados os momentos de louvor e oração, subiu ao palco Marcos Apolônio, 56, consultor para a SDA Kinship Brasil e voluntário da organização internacional desde 2003. Adventista desde a infância, Marcos foi colportor, assistente de colportagem e pastor da IASD no distrito do Capão Redondo, São Paulo. Após descobrir sua homossexualidade, no entanto, deixou o ministério e se mudou para os EUA, onde fez um mestrado em serviço social e obteve a licença para que pudesse atuar como psicoterapeuta na assistência social no estado da Califórnia; hoje Marcos é professor do mestrado em serviço social na California State University, além de atender em seu consultório particular.

Marcos subiu ao palco para compartilhar, através de curtas frases, algumas lições que aprendeu ao longo de sua vida. A primeira foi algo que ouviu de seu terapeuta enquanto ainda era pastor e lutava contra sua sexualidade: “Deus é infinitamente maior do que a sua vida de pastor do Capão Redondo pode abarcar, é infinitamente maior do que você pode compreender.” Boa parte das lições diziam respeito a aceitar que sua sexualidade não prejudica sua relação com Deus e com o próximo: 

  • “Deus me abençoa mesmo sendo gay”; 
  • “Eu beijar um homem não causa terremotos nem pragas”; 
  • “Meus filhos aprenderam muito mais comigo fora do armário do que dentro, pergunte para eles”. 

As outras lições, em sua maioria, diziam respeito à saúde mental e à convivência respeitosa com outros membros da comunidade:

  • “Eu preciso aceitar quem eu sou em todos os sentidos”;
  • “Eu preciso aprender a lidar com as minhas imperfeições, das quais a orientação sexual não faz parte”;
  • “A gente precisa de um sistema de suporte, mesmo que seja só uma pessoa”;
  • “A Kinship é muito importante, e é composta de pessoas muito traumatizadas. Não surpreende que surjam encrencas”;
  • “Cuide do seu crescimento, e vá à terapia”;
  • “A gente pode, merece e tem o direito de ter qualidade de vida”;
  • “Preciso diferenciar orientação sexual, identidade de gênero e problemas emocionais”;
  • “O que você pensa a meu respeito não é da minha conta”.
Momento de louvor na mini-campal da Kinship (Foto: Itamar Matos).
Momento de louvor na mini-campal da Kinship (Foto: Itamar Matos).

Esta não seria a última reflexão da manhã. Após compartilhar suas lições com o grupo, Marcos convidou o Pr. Edson Nunes para ministrar um breve sermão à comunidade. “Eu já tinha ouvido falar do Pr. Edson pelos membros da Kinship que frequentavam a Nova Semente, e estava tentando conversar com ele há algum tempo”, conta Marcos à revista Zelota. Tais conversas vinham sendo adiadas devido ao tumulto de sua saída, mas, ao ser contactado por Apolônio, prontamente aceitou o convite para pregar. Nunes, após apresentar textos rabínicos que chamavam os samaritanos de “filhos do demônio”, revisitou a parábola do Bom Samaritano, argumentando que Jesus usa justamente os chamados “filhos do demônio”, alcunha já conferida antes a gays adventistas, para demonstrar o que é a verdadeira religião. “A ideia é podermos fazer mais coisas juntos, seja para o crescimento do ministério dele, seja para a Kinship”, explica Marcos.

Após o almoço, houve uma roda de conversa para compartilhar experiências pessoais. Por fim, ao longo do feriado, foram realizados piqueniques ao ar livre, jantares, visitas a exposições e até ao karaokê – tudo na cidade de São Paulo, SP.

Revisões e previsões

A SDA Kinship Brasil existe desde o ano 2000, sendo presidida por Itamar Matos desde sua fundação. Segundo Marcos, no entanto, o tamanho do país e a diversidade regional dos participantes inviabilizava um encontro até o momento. “A pandemia deu um gás maior na Kinship e na comunidade on-line, e então fizemos esse evento piloto”, conta. O plano a partir de 2023 é fazer de fato uma “Kampal” aos moldes dos Kampmeetings estadunidenses, alugando um espaço por vários dias para a realização de workshops, reuniões, seminários, espaços de discussão, cultos e momentos de socialização e saúde mental. “Sempre foi um sonho; agora arriscamos fazer este evento e deu certo.”

Embora tenha dado certo, o evento teve uma predominância de homens cisgênero e algumas mulheres cisgênero, em sua maioria brancos, com a exceção de uma pessoa não-binária da Europa que estava de passagem por São Paulo. “A comunidade LGBT tem sido historicamente liderada por homens cis e brancos, e a gente precisa de fato mudar isso aí”, compartilha Marcos, que, como consultor da SDA Kinship Brasil, também fomenta a discussão desse problema nos grupos da liderança. “É fundamental para a Kinship conseguir sobreviver. Há explicações para essa dinâmica, mas é fundamental que a gente crie mais diversidade dentro do grupo.” Segundo um levantamento preliminar realizado pela Zelota, 59,3% dos adventistas LGBTQIAPN+ brasileiros se identificam como homens cis, e 57,1% como homossexuais.

No fim, a atuação da SDA Kinship e a realização de novos encontros segue sendo de vital importância para a IASD brasileira. “O número de adventistas no Brasil é muito alto, e o número de pessoas LGBTQIAPN+ dentro da igreja é proporcional”, avalia Marcos. “Essas pessoas precisam de suporte, porque a linguagem adventista é muito específica, e é muito difícil para quem cresceu nesse ambiente procurar suporte emocional e espiritual lá fora.” Apolônio atualmente faz sua pesquisa de doutorado com foco na importância de profissionais que entendam o aspecto cultural de pessoas que vêm de religiões fundamentalistas ou ultraconservadoras. 

“Os terapeutas precisam estar habilitados, ter humildade cultural e se educar sobre esses assuntos. Simplesmente dizer ‘procure uma igreja LGBT’, ou ‘largue a igreja e vá viver a sua vida’, é o tipo de coisa que não resolve e não ajuda. Entender a experiência do indivíduo é fundamentalmente importante para esse processo de cura e de ajuda, pois essa situação pode ser extremamente traumática e gerar uma sensação de perda profunda”, explica Marcos.