No capítulo d’O Grande Conflito sobre a Revolução Francesa, Ellen G. White usou como fontes históricas autores conservadores e monarquistas, fortes em fervor moral, cujo material histórico já era desacreditado à época


Por William S. Peterson | Artigo traduzido e adaptado por André Kanasiro do original em inglês1 de 1970 para a revista Zelota.

Revolução Francesa em ilustração da edição de 1888 de O Grande Conflito (Wikimedia Commons, Edição: Jayder Roger)

A despeito da posição proeminente de Ellen G. White2 na teologia e história da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), e a despeito dos vários artigos e livros que foram escritos sobre ela, ainda sabemos notavelmente pouco sobre ela em sua obra literária, pois os acadêmicos da igreja ainda não examinaram detalhada e sistematicamente suas várias publicações. Creio que, se queremos compreender o adventismo, como é hoje e como era no século 19, precisamos empreender este estudo, que sem dúvida trará, em última instância, benefícios à igreja.

O que eu proponho fazer aqui, com alguma hesitação, é dar um exemplo do método que a pesquisa acadêmica adventista pode ter bom resultados ao adotar para este exame dos escritos de Ellen White. Eu selecionei de seu livro O Grande Conflito o capítulo intitulado “A Escritura Sagrada e a Revolução Francesa”. Eu considerei nesse capítulo as evidências textuais e históricas disponíveis, da mesma forma que outros documentos literários religiosos são estudados por críticos e historiadores cristãos. Quaisquer conclusões que eu tirar obviamente devem ser testadas contra os outros capítulos em O Grande Conflito e todos os seus outros livros, que eu deliberadamente excluí da consideração feita aqui.

Eu não quero implicar, é claro, que sou o primeiro a tratar em detalhes da composição de O Grande Conflito. Mas eu só conheço dois ensaios sobre o livro que merecem atenção séria, e infelizmente nenhum deles faz as perguntas que eu me proponho a considerar.

O primeiro ensaio é um capítulo em Ellen G. White e seus críticos, no qual Francis D. Nichol tenta refutar a acusação de plágio em O Grande Conflito e Atos dos Apóstolos.3 Eu não tenho grandes discordâncias com os argumentos de Nichols, embora sinta que ele fica em um terreno instável ao defender a Sra. White, mostrando que outros escritores adventistas do século 19 também plagiaram amplamente. Na verdade, Nichol me parece estar chutando um cachorro morto com sua charmosa energia de costume. Plágio, pelo menos conforme definido de forma restritiva por ele, não é o verdadeiro problema em O Grande Conflito.

Outro tratamento do assunto, que achei útil, é um artigo mimeografado intitulado “Ellen G. White as an Historian” [“Ellen G. White como Historiadora”], por Arthur White, secretário do Centro Ellen G. White. Este artigo foi lido no Concílio Quadrienal da Universidade Andrews sobre Educação Superior, em agosto de 1968. Arthur White em alguma medida cobre o mesmo terreno que eu, e oferece muitas citações valiosas de cartas não publicadas de Ellen White e seu filho. Novamente, embora eu dificilmente discorde do que White diz, ele no geral ignora as questões que me interessam.

Quais historiadores Ellen White tinha em mais alta estima? Eles têm em comum algum viés social ou político em particular? O quão cuidadosa ela foi em seu uso de evidências históricas? Ela cometeu algum erro de cópia ao transcrever material de suas fontes? Há alguma categoria particular de informações históricas que ela ignorou consistentemente? Ela usou as melhores pesquisas acadêmicas disponíveis na sua época? O que as revisões em edições sucessivas de O Grande Conflito revelam sobre a mudança em suas intenções? Estas são as questões – e não as tradicionais sobre se ela cometeu plágio e se certas passagens são inspiradas – que devem receber nossa atenção.4

Antes que eu possa discutir quaisquer destes problemas, porém, devo traçar, tão brevemente quanto possível, a gênese e o desenvolvimento do texto de O Grande Conflito, particularmente o capítulo sobre a Revolução Francesa.

A origem do texto

Ellen White relatou que sua primeira revelação sobrenatural foi experimentada em um culto matutino, em dezembro de 1844. Em um relato publicado no ano seguinte, ela escreveu: “Enquanto eu estava orando junto ao altar da família, o Espírito Santo me sobreveio, e pareceu-me estar subindo mais e mais alto da escura Terra.” Ela relata ter sido levada ao Céu, onde viu o mar de vidro, a árvore da vida, e o trono de Deus.5 Outras visões se seguiram, lidando com a história da Bíblia, o surgimento do cristianismo, e eventos futuros, particularmente a segunda vinda de Cristo. Em 1858, abandonando sua prática de publicar relatos separados das visões, a Sra. White reuniu muito deste material no primeiro volume de Spiritual Gifts, que apresentava uma visão panorâmica da história humana, da queda de Adão ao Segundo Advento. Este livro constitui o núcleo do que mais tarde se tornaria O Grande Conflito, mas a esta altura ele era um livro fino e continha pouco material histórico, exceto por comentários ocasionais sobre as motivações de figuras religiosas importantes do passado. Não havia menção à Revolução Francesa.

Como o quarto volume de um conjunto publicado sob o título geral de The Spirit of Prophecy [“O Espírito de Profecia”], The Great Controversy Between Christ and Satan, From the Destruction of Jerusalem to the End of the Controversy [“O Grande Conflito entre Cristo e Satanás, da destruição de Jerusalém ao fim do conflito”] surgiu em 1884. O livro inicial foi consideravelmente ampliado, com algumas citações de historiadores seculares (embora as fontes não estivessem identificadas). A Revolução Francesa agora foi discutida pela primeira vez, em um capítulo intitulado “As Duas Testemunhas”, que era primariamente uma exposição de profecias bíblicas, e não tinha a pretensão de lidar adequadamente com a Revolução. O capítulo tinha cinco páginas e meia.

O livro vendeu bem, especialmente para não adventistas, e Ellen White começou a fazer planos para revisá-lo e aumentá-lo novamente. Em 1885, ela encontrou uma oportunidade para fazê-lo, pois ela e seu filho William, atendendo a pedidos dos líderes da igreja por uma visita às missões europeias, se mudaram para a casa publicadora adventista em Basel, Suíça, onde ela permaneceu até o outono de 1887. Durante este período, ela teve acesso à biblioteca, bem municiada de obras históricas, de J. N. Andrews, que tinha sido o primeiro missionário adventista na Europa até sua morte, em 1883.

Quando a nova edição de O Grande Conflito foi publicada, em 1888, ela estava liberalmente salpicada com longas citações de historiadores, mas novamente as fontes não estavam identificadas. “Em alguns casos, em que um historiador agrupou os eventos de modo a permitir uma visão breve e abrangente do assunto, ou resumiu detalhes de um modo conveniente, suas palavras foram citadas,” explicou a Sra. White em seu prefácio. “Exceto em alguns casos, não foram dados créditos específicos, pois eles não foram citados com o propósito de citar o autor como autoridade, mas porque sua sentença permite uma apresentação pronta e potente do assunto.” Em 1888, o capítulo, agora reintitulado “A Bíblia e a Revolução Francesa”, ocupava 24 páginas, e, além de profecias bíblicas e reflexões morais gerais, ele incluía descrições completas da perseguição dos albigenses6, do Massacre de São Bartolomeu, do culto à “Deusa da Razão”, e do Terror.

Mais tarde, em 1911, a Sra. White afirmou que as principais mudanças no livro foram resultado de novas visões. “Enquanto escrevia o manuscrito de O Grande Conflito eu percebia com frequência a presença dos anjos de Deus,” ela disse. “E muitas vezes as cenas sobre as quais eu estava escrevendo me eram apresentadas novamente em visões noturnas, de modo que elas ficavam frescas e vívidas em minha mente.”7

A edição de 1888 passou por várias impressões, até que em 1911, quando novas placas foram necessárias, a Sra. White contribuiu com algumas revisões finais. Estas foram principalmente notas identificando as fontes do material citado (embora algumas das citações não pudessem mais ser rastreadas, e portanto permaneceram não identificadas) e umas poucas correções de fatos históricos. A estrutura básica do livro, porém, não foi mudada desde 1888, e esta edição de 1911 permanece o texto padrão de O Grande Conflito.

As fontes sobre a Revolução Francesa

Deve ficar evidente, mesmo a partir deste resumo apressado da história de publicação do livro, que o período mais crucial em seu desenvolvimento foi 1885-1888, tempo no qual ele foi expandido em quase um terço de seu tamanho de 1884, através da interpolação de grandes quantidades de material histórico, muito citado verbatim. Felizmente, pelo menos algumas destas citações ainda podiam ser identificadas em 1911, e assim é possível para nós hoje rastrear os passos da Sra. White na revisão de “A Escritura Sagrada e a Revolução Francesa” e examinar as fontes que ela usou para este capítulo em particular. As notas de 1911, citam os seguintes autores:

Sir Walter Scott, The Life of Napoleon Buonaparte;8

George R. Gleig, “The Great Collapse”, Blackwood’s Magazine;9

James A. Wylie, The History of Protestantism;10

L. A. Thiers, History of the French Revolution;11

Philippe Buchez e Pierre Roux, Collection of Parliamentary History;12

J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation in Europe in the Time of Calvin;13

Guillaume de Felice, History of the Protestants of France;14

Henry White, The Massacre of St. Bartholomew;15

Archibald Alison, History of Europe from the Commencement of the French Revolution in M.Dcc.LXXXIX to the Restoration of the Bourbons in M.DCCC.XV.16

A questão que eu quero fazer é esta: será que estes historiadores têm alguma atitude ou viés em comum que possam explicar por que Ellen White foi atraída a eles?

Sir Walter Scott, sobre o qual, mais do que qualquer outro historiador (julgando pela frequência e tamanho das citações), a Sra. White se apoiou em peso para este capítulo, não era primariamente um historiador, é claro, mas sim o autor de romances históricos enormemente populares. A biografia de Napoleão foi produzida nos anos finais da vida de Scott para quitar grandes dívidas, e consequentemente foi escrita com grande pressa e mínima acurácia. Em um período de um ano, Scott foi capaz de produzir a obra massiva de nove volumes (impressos em letras pequenas), ganhando para si 18.000 libras. Seu secretário, na época um jovem inexperiente, posteriormente descreveu como ele e Scott escreviam por doze horas todos os dias na biblioteca deste, fazendo refeições em suas escrivaninhas para ganhar tempo. Ocasionalmente, a mão de Scott se cansava, e ele então ditava rapidamente ao seu companheiro, mal interrompendo o fluxo de palavras conforme tirava vários livros das prateleiras.17

A biografia resultante, estragada tanto pela pesquisa descuidada quanto pelo forte viés conservador monarquista de Scott, foi muito mal recebida pelas resenhas. A Ecletic Review observou que Scott tinha “um conhecimento extremamente superficial” de seu assunto, e que “marcas de pressa estão manifestadas em todos os lugares” do livro. A Monthly Review o achou um “fracasso claro e palpável”.18

A outra fonte principal da Sra. White em “A Escritura Sagrada e a Revolução Francesa”, James A. Wylie, era um escritor e editor escocês que, em suas próprias palavras, dedicava sua vida a “expor os erros papais e a clara e fervorosa contraexposição dos princípios da Reforma”.19 Entre suas outras obras estavam The Papal Hierarchy: An Exposure of the Tactics of Rome for the Overthrow of the Liberty and Christianity of Great Britain [“A hierarquia papal: uma exposição das táticas de Roma para a subversão da liberdade e do cristianismo da Grã-Bretanha”] (1878), e The Jesuits, Their Moral Maxims, and Plots against Kings, Nations and Churches [“Os jesuítas, suas máximas morais, e tramas contra reis, nações e igrejas”] (1881). Enquanto seu ódio ao papado era notável, a admiração de Wylie pelo protestantismo era tão pronunciada que ele não conseguia escrever sobre o assunto sem se tornar lírico. Considere esta passagem do primeiro capítulo de seu primeiro volume de History of Protestantism:

O protestantismo não é somente o resultado do progresso humano; ele não é um mero princípio de perfectibilidade inerente à humanidade. […] O protestantismo é um princípio que tem sua origem fora da sociedade humana; é um enxerto divino à natureza intelectual e moral do homem, pelo qual novas vitalidades e forças são introduzidas a ela, e o caule humano produz então um fruto mais nobre. É a descida de uma influência celestial que se alia a todos os instintos e poderes do indivíduo, com todas as leis e os desejos da sociedade, e que, estimulando tanto o indivíduo quanto o ser social a uma nova vida, e dirigindo seus esforços a objetivos mais nobres, permite o mais elevado desenvolvimento do qual a humanidade é capaz, e a mais plena conquista de todos os seus grandes fins. Em uma palavra, o protestantismo é o cristianismo revivido. [p. 2]

Aqui está um homem que claramente não é de confiança ao descrever a perseguição católica aos protestantes franceses.

George Gleig, o autor do artigo da Blackwood, também tinha uma forte tendência conservadora. Sua principal contribuição para a vida pública britânica foi um ataque à Lei de Reforma de 1832, que estendia o privilégio do voto à classe média.20 (A própria Blackwood, incidentalmente, era uma das principais revistas trimestrais conservadoras monarquistas na Bretanha.) A passagem do artigo de Gleig citada pela Sra. White (uma condenação moral devastadora do povo francês: “A França é a única nação do mundo relativamente à qual se conserva registro autêntico de que, como nação, se levantou em aberta rebelião contra o Autor do Universo.”) é parte de uma diatribe violentamente antifrancesa. Gleig estava especificamente pressionando por uma intervenção britânica militar ou diplomática contra os franceses no continente, e sua opinião rebaixada sobre a moral francesa parece ser o fruto natural de uma convicção política firmemente sustentada.

De modo similar, Sir Archibald Alison, um conservador monarquista escocês inflexível que acreditava na necessidade da escravização dos negros, se aposentou da vida pública em 1830 para avisar o mundo, através das páginas da Blackwood’s, dos “muitos males iminentes a partir da democracia e da Lei de Reforma”.21 No prefácio ao seu History of Europe, um livro que a Sra. White citou duas vezes em “A Escritura Sagrada e a Revolução Francesa,” Alison apresenta sua filosofia da história, que explica a tribulação da França atribuindo-a às “consequências da ascendência democrática”. Não obstante, ele diz, “os principais atores foram barrados por um poder invisível” – o que quer dizer, conforme notou The Dictionary of National Biography [“O dicionário de biografias nacionais”], que ele desejava “provar que a Providência estava do lado dos conservadores monarquistas”.

Outro historiador monarquista e antirrevolucionário (embora de certa forma mais imparcial) ao qual Ellen White recorreu foi Louis Adolphe Thiers, que, perto do fim de sua vida, serviu como o presidente da República Francesa. “As falhas do livro [o History of the French Revolution de Thiers],” declara G. P. Cooch, “são que sua visão foi externa, que seu autor nunca percebeu a importância de obter novos materiais, e que foi concebido e executado como um incidente em uma campanha política.”22

Os outros historiadores citados pela Sra. White – Buchez, White, D’Aubigné23, e de Felice – não precisam ser discutidos aqui, já que as citações que ela faz de seus livros são breves e primariamente factuais. Os autores mencionados anteriormente são citados extensivamente, e suas atitudes políticas, sociais e religiosas (conforme reveladas nas passagens que ela citou) parecem receber a aprovação de Ellen White.

É significativo compreender que eles tinham fortes antipatias contra o catolicismo e a democracia. Todos estes historiadores (com a exceção de Gleig, cujo artigo em 1870 é inconfundivelmente um anacronismo, e Wylie, que tinha um ponto de vista especialmente protestante para defender) pertencem a uma escola histórica “romântica” mais antiga, cujo trabalho já tinha sido amplamente desacreditado à época em que a Sra. White estava revisando O Grande Conflito em 1885. Não ajuda, portanto, repetir a afirmação familiar de que ela estava meramente ilustrando suas generalizações com citações da melhor pesquisa acadêmica histórica de sua geração. O fato é que ela não parecia estar familiarizada com qualquer uma das obras importantes que foram escritas sobre a Revolução na segunda metade do século, e que ela dependeu de tratados históricos mais antigos, que eram fortes em fervor moral e fracos em evidência factual.24

A fidelidade das citações

Por outro lado, é pouco frutífero apontar as muitas discrepâncias entre fatos e interpretações em O Grande Conflito e nosso conhecimento atual da Revolução Francesa, pois não podemos exigir que a Sra. White escrevesse em 1888 da perspectiva do fim do século 20. Basta dizer que, se ela estivesse escrevendo seu livro hoje, sua visão da história francesa provavelmente seria consideravelmente menos simplista.25 Mas penso que é razoável perguntar a acurácia e fidelidade com que a Sra. White usou os materiais que lhe estavam disponíveis na biblioteca de J. N. Andrews.

Primeiro, há a velha questão do plágio, que eu me recuso a considerar um grande problema (pelo menos em conexão com este capítulo). Eu concordo totalmente com Nichols na colocação de que os empréstimos não reconhecidos da Sra. White não foram feitos com intenção desonesta, e provavelmente refletem a ética literária mais frouxa do século 19. Abaixo segue um exemplo das paráfrases que são ocasionalmente encontradas no capítulo:

Durante sete dias perdurou o massacre em Paris, sendo os primeiros três com inconcebível fúria. E não se limitou unicamente à cidade, mas por ordem especial do rei estendeu-se a todas as províncias e cidades onde se encontravam protestantes.
O Grande Conflito, p. 272.
Durante sete dias perduraram os massacres em Paris, e os primeiros três com uma fúria especialmente imbatível. Tampouco se limitaram às muralhas da cidade. Em cumprimento às ordens enviadas da corte, foram estendidos a todas as províncias e cidades onde se encontravam protestantes.
Wylie, vol. 2, p. 604.

No entanto, na questão mais ampla da dependência intelectual, e não verbal, da Sra. White, deve-se dizer que ela os seguiu muito fielmente, e retirou a maior parte de seu material de apenas algumas páginas de cada um. É difícil, portanto, saber como interpretar a declaração da Sra. White de que estas cenas são baseadas primariamente em visões.

É verdade que a parte inicial do capítulo é uma discussão da importância profética da Revolução Francesa, e que as páginas finais oferecem generalizações morais a respeito do declínio da França. Mas quanto à seção central de “A Escritura Sagrada e a Revolução Francesa”, que é inteiramente histórica, eu a comparei linha por linha com suas fontes – onde elas são conhecidas – e não encontrei um único detalhe que também não esteja presente nelas. Mesmo sua perspectiva moral é compartilhada pelos historiadores que ela consultou. Exceto por umas poucas generalizações amplas sobre os albigenses, a Sra. White não oferece uma narrativa histórica conectada em 1884; isso só aparece depois de suas leituras na biblioteca de Andrews, e então cada fato, cada observação, vem de fontes impressas. Eu não sei, é claro, se o mesmo padrão de desenvolvimento literário pode ser encontrado nos outros capítulos históricos de O Grande Conflito.

Outra questão que Arthur White discutiu em detalhes é a dos erros factuais na edição de 1888, corrigidos em 1911. Um exemplo que ele cita é a afirmação feita em 1888 de que o início do Massacre de São Bartolomeu foi sinalizado pelo badalar “do grande sino do palácio”. Foi apontado à Sra. White que isso estava errado, e em 1911 a frase foi modificada para “um sino” (p. 272). Certamente deve-se concordar com Arthur White, para quem o erro é trivial e não vale à pena se agitar com ele; mas seu tratamento desta revisão particular é, de certa forma, enganosa, pois ele implica que a mudança foi feita como resultado de novas informações sobre o assunto que ficaram disponíveis entre 1888 e 1911.

Na verdade, o erro foi o resultado de um simples erro de leitura da fonte original, cometido pela Sra. White, antes de 1888. Wylie (vol. 2, p. 600), no qual a Sra. White estava se baseando nesta parte do capítulo, escreveu que “o sinal para o massacre seria o badalar do grande sino do Palácio da Justiça”. Duas páginas depois, Wylie explica que, no evento, o sino de St. Germain l’Auxerois é que foi tocado. Obviamente a Sra. White tinha lido a primeira afirmação, mas não a segunda, pois ela também demonstrou confusão quanto á hora da noite em que o sino tocou.

Este não é o único caso que encontrei de descuido da Sra. White ao transcrever material de suas fontes. Eu não estou falando, é claro, de mudanças pequenas na escolha de palavras ou na pontuação, pois estas não merecem nossa atenção; mas erros factuais óbvios, em seu efeito cumulativo, minam a base histórica do capítulo. Em 1888, por exemplo, a Sra. White escreveu sobre “os breviários do Antigo e do Novo Testamento”, uma sentença que mais tarde foi corrigida para “breviários, missais, e o Antigo e Novo Testamentos” (edição de 1911, p. 276). Este é um erro em transcrição que seria cometido por alguém não familiarizado com a natureza dos breviários.

A maior parte de seus erros, no entanto, são na direção do exagero. Em 1888, ela tinha falado dos “milhões” que morreram na Revolução Francesa; em 1911 esse número foi diminuído para “multidões” (p. 284). Um erro ainda mais revelador é um que nunca foi corrigido. No século 16, ela escreveu, “Milhares e milhares encontraram segurança na fuga” da França (edição de 1911, p. 277). Então o parágrafo seguinte é uma longa citação de Wylie. Se ela tivesse lido Wylie mais cuidadosamente, teria percebido, imediatamente antes da sentença que ela citou, esta outra sentença: “Enquanto isso, outro, e mais outro, se levantou e fugiu, até que o bando de discípulos do Evangelho autoconfessos e auto-expatriados aumento para entre 400 e 500” (Wylie, vol. 2, p. 212). O próprio Wylie é dado à hipérbole ao discutir perseguições católicas; e ao somarmos seus exageros com os da Sra. White, a distância da realidade histórica é de fato muito grande.26

Ainda outra questão que deve nos preocupar é se a Sra. White omitia ou suprimia consistentemente certos tipos de evidências que ela encontrava em suas fontes. Ela afirmou repetidas vezes, é claro, que ela não estava escrevendo uma historiografia balanceada, mas somente uma interpretação teológica da história. Então não deve nos surpreender que ela tenha tratado da Revolução Francesa inteiramente de um ponto de vista religioso; ela não levou em conta nenhuma força política, social ou econômica operando no Velho Regime. Pode-se apontar que tal visão da história é tão incompleta, ao seu próprio modo, quanto o seria uma negação completa da importância de fatores religiosos e morais nos assuntos humanos. No entanto, eu não tenho competência para entrar em uma discussão geral da teoria da história da Sra. White, e portanto vou restringir minhas observações a dois casos específicos em “A Escritura Sagrada e a Revolução Francesa”, nos quais encontro omissões significativas, o efeito de ambas sendo o aumento exagerado do papel do clero católico no ataque a instituições e ideais religiosos.

Para dar um exemplo notável do espírito irreligioso da Revolução, a Sra. White cita uma observação blasfema feita por uma pessoa que ela chama de “um dos padres da nova ordem” (edição de 1911, p. 274). A clara implicação é a de que este indivíduo é um dos “padres apóstatas” aos quais ela se referiu anteriormente na mesma página. Contudo, Alison (vol. 2, p. 90), de quem ela tomou esta anedota, meramente identificou o orador como “o comediante Monort”. Um clérigo ele não era, exceto talvez em algum sentido extravagantemente metafórico.

Outra história, que ela encontrou em Scott, foi alterada em seu significado mais básico por uma omissão similar de um detalhe importante. A citação de Scott, conforme impressa em O Grande Conflito (edição de 1911, p. 274), segue abaixo:

O “bispo constitucional de Paris foi obrigado a desempenhar a parte principal na farsa mais impudente e escandalosa que já se levou à cena em face de uma representação nacional. … Em plena procissão foi ele empurrado a fim de declarar à Convenção que a religião por ele ensinada durante tantos anos, era, em todo o sentido, uma peça de artimanha padresca, destituída de fundamento tanto na História como na verdade sagrada. Negou em termos solenes e explícitos a existência da Divindade a cujo culto fora consagrado, dedicando-se, para o futuro, à homenagem da liberdade, igualdade, virtude e moralidade. Depôs então sobre a mesa os paramentos episcopais, recebendo fraternal abraço do presidente da Convenção. Vários padres apóstatas seguiram o exemplo deste prelado.” — Scott.

E aqui estão as sentenças deletadas pela Sra. White: “Diz-se que os líderes da situação tiveram alguma dificuldade em induzir o bispo a cumprir a tarefa atribuída a ele, a qual, no fim, ele executou, não sem lágrimas e remorso subsequentes. Mas ele de fato desempenhou a parte que lhe foi prescrita” (vol. 1, p. 172). Nossa atitude quanto ao bispo certamente é transformada pelo conhecimento de que ele realizou o ato sob coação, e chorou enquanto o fazia; contudo, a Sra. White, provavelmente porque desejava sublinhar a apostasia da Igreja Católica, não revelou a nós estes fatos cruciais.

Algumas conclusões

Estou certo de que não entendo todas as implicações das evidências que vieram à luz neste estudo de um capítulo em O Grande Conflito. De minha parte, arriscarei apenas algumas conclusões, e deixarei as questões mais amplas para os teólogos.

Primeiro, não foi mera modéstia que levou a Sra. White a negar quaisquer credenciais como historiadora; devemos levar a palavra dela em conta nesta questão.27 Tratar O Grande Conflito como história é ignorar o caráter fundamentalmente teológico do livro.

Segundo, a compreensão adventista tradicional da natureza de sua inspiração não explica adequadamente os processos que vimos em funcionamento neste capítulo. Simplesmente não basta dizer que Deus mostrou a ela os contornos gerais dos eventos, e que ela então preencheu as lacunas com suas leituras. No caso da Revolução Francesa, não havia “contornos gerais” até que ela leu os historiadores.

Terceiro, eu espero que este estudo tenha demonstrado a grande necessidade em nossa igreja de um reexame sério e conjunto dos escritos de Ellen G. White. Não é um exagero dizer que, em um sentido acadêmico, não sabemos quase nada sobre seus livros. Mais de cinquenta anos se passaram desde sua morte. Certamente é o momento de reconhecermos que a autora dos livros que todos nós lemos desde a infância foi uma mulher muito humana e piedosa que viveu em uma época particular e interpretou a história com um conjunto particular de pressupostos. É preciso concluir que ela não escapou das influências e limitações intelectuais experimentadas por todo homem e mulher. Mas isso é parte do que significa ser humano. E podemos suspeitar que a maior parte dos adventistas do sétimo dia poderia respeitar e compreender mais prontamente uma Ellen White falível e imperfeita que a santa super-humana que a igreja lhes ofereceu no passado.

Notas:

1. William S. Peterson, “A Textual and Historical Study of Ellen G. White’s Account of the French Revolution,” Spectrum 2 (no. 4), 57-68.

2. Uma análise extensa da carreira de Ellen G. White está fora do escopo deste artigo. Não há biografia adequada para ela; mas ver Life Sketches of Ellen G. White (Mountain View, Califórnia: Pacific Press Publishing Association, 1915), baseado primariamente em seus escritos autobiográficos.

3. Francis D. Nichol, Ellen G. White and Her Critics (Washington, D.C.: Review and Herald Publishing Association, 1951), pp. 403-428. Seus dois capítulos seguintes também tratam de outros aspectos da questão do “plágio”.

4. Há outras linhas de pesquisa potencialmente úteis que eu não pude seguir: (1) uma comparação dos manuscritos de rascunho e dos textos finais de O Grande Conflito (o Centro White deve estar em posse deles); (2) uma análise dos diários e da correspondência da Sra. White durante os períodos em que ela estava escrevendo e revisando o livro (este material também é propriedade do Centro White); e (3) um estudo exaustivo dos diários, correspondência, memórias, autobiografias, e biografias dos conhecidos da Sra. White.

5. Reimpresso em Primeiros Escritos de Ellen G. White (Washington, D. C.: Review and Herald Publishing Association, 1945), pp. 14-20.

6. A glorificação que a Sra. White faz dos albigenses é intrigante. Eles aboliram o sacramento do matrimônio, rejeitavam a divindade de Cristo, e tiveram pouco em comum com os valdenses (com os quais ela invariavelmente os compara), exceto que ambos os grupos foram minorias religiosas perseguidas. Cf. John McClintock e James Strong, Cyclopaedia of Biblical, Theological, and Ecclesiastical Literature (Nova Iorque: Harper, 1874), vol. 1, p. 133: “A afirmação de que os albigenses eram idênticos aos valdenses tem sido sustentada por duas escolas muito diferentes de teólogos, por razões precisamente opostas: pelos romanistas, que tornam os valdenses responsáveis pelos erros dos albigenses, e por vários escritores protestantes respeitáveis (e.g. Allix), para mostrar que os albigenses eram inteiramente inocentes dos erros imputados a eles por seus perseguidores romanos.” (Eu citei deliberadamente uma enciclopédia religiosa protestante bem conhecida que estava disponível durante a vida da Sra. White.)

7. Citado em Arthur White, “Ellen G. White as an Historian” (manuscrito não publicado), p. 10.

8. Sir Walter Scott, The Life of Napoleon Buonaparte, dois volumes (Philadelphia; J. and J. L. Gihon, 1858). A bibliografia de O Grande Conflito cita uma edição do livro de 1854, que eu não pude encontrar nem no Library of Congress Catalog of Printed Cards, nem no British Museum General Catalogue of Printed Books.

9. George R. Gleig, “The Great Collapse,” Blackwood’s Magazine 108, 641-656 (novembro de 1870). Como a maior parte do jornalismo britânico do século 19, o artigo de Gleig foi publicado anonimamente, mas é atribuído a ele por Walter E. Houghton, editor, The Wellesley Index to Victorian Periodicals (University of Toronto Press, 1966), p. 133.

10. James A. Wylie, The History of Protestantism, três volumes (Londres: Cassell, Petter and Galpin, 1874-1877).

11. L. A. Thiers, History of the French Revolution, dois volumes; G. T. Fisher, tradutor (Londres: C. Daly, 1846). Citado erroneamente em O Grande Conflito como “M. A. Thiers”.

12. Philippe Buchez e Pierre Roux, Collection of Parliamentary History. Uma obra de quarenta volumes publicada em Paris em 1834-1838. Não pude encontrar informações sobre a tradução para o inglês que a Sra. White evidentemente usou.

13. J. H. Merle D’Aubigné, History of the Reformation in Europe in the Time of Calvin, oito volumes (Londres: Longmans 1863-1878).

14. Guillaume de Felice, History of the Protestants of France; P. E. Barnes, tradutor (Londres, 1853).

15. Henry White, The Massacre of St. Bartholomew (Nova Iorque: Harper, 1871).

16. Archibald Alison, History of Europe from the Commencement of the French Revolution in M.DCC.LXXXIX to the Restoration of the Bourbons in M.DCCC.XV; segunda edição, cinco volumes (Edinburgh: Blackwood, 1835-1836).

17. J. G. Lockhart, Memoirs of the Life of Sir Walter Scott (Philadelphia: Carey, Lea, and Blanchard, 1838), vol. 2, pp. 575-574.

18. Para uma lista resumos de resenhas contemporâneas, cf. James C. Corson, A Bibliography of Sir Walter Scott (Edinburgh: Oliver and Boyd, 1943), pp. 282-283.

19. The Dictionary of National Biography, vol. 21, p. 1152.

20. Ibid., vol. 7, pp. 1303-1304.

21. Ibid., vol. 1, pp. 287-290.

22. G. P. Gooch, History and Historians in the Nineteenth Century (Londres: Longmans, Green, 1913), p. 201.

23. D’Aubigné era o historiador favorito da Sra. White, e é citado com frequência nos capítulos de O Grande Conflito que tratam da Reforma.

24. Para uma pesquisa dos estudos do século 19 sobre a Revolução Francesa, cf. Gooch, pp. 226-254; para uma bibliografia, cf. James W. Thompson, A History of Historical Writing (Nova Iorque: Macmillan, 1942), vol. 2, p. 227n.

25. Uma das obras modernas mais importantes sobre o assunto é a de Georges Lefebvre, The Coming of the French Revolution; R. R. Palmer, tradutor (Princeton University Press, 1947).

26. Este erro particular da Sra. White é interessante, pois é possível reconstruir como ela leu Wylie errado. Wylie cita os 400 ou 500 “discípulos do Evangelho auto-expatriados”, e então prossegue afirmando: “Os homens que agora fugiam da França foram os primeiros a percorrer um caminho que seria percorrido de novo e de novo por centenas de milhares de seus compatriotas nos anos seguintes. Durante os próximos dois séculos e meio estas cenas foram renovadas em intervalos curtos.” A Sra. White reduz toda esta informação a uma sentença, e por isso a distorce: “Milhares e milhares encontraram segurança na fuga; e isto continuou por duzentos e cinqüenta anos depois do início da Reforma.” Em outras palavras, a Sra. White remove dos “dois séculos e meio” as “centenas de milhares” de protestantes exilados  de Wylie, e ao invés disso coloca este grupo enorme no século 16.

27. Em uma carta aprovada oficialmente pela Sra. White, seu filho escreveu: “Minha mãe nunca afirmou ser uma autoridade em história. As coisas que ela escreveu são descrições de imagens em clarão e outras representações dadas a ela em relação às ações dos homens, e a influência destas ações sobre a obra de Deus pela salvação dos homens, com perspectivas históricas do passado, presente e futuro em relação a esta obra. Em conexão à escrita destas visões, ela usou afirmações históricas boas e claras para ajudar a deixar claro ao leitor as coisas que ela está se empenhando em apresentar” (Arthur White, “Ellen G. White as an Historian”, apêndice, p. 4).