Atiradores em massa e terroristas suicidas podem ser equiparados como sujeitos da crise capitalista, vítimas de uma cultura competitiva que banaliza o eu e outro


Por Robert Kurz | Traduzido e adaptado por Felipe Adão do original1 em alemão para a revista Zelota.

Nota aos leitores: o texto, cujo título original é “A pulsão de morte da competição: Atiradores em massa2 e terroristas suicidas como sujeitos da crise”, de Robert Kurz, apresenta reflexões pertinentes sobre o fenômeno mundial dos massacres escolares e sua relação com a atual fase do capitalismo global. Contudo, o texto traduzido foi acompanhado de alguns comentários e adaptações que apontam o caráter problemático de expressões e ideias preconceituosas, capacitistas e datadas utilizadas pelo autor. Nesse sentido, por mais pertinentes que sejam os pontos trazidos pela análise de Kurz, é importante que o leitor tenha em mente que o texto infelizmente reflete as ideias e preconceitos correntes no mundo intelectual europeu do início do século 21.

(Montagem: Jayder Roger c/ midjourney)

Nos últimos anos, o termo “massacre escolar” tornou-se proverbial no mundo ocidental. As escolas, que outrora eram espaços de educação mais ou menos autoritária, erotismo adolescente e brincadeiras juvenis inofensivas, têm se tornado cada vez mais palco de tragédias sangrentas aos olhos do público. Sem dúvida, os relatos do passado sobre atiradores em massa individuais também são conhecidos. Mas os excessos sangrentos de hoje possuem uma qualidade própria e inédita. Eles não podem ser obscurecidos por uma névoa cinzenta de generalidades antropológicas. Na verdade, trata-se claramente de um produto específico de nossa sociedade contemporânea.

<i>Atiradores em massa e terroristas suicidas podem ser equiparados como sujeitos da crise capitalista, vítimas de uma cultura competitiva que banaliza o eu e outro</i>

A nova qualidade desses massacres pode ser observada de diversas formas. Não se trata aqui de eventos distantes no tempo, como em épocas passadas, mas os massacres ocorrem em sucessão cada vez mais próxima desde os anos 1990. Outros dois aspectos também são novos. Um percentual desproporcional dos autores dos crimes [“Täter”]3 são jovens, às vezes até crianças. E muito poucos desses atiradores são considerados clinicamente insanos [“im klinischen Sinne geistesgestört”]4; de fato, a maioria deles era considerada “normal” e bem adaptada antes de cometer os crimes. Quando as mídias parecem sempre se mostrar surpresas ao descobrir este fato, elas admitem de forma indireta e involuntária que a atual “normalidade” social traz em si o potencial para a ocorrência de massacres.

O caráter global e universal do aparecimento desses massacres também é evidente. Tudo começou nos EUA. Em 1997, um jovem de 14 anos em West Paducah (Kentucky) matou a tiros três colegas de turma após a oração matinal, deixando outros cinco feridos. Em 1998, um jovem de 11 e outro de 13 anos em Jonesboro (Arkansas) abriram fogo contra sua escola e mataram quatro garotas e uma professora. No mesmo ano, um jovem de 17 anos matou a tiros dois colegas de turma e feriu outros vinte em uma escola de Springfield (Oregon). No ano seguinte, dois jovens de 17 e 18 anos cometeram o famoso massacre de Littleton (Colorado); com armas de fogo e explosivos, eles mataram doze colegas de turma e um professor em sua escola, e depois se suicidaram.

Na Europa, esses massacres escolares foram inicialmente interpretados, no contexto do antiamericanismo tradicional, como consequência cultural específica do culto às armas, darwinismo social e falta de educação social nos EUA. Mas os EUA são, em todos os sentidos, o modelo para todo o mundo capitalista da globalização, como logo se mostraria. Apenas uma semana após o atentado em Littleton, um jovem canadense de 14 anos da pequena cidade de Taber abriu fogo e matou um colega de turma. Outros massacres escolares foram reportados nos anos 1990 na Escócia, Japão e diversos países africanos. Em novembro de 1999, na Alemanha, um jovem de 15 anos esfaqueou sua professora com duas facas; em março de 2000, um jovem de 16 anos matou a tiros seu diretor escolar e se suicidou logo em seguida; em fevereiro de 2001, um jovem de 22 anos matou o chefe de sua empresa com um revólver e depois o diretor de sua antiga escola, explodindo-se por último com uma bomba caseira. O atentado mais recente é o de um jovem de 19 anos de Erfurt, que, no final de abril de 2002, matou 16 pessoas durante o exame do Abitur5 (entre elas, quase todo o corpo docente de sua escola) e atirou na própria cabeça em seguida, um caso que foi até o momento apenas o ponto mais crítico de toda uma série de massacres.

É claro que o fenômeno dos massacres escolares não pode ser visto de forma isolada. A cruel “cultura dos massacres” há muito tempo se tornou um evento midiático periódico em diversos países; os jovens atiradores nas escolas compõem apenas um segmento dessa microexplosão social. As notícias de agências sobre ataques a tiros ocorrendo em todos os continentes são tão numerosas que mal se pode contá-las; devido à sua relativa frequência, elas são relatadas pela mídia apenas quando são particularmente espetaculares. Assim como o pacato suíço que, no final de 2001, crivou de balas metade da Assembleia Cantonal com armas automáticas e depois se suicidou, o jovem francês desempregado que tinha acabado de terminar a faculdade e alguns meses depois abriu fogo contra a Câmara Municipal do subúrbio parisiense de Nanterre, matando oito políticos locais, também alcançou triste fama mundial.

Se a violência armada é mais geral que os massacres escolares específicos, ambos os fenômenos estão, por sua vez, inseridos no contexto mais amplo de uma cultura de violência interna que inunda o mundo inteiro no decorrer da globalização. Isso inclui as numerosas guerras civis virtuais e manifestas, a economia de pilhagem em todos os continentes, a criminalidade armada em massa das facções nos morros, guetos e favelas; e principalmente a “continuidade da competição com outros meios”. De um lado, trata-se de uma cultura do roubo e do assassinato cuja violência se dirige aos outros; no entanto, os criminosos assumem conscientemente o “risco” de serem mortos. Ao mesmo tempo, porém, a autoagressão imediata aumenta, como evidenciado pelo aumento das taxas de suicídio entre jovens em muitos países. Pelo menos para a história moderna, é uma novidade que o suicídio seja cometido não apenas por conta do desespero individual [“aus individueller Verzweiflung”], mas também de forma organizada e em larga escala. Em países e culturas tão distantes uns dos outros, como EUA, Suíça, Alemanha e Uganda, as chamadas “seitas suicidas” chamaram atenção de forma macabra várias vezes nos anos 1990, por meio de atos coletivos e ritualísticos de suicídio.

Parece que, na recente cultura de violência global, o tiroteio em massa se forma a partir da conexão lógica entre agressão contra os outros e autoagressão, uma forma de síntese entre assassinato encenado e suicídio encenado. A maioria dos atiradores não somente mata de forma indiscriminada, mas também se mata ao final. E as diferentes formas de violência pós-moderna começam a se fundir. O potencial latrocida também é um potencial suicida; e o potencial suicida também é um potencial atirador em massa. Diferentemente dos massacres [“Amokläufen”] em sociedades pré-modernas (a palavra “Amok” vem da língua malaia6), não se tratam de acessos espontâneos de ira ensandecida, mas sempre de ações longa e cuidadosamente planejadas. O sujeito burguês ainda é determinado pelo “autocontrole” estratégico e pela disciplina funcional mesmo quando cai na loucura assassina. Os atiradores são os robôs descontrolados da competição capitalista: sujeitos da crise que desvelam o conceito do sujeito moderno e esclarecido até a sua identidade.

Mesmo uma pessoa cega do ponto de vista sócio-teórico consegue enxergar os paralelos com os terroristas do 11 de setembro de 2001 e com os homens-bomba [“Selbstmordattentätern”]7 da Intifada palestina. Muitos ideólogos ocidentais queriam, com apologética transparente, associar estes atos ao “meio cultural estrangeiro” do Islã. A mídia gostava de dizer que os assassinos de Nova York, treinados durante anos na Alemanha e nos Estados Unidos, “não haviam chegado ao Ocidente” psicológica e espiritualmente, apesar da integração externa. O fenômeno do terrorismo islâmico, com seus atentados suicidas, se daria por conta do problema histórico segundo o qual o Islã não teria passado por uma época de esclarecimento [“Aufklärung”]8. A óbvia relação íntima entre jovens atiradores ocidentais e jovens terroristas islâmicos prova exatamente o contrário.

<i>Atiradores em massa e terroristas suicidas podem ser equiparados como sujeitos da crise capitalista, vítimas de uma cultura competitiva que banaliza o eu e outro</i>

Ambos os fenômenos pertencem ao contexto da globalização capitalista; elas são o último resultado “pós-moderno” do próprio esclarecimento burguês. Especialmente porque “chegaram” ao Ocidente em todos os sentidos, os jovens estudantes árabes se transformaram em terroristas. Em verdade, no início do século 21, o “Ocidente” (quer dizer: a imediatez do mercado mundial e de sua subjetividade totalitária da competição) está presente em todos os lugares, mesmo que em condições diferentes. A diferença nas condições tem mais a ver com diferentes níveis do poder do capital do que com a variedade das culturas. A sociabilidade capitalista é hoje em todos os continentes um elemento primário e não secundário; e o que foi hipostasiado pelos ideólogos pós-modernos como “diferença cultural” ocupa, na verdade, uma superfície tênue.

Não é sem motivo que o diário de um dos atiradores de Littleton se mantém guardado a sete chaves pelas autoridades americanas. Tornou-se conhecido através da indiscrição de um funcionário que o jovem assassino havia anotado o seguinte, entre outras fantasias violentas: “Por que não roubar um avião algum dia e derrubá-lo na cidade de Nova York?” Que vergonhoso: o que foi representado como delito particularmente pérfido praticado por pessoas culturalmente estrangeiras já havia tomado forma na mente de um produto nativo da “liberdade e democracia”. A opinião pública também esqueceu há tempos que, semanas após o 11 de setembro nos EUA, um jovem criminoso imitador de 15 anos colidiu um pequeno avião em um arranha-céus. Com toda seriedade foi dito na mídia estadunidense que o jovem teria tido uma overdose de medicamentos contra acne e, por isso, estaria desequilibrado mentalmente de forma temporária. Esta “explicação” é um valioso produto da filosofia do esclarecimento em seu estágio positivista final.

Na realidade, a “sede de morte” representa um fenômeno mundial social pós-moderno que não está ligado a nenhum lugar social ou cultural específico. Este impulso também não pode ser minimizado como a soma de fenômenos individuais meramente aleatórios. Porque, para uma pessoa que realmente faz isso, há milhões que seguem os mesmos padrões de pensamento e sentimento sem esperança e alimentam os mesmos pensamentos mórbidos. Os terroristas islâmicos, em contraste com os atiradores ocidentais individuais, apenas parecem reivindicar motivações religiosas e políticas organizadas. Ambos estão equidistantes de um “idealismo” clássico que poderia justificar o sacrifício de si mesmo com objetivos sociais reais.

Sobre as numerosas novas guerras civis e o vandalismo nos centros ocidentais, o escritor alemão Hans Magnus Enzensberger observou que “não há nada mais em jogo”. Para compreender a questão, é preciso inverter a frase: o que é este nada que está em jogo? É o vazio completo do dinheiro criado como um fim em si mesmo, que agora finalmente domina a existência [“Dasein”] como o deus secularizado da modernidade. Esse deus reificado não tem conteúdo sensorial ou social per se. Todas as coisas e necessidades deixam de ser reconhecidas em sua própria qualidade, pois isso é tirado delas para “economicizá-las”, ou seja, para transformá-las em meras “gelatinas”9 (Marx) de exploração e, portanto, em material irrelevante. O executor dessa “indiferença” ao mundo é a competição total.

É uma ilusão acreditar que o cerne dessa competição universal seja a autoafirmação dos indivíduos. Pelo contrário, é a pulsão de morte da subjetividade capitalista que surge como consequência última. Quanto mais a competição entrega os indivíduos ao vácuo real-metafísico do capital, mais facilmente a consciência desliza para um estado que aponta para além do conceito de mero “risco” ou “interesse”: a indiferença em relação a todos os outros se transforma em indiferença em relação a si mesmo. Os primeiros sinais dessa nova qualidade de frieza social como “frieza contra si mesmo” já eram evidentes nas grandes crises da primeira metade do século 20. Nesse sentido, a filósofa Hannah Arendt falou de uma cultura da “perda de si mesmo”, de uma “perda de si mesmo” dos indivíduos desarraigados e de um “enfraquecimento do instinto de autopreservação” devido ao “sentimento de que a própria pessoa não importava, que o ‘eu’ a qualquer momento e em qualquer lugar pode ser substituído por outro”.

Aquela cultura da perda de si e esquecimento de si, que Hannah Arendt relacionava exclusivamente com os regimes políticos totalitários daquela época, hoje se encontra de forma muito mais pura no totalitarismo econômico do capital globalizado. O que no passado era um estado de emergência está se tornando o estado normal e permanente: a própria vida cotidiana “civil” está se transformando em uma perda total de si mesmo. Esta condição afeta não apenas os pobres e marginalizados, mas a todos, porque se tornou a condição dominante da sociedade mundial. Isso vale especialmente para os adolescentes, que não têm mais um padrão de comparação ou um critério para possíveis críticas. É um processo idêntico de perda de si e da capacidade de julgamento diante do imperativo econômico avassalador que caracteriza tanto as gangues violentas, os saqueadores e os estupradores quanto os autoexploradores da nova economia ou aqueles que trabalham em frente a um computador no setor bancário de investimentos.

O que Hannah Arendt disse sobre as condições do totalitarismo político se tornou hoje a principal tarefa oficial da escola, ou seja, retirar das mãos das crianças “o interesse por si mesmas” para transformá-las em máquinas abstratas de desempenho; e isso como “empreendedoras de si mesmas”, ou seja, sem nenhuma garantia. Essas crianças aprendem que devem se sacrificar no altar da exploração e se “divertir” com isso ao mesmo tempo. Mesmo os alunos do ensino fundamental são empanturrados de psicofármacos para que possam acompanhar o ritmo da escola a todo custo. O resultado é uma psique perturbada de pura associalidade em que a autoafirmação e autodestruição se tornaram idênticas. É o atirador em massa que necessariamente surge por trás do alegre “gestor de si” [“Selbstmanager”] da pós-modernidade. E a democracia de livre mercado está chorando lágrimas de crocodilo por seus filhos perdidos, que ela está sistematicamente criando para se tornarem monstros autistas.10

<i>Atiradores em massa e terroristas suicidas podem ser equiparados como sujeitos da crise capitalista, vítimas de uma cultura competitiva que banaliza o eu e outro</i>
Notas:

1. Nota do Tradutor: Título original: “DER TODESTRIEB DER KONKURRENZ – Amokläufer und Selbstmordattentäter als Subjekte der Krise“, publicado originalmente na revista alemã EXIT! Krise und Kritik der Warengesellschaft. Disponível em: https://www.exit-online.org/link.php?tabelle=autoren&posnr=136.

2. Nota do Tradutor: O termo Amokläufer foi traduzido ora como “atirador em massa”, ora como “atirador” simplesmente. A palavra Amokläufer, derivada de Amoklaufen, não possui uma tradução exata no português, mas comunica o sentido de um indivíduo que corre de forma alucinada/desesperada em direção a uma multidão para matar as pessoas a tiros ou com esfaqueamento.

3. Nota do Tradutor: O termo original Täter foi traduzido como autores dos crimes, criminosos ou assassinos ao longo do texto. Como a palavra no alemão pode ser traduzida de formas diversas, optei por adaptá-las para melhor refletir o contexto das frases.

4. Ou mentalmente instáveis de acordo com um diagnóstico clínico.

5. Nota do Tradutor: Exame de conclusão do ensino médio alemão que confere aos alunos um certificado que os permite ingressar em qualquer universidade alemã. Possui semelhanças com o vestibular, mas não são exames equivalentes.

6. Nota do Tradutor: Aqui há um ponto problemático, pois o autor parece conectar a língua malaia ao momento histórico da “pré-modernidade”, além de dar a entender que o massacre é um fenômeno de origem pré-moderna que teria sofrido mutações na modernidade. O autor parece trabalhar com uma ideia que liga o pré-moderno ao irracional ou ensandecido e o moderno ao racional e calculista, visão atualmente combatida por diversas linhas de pensamento. Sobre o problema da divisão entre modernos e pré-modernos, ver CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe: Postcolonial Thought and Historical Difference, 2000.

7. Nota do Tradutor: As definições encontradas no dicionário variam de “homens-bomba” a “terroristas suicidas”. A escolha pelo termo homens-bomba se deu a fim de se aproximar do sentido literal dos atos em torno da Intifada dos palestinos. Contudo, o trecho é problemático, pois sugere que ambos os eventos descritos teriam natureza terrorista e obscurece o caráter político e multifacetado das Intifadas no Oriente Médio e ao redor do mundo.

8. Nota do Tradutor: A opção pelo termo esclarecimento em vez de iluminismo segue a opção de tradução de textos conhecidos, como “Resposta à pergunta: o que é o Esclarecimento?” (“Was ist Aufklärung?”), de Immanuel Kant, e a “Dialética do Esclarecimento” (“Dialektik der Aufklärung”), de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno.

9. Nota do Tradutor: Gelatinas ou geleias, fazendo alusão à ideia do valor da mercadoria como sendo uma geleia/gelatina de trabalho humano indiferenciado, segundo ensina Marx no vol. 1 do Capital.

10. Nota do Tradutor: O trecho original diz: “Und die marktwirtschaftliche Demokratie weint Krokodilstränen über ihre verlorenen Kinder, die sie selber systematisch zu autistischen Monstern erzieht”. Nos dicionários alemães, o termo é exclusivamente atrelado a indivíduos dentro do espectro do autismo e não tem um sentido metafórico. No contexto do texto de Robert Kurz, o termo assume clara conotação capacitista, pois o autor sugere que os “monstros autistas” seriam as crianças associais mencionadas no mesmo parágrafo, ideia que reforça um estereótipo negativo e preconceituoso que concebe as pessoas dentro do espectro autista como “isoladas socialmente”, “agressivas”, etc.