Em sua leitura do Apocalipse, Karl Marx relaciona o dinheiro à besta apocalíptica, que regula todas as trocas, cuja marca decide sobre todas as relações: ninguém pode comprar nem vender sem ela


Um dos conteúdos menos trabalhados nas obras de Marx são os usos que ele faz dos textos bíblicos, como os maneja, percebe e trabalha criticamente. Já havíamos indicado isso no artigo publicado pela Zelota intitulado “Marx, Paulo, João e os dois senhores”, no qual apresentamos a trajetória de Marx com textos bíblicos e em relação à religião. Caso não tenha visto o artigo, recomendamos ao menos a leitura dos três primeiros parágrafos. Nossa proposta, obviamente, não é apresentar Marx como religioso ou simpatizante de alguma fé. Foi um ateu declarado, mas que não negava ou censurava a religião e, além disso, utilizava dos recursos adquiridos em sua formação religiosa (e teológica) para o desenvolvimento de sua crítica da economia política.

Feitas essas indicações preliminares, dessa vez trabalharemos especificamente o modo como Marx se relaciona com o livro do Apocalipse. É particularmente interessante vermos que o “Livro das Revelações” é citado em sua obra mais importante: O Capital. Entre os primeiros parágrafos do segundo capítulo, depois de haver trabalhado o caráter fetichista da mercadoria (que para ser compreendido e criticado devemos “nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso”1), encontramos, em latim, Apocalipse 13.15 e 17:

Foi-lhe dado poder para dar fôlego à imagem da primeira besta, de modo que ela podia falar e fazer que fossem mortos todos os que se recusassem a adorar a imagem […] para que ninguém pudesse comprar nem vender, a não ser quem tivesse a marca, que é o nome da besta ou o número do seu nome.2

Marx utiliza o famoso texto da marca da besta para apresentar o caráter particular do dinheiro em sua função de “equivalente universal”, como mercadoria particular capaz de ser trocada por todas as demais mercadorias e por meio da qual são expressos os valores de todas as mercadorias. O dinheiro, desse modo, aparece como a besta poderosa que se torna mediadora de todas as relações e pela qual se marca tudo com “o número de seu nome” ou, como mais bem apresentado no versículo seguinte, “número de um homem”, que tradicionalmente é trabalhado como o número do anticristo.3

É curioso o fato de Marx trazer essa referência ao dinheiro em sua obra-prima. Se nos damos conta da temática imbricada por trás do uso dessa metáfora teológica, percebemos um fio que acompanha a evolução de seu pensamento. Já nos anexos à sua tese de doutorado de 1841, Marx intui e trabalha de modo bastante incipiente, mas interessante, a relação religião-dinheiro ao desenvolver a crítica às “provas ontológicas da existência de Deus”, que baseavam suas demonstrações em representações ou na fé subjetiva. Ele afirma:

Se alguém imaginar que possui cem táleres, se essa representação não for para ele uma qualquer, uma representação subjetiva, se ele acreditar nela, os cem táleres imaginários terão para ele o mesmo valor de cem táleres reais. Por exemplo, ele contrairá dívidas com base em sua imaginação […]. Táleres reais possuem a mesma existência que deuses imaginários. Um táler real teria existência em outro lugar senão na representação, ainda que geral ou, muito antes, comunitária, das pessoas? Leva o papel-moeda para um país onde não se conhece esse uso do papel e cada qual se rirá de tua representação subjetiva. Vai com teus deuses para um país em que vigoram outros deuses e terás a prova de que padeces de imaginações e abstrações. Com razão. Quem tivesse levado um deus eslavo para os gregos antigos teria encontrado a prova da não existência desse deus. Porque para os gregos ele não existia.4

O que nos interessa, aqui, é a estrutura da crítica e a aproximação feita entre as representações religiosas e a forma do dinheiro. Essa estrutura aparece de maneira mais consistente e madura n’O Capital (1875), exatamente no capítulo sobre o caráter fetichista da mercadoria, quando Marx indica que: “todo o misticismo do mundo das mercadorias, toda mágica e assombração que anuviam os produtos do trabalho na base da produção de mercadorias” desaparecem imediatamente, tão logo nos refugiamos “em outras formas de produção”.5 Ou seja, do mesmo modo que para criticar as provas ontológicas da existência de Deus baseadas na representação subjetiva bastava deslocar o sujeito de seu território e de seu povo, para a crítica da forma, mercadoria com suas “sutilezas metafísicas e caprichos teológicos”6 devem ser analisados outros modos de produção.

Especificamente com respeito ao dinheiro, Marx ainda apresenta uma analogia religiosa em A questão judaica, em 1844. O uso é bastante problemático e será corrigido na evolução de seu pensamento, mas temos uma crítica ao dinheiro como uma divindade mundana: ele utiliza o tema do judaísmo e sua figuração política para questionar “Qual o seu deus mundano? O dinheiro […], o deus da necessidade prática e do interesse pessoal é o dinheiro”.7 Ainda em 1844, mas em um texto de estudos conhecido como Manuscritos econômico-filosóficos, Marx escreve dois breves comentários isolados sobre o tema e, ao final, uma longa sessão dedicada ao dinheiro, na qual, após citações de Goethe e Shakespeare a respeito, comenta: “A inversão e a confusão de todas as qualidades humanas e naturais, a confraternização das impossibilidades – a força divina – do dinheiro repousa em sua essência enquanto ser genérico – estranhado, exteriorizando-se e se vendendo (sich veräussernden) – do homem. Ele é a capacidade exteriorizada (entäusserte) da humanidade”.8

Contudo, serão nos rascunhos preparatórios para O Capital conhecidos como Grundrisse, em 1857, que o uso da metáfora religiosa para a crítica ao dinheiro encontrará sua forma final: na inversão da fórmula paulina da kenósis presente na carta aos Filipenses, capítulo 4, Marx comenta que o dinheiro, “De sua figura de servo, na qual se manifesta como simples meio de circulação, converte-se repentinamente em senhor e deus no mundo das mercadorias.”9 Nesses materiais preparatórios, Marx cita com frequência Pierre de Boisguillebert, para quem o dinheiro é: 

o carrasco de todas as coisas, o Moloque ao qual tudo tem de ser sacrificado, o déspota das mercadorias. No advento da monarquia absoluta, com a transformação de todos os impostos em impostos em dinheiro, o dinheiro aparece de fato como Moloque ao qual é sacrificada a riqueza real.10

Já em 1859, na Contribuição à crítica da economia política, Marx comenta o seguinte a partir de sua interpretação de Boisguillebert: 

Se as mercadorias representam em seus preços o equivalente geral ou a riqueza abstrata, o ouro, este último, em seu valor de uso representa os valores de uso de todas as mercadorias. O ouro é, pois, o representante corporal da riqueza material. É o ‘resumo de todas as coisas’ (Boisguillebert), o compêndio da riqueza social […]. De servidor, converte-se em amo. De simples peão, passa a ser deus das mercadorias.11

Mais uma vez temos o uso da kenósis invertida: a forma do dinheiro faz com que o ouro se torne “deus das mercadorias”, de um simples servo ou objeto útil ao trabalho humano, passa a dar sentido, valor e determinar a circulação das mercadorias e, por meio dela, a própria produção humana. Além disso, temos nesse excerto a equiparação do ouro como dinheiro à religião, ou melhor, no modo como Marx lida com a religião em sua crítica da religião.

No texto em que Marx cita a famosa expressão “religião é o ópio do povo” (que não é dele, mas uma expressão comum e compartilhada por uma série de autores alemães dos séculos 18 e 1912), ele afirma que o fundamento da crítica da religião é que:

o homem faz a religião, a religião não faz o homem […]. Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio enciclopédico.13

A estrutura da crítica, portanto, é a mesma: uma produção humana que se inverte, que ao invés de responder à vida das pessoas, passa a determinar a vida, se fetichiza. Assim como o dinheiro, de servo, se torna deus das mercadorias, o mesmo ocorre com a religião, que de produto de uma determinada sociedade com seu Estado e da ação da vida humana, se inverte e se volta contra seu fundamento. É efeito, inclusive, das próprias instituições invertidas (Estado e sociedade, no caso), que deixam de atender à vida humana que as cria para decidir sobre ela. Desse modo, temos a repetição da fórmula do compêndio: a religião aparece como o compêndio enciclopédico desse mundo invertido no qual humanos vivem, produzem e se reproduzem, e o dinheiro é o resumo de todas as coisas, o compêndio da riqueza social – o conteúdo que é referência e explicaria todo o funcionamento da própria produção de riqueza.

Por fim, em sua versão definitiva, temos n’O Capital essa evolução da crítica da religião apresentada logo no início do livro para a crítica da forma mercadoria e, em seguida, do dinheiro. O dinheiro agora já pode ser diretamente referenciado à besta apocalíptica que regula todas as trocas, cuja marca decide sobre todas as relações: ninguém pode comprar nem vender sem ela. Efetivamente: ninguém pode viver sem dinheiro. Ou seja: a vida humana é decidida pelo dinheiro no âmbito do Mercado.

Esse tema é trabalhado de modo crítico e aprofundado na perspectiva da crítica da economia política por Franz Hinkelammert no artigo El fetichismo de la mercancía, del dinero y del capital: la crítica marxista de la religión, escrito em 1970 e republicado recentemente pela CLACSO (2021). A tradução inédita para o português compõe o livro Antologia anti-idolátrica, que será publicado pela Editora Pajeú. Para adquirir a obra, participe da campanha de lançamento clicando aqui. O livro conta ainda com textos de Michael Löwy, Hugo Assmann e Enrique Dussel.

Notas:

1. Karl Marx (2017), O capital: Livro I. O processo de produção do capital. Boitempo: São Paulo, p. 148.

2. Em nosso texto, utilizamos a tradução NVI. No original, Marx mantém a versão latina conhecida como Vulgata, tradicionalmente tratada como fruto do trabalho de São Jerônimo no século V, desenvolvida no intuito de criar uma versão popular para os territórios romanos. No calendário católico ocidental, setembro é celebrado como o “mês da Bíblia”, que culmina com a liturgia no “dia de São Jerônimo” (30 de setembro). No calendário oriental, a festa é celebrada em junho.

3. No artigo “Marx, Paulo, João e os dois senhores”, publicado pela Revista Zelota, trabalhamos como Marx se vale da imagem do anticristo para criticar o dinheiro. Leia aqui.

4. Karl Marx (2018), Diferença da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro. Boitempo: São Paulo, pp. 133-134.

5. Karl Marx (2017), O capital: Livro I. O processo de produção do capital. Boitempo: São Paulo, p. 151.

6. Karl Marx (2017), O capital: Livro I. O processo de produção do capital. Boitempo: São Paulo, p. 146.

7. Karl Marx (1989), A questão judaica. Lososofia: Lisboa, 1989.

8. Karl Marx (2010), Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 – esboços da crítica da economia política. Boitempo: São Paulo, p. 165.

9. Karl Marx (2010), Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 – esboços da crítica da economia política. Boitempo: São Paulo, p. 165.

10. Karl Marx (2010), Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 – esboços da crítica da economia política. Boitempo: São Paulo, p. 145

11. Karl Marx (2008), Contribuição à crítica da economia política. Expressão Popular: São Paulo, p. 161.

12. A esse respeito, ver de Michael Löwy (2007), “Marxismo e religião: ópio do povo?”, em Teoria Marxista hoje. CLACSO: Buenos Aires, pp. 298-315, assim como de Andrew McKinnon (2006), “Opium as Dialectics of Religion: Metaphor, Expression and Protest”, em Marx, Critical Theory, and Religion, BRILL: Londres, pp. 11-30.

13. Karl Marx (2010), Crítica à filosofia do direito de Hegel, Boitempo: São Paulo, p. 145.