Ainda que a “Teologia da libertação tenha escolhido os pobres, e os pobres escolheram os pentecostais”, o caráter libertador de algumas músicas clássicas do pentecostalismo resulta do espaço social de seu surgimento e é uma condição para a revolução brasileira


A segunda metade do século 20 viu a possibilidade real de transformação do mundo. Em especial na América Latina, vimos o nascimento de uma nova corrente criativa e popular, a Teologia da Libertação (TdL), que trazia ânimos para os que queriam um mundo para todos e todas. Mas nos anos 90, por uma série de fatores que não cabem neste breve texto, este movimento pujante e popular perdeu força e espaço nas parcelas menos abastadas da população. Alguns reacionários, em tom de ironia, comentam: “A Teologia da Libertação escolheu os pobres, mas os pobres escolheram os pentecostais.”

Trinta anos depois dessa “virada” ao pentecostalismo, nas experiências de fé periféricas, podemos entender com mais precisão os avanços e os retrocessos que essa experiência de fé trouxe. Diversos nomes importantes da TdL julgavam a fé pentecostal simplesmente como uma individualização da vivência comunitária, como uma experiência reacionária, simplesmente resultado do avanço imperialista sobre a América Latina. De fato, não podemos negar; fazendo uma leitura fria1 da conjuntura, fica claro que o evangelicalismo desempenha um papel de reafirmação da ideologia estadunidense, e inclusive é propagado com o apoio de seu governo.

Os teólogos da TdL, até mesmo pela consciência possível para a época nos espaços que ocupavam, leram o pentecostalismo com essa chave, vendo apenas a face negativa dessa novidade. Hoje podemos dizer que essa parte do pentecostalismo realmente existiu e existe, e tem seu ponto mais alto no atual governo de Jair Bolsonaro, aliado aos maiores líderes do neopentecostalismo brasileiro e outras tradições cristãs conservadores. As lideranças midiáticas realmente representam o que há de mais reacionário e retrógrado. Não temos o que comentar sobre o lado frio do movimento; queremos, porém, fazer uma leitura quente2 do pentecostalismo. 

Uma das características do movimento pentecostal popular é seu pouco envolvimento com a produção teórica e sistematizada de conhecimento, mas esse enfoque não acadêmico e por vezes anticademicista não livrou a tradição pentecotal de desenvolver uma teologia. Hoje já existem nomes dentro da teologia que estudam academicamente a teologia pentecostal.3 E com isso não estamos fazendo um julgamento academicista, pois o movimento não necessitou de produção teórica para ser efetivo na realidade, e isso devemos aprender com eles, não para deixarmos a teoria, mas para não ficarmos só nela. Mas o enfoque deste texto não é pensar as contribuições feitas no rigor teórico, mas nas produções que têm mais ligação com o chão das igrejas, no caso, nada mais próximo da vivência comunitária pentecostal do que as músicas que são basilares nessa experiência. Vamos então pensar com algumas músicas famosas do pentecostalismo.

Por uma questão de espaço, já que existem muitas, muitas músicas pentecostais que podemos e devemos analisar com a corrente quente do marxismo em conjunto com a mais seleta produção da TdL, vamos focar especificamente na figura de Cassiane, que é uma cantora pentecostal que conquistou recorde de audiência ainda na juventude, compôs uma série de músicas que se tornaram “hinos” pentecostais no país inteiro. No “Hino da Vitória”, ela diz:

Quando estiver frente ao mar 
E não puder atravessar 
Chame este Homem com fé 
Só Ele abre o mar 
Não tenha medo, irmão 
Se atrás vem faraó 
Deus vai te atravessar 
E você vai entoar o hino da vitória

Não podemos negar que a vitória aqui é lida por muitos como uma vitória individual, como a ascensão social, mas isso está longe de ser a parte desta tradição. O pentecostalismo resgata uma característica central para nossa atualidade: a ação de Deus no mundo, hoje. O protestantismo histórico tem a revelação fechada — ela está nas palavras do texto bíblico, e somente aí. Não existe lugar para a ação de Deus que livra seu povo, Deus é um ser distante que deu sua palavra e agora espera que todos a sigam de forma exata. Para os pentecostais o cenário é outro. Deus de fato se revelou nos textos bíblicos, mas sua revelação não se encerra aí, a história não acabou. Deus atua na sua igreja, nos momentos de êxtase, nas revelações e bênçãos. Deus é visto como o libertador do Egito, que abre o mar e livra o povo do jugo opressor do faraó, e inclusive haverá gozo, cantaremos o hino da vitória, o hino que celebra a nossa vitória sobre nossos algozes.

O protestantismo histórico é uma fé burguesa; não tem revelação, e por isso não tem mais história. O pentecostalismo é uma fé popular, e mesmo que em certo sentido individualista, fala da experiência de um povo de luta, um povo que sofre com a sociedade capitalista, que quer superar o vale de lágrimas que vivemos; existe revelação, existe espaço para a revolução.

Em outra música, intitulada “Com muito Louvor”,  Cassiane nos ensina:

Deus vai na frente abrindo caminho 
Quebrando as correntes, tirando os espinhos 
Ordena aos anjos pra contigo lutar 
Ele abre as portas pra ninguém mais fechar

Deus não está no seu trono, julgando nossos atos morais, de forma passiva ao mundo. Ele está ativo, vivo em nossas lutas pela vitória. Ele é quem quebra as correntes, desprende os grilhões, tira o que causa dor e manda anjos para que tenhamos a vitória, para vencermos a morte.

Em um primeiro momento, julgamos que o pentecostalismo foi um retrocesso, uma fuga do projeto libertador. Ele foi um instrumento da ação imperialista, um representante religioso dos interesses da maior máquina de morte da história do mundo. Mas é exatamente no núcleo deste aparato ideológico do estado que, nas experiências populares, nasce a chama que pode transformar a realidade. 

O pentecostalismo é a superação de parâmetros modernos para lidar com a fé, e se soubermos lidar com o sopro do Espírito que corre sobre estas igrejas periféricas, ele será a superação desta sociedade doente e diabólica. É no filho ideológico da besta apocalíptica que surge o Messias, o vencedor do Anticristo. O pentecostalismo tem em si a potência emancipatória necessária para a transformação da realidade, existe ação de Deus, e existe vitória sobre os inimigos. Para vencermos os inimigos históricos do nosso povo, para podermos cantar o hino da vitória, temos que prestar atenção nesta revolucionária tradição do cristianismo. Ou a revolução brasileira será pentecostal, periférica, preta e em busca da vitória da classe trabalhadora, ou não será. 

Notas:

1. Ernst Bloch delimita duas correntes internas ao marxismo: uma fria e outra quente. A fria faz a análise simplesmente material da realidade, a partir do aparato da ideologia burguesa. Para aprofundamento nas propostas de análise de Bloch, conferir: BOLDYREV, Ivan. Ernst Bloch and His Contemporaries, Locating Utopian Messianism. Great Britain: Bloomsbury Academic, 2014. p. 29.

2. Em contraposição à corrente fria, a quente busca apreender quais são as possibilidades utópicas de mobilização contidas nas linguagens.

3. Gedeon Alencar e Kenner Terra são dois nomes que tem despontado dentro desta tradição.