Como na ditadura civil-militar, a igreja adventista fortaleceu o ato golpista de 8 de janeiro por conceder palanque a ideólogos de extrema direita entre funcionários e pastores da instituição
27 jan. 2023 | Redação Zelota
(Manifestantes invadem Congresso, STF e Palácio do Planalto – Marcelo Camargo/Agência Brasil
Em nome de Deus, da família e da pátria, um grupo fascista atacou o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF) em um ato golpista histórico, no dia 8 de janeiro deste ano. O grupo depredou patrimônio público, quebrou vidraças e aniquilou documentos a pau e pedra – sem levar em consideração os que defecaram em protesto. Enquanto o Brasil encarava aterrorizado a ação que reclamava por intervenção militar já há alguns meses, grupos bolsonaristas comemoravam (e ainda comemoram) o ato antidemocrático; entre eles, muitos denominados cristãos.
O ataque muito se assemelha ao que ocorreu nos EUA, a invasão do Capitólio, em Washington, no dia 6 de janeiro de 2021. No contexto estadunidense, os responsáveis pelo ato eram grupos aliados do ex-presidente Donald Trump. Embora seja presumível e atestada a presença de cristãos em ambos os ataques, há evidências de que, nos EUA, adventistas não apenas participaram do evento, mas distribuíram cópias de O grande conflito em iniciativa evangelística, muitas das quais foram posteriormente encontradas no chão após o ataque, juntas de outros objetos descartados pela multidão.
Ainda não é possível comprovar a participação de adventistas no ataque aos três poderes, embora o crime cometido tenha sido também indiretamente motivado pela Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) em diversas instâncias. Assim como ocorreu na ditadura civil-militar brasileira, a instituição oferece palco e oportunidade para propaganda golpista; e legitima de forma não oficial o fascismo bolsonarista por trás dos acontecimentos na Esplanada. Esse fato pode ser facilmente evidenciado no salvo-conduto concedido ao ativismo reacionário na atuação de influenciadores, funcionários da igreja, pastores e instâncias institucionais. Trata-se uma ação que desobedece aos documentos oficiais da denominação e age de forma parcial e ideológica. Tais evidências (ao menos as mais recentes) foram coletadas e serão apresentadas neste artigo.
A IASD, em seus documentos oficiais, não autoriza que seus pastores e funcionários expressem opiniões políticas em público em nome dos adventistas. Ela também pede cautela para que seus representantes não transpareçam preferências por ideologias, candidatos ou partidos. No entanto, Infelizmente, o posicionamento da IASD é ambíguo e superficial, a ponto de oferecer brechas a ativistas de plantão; também deprimente é o fato do não cumprimento das diretrizes da IASD no âmbito oficial formal às manifestações políticas de extrema direita, por clara preferência ideológica. Quando tais ações são punidas, a igreja dá preferência apenas a polêmicas que maculam o nome da instituição ao público das grandes mídias.
Seguindo o exemplo e o embalo de outras instituições religiosas, a IASD publicou uma nota em repúdio aos atos de violência cometidos contra os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A nota, no entanto, como todo documento sobre política da denominação, é frouxa e ambígua. E embora condene atos de violência, defende o direito de liberdade de expressão, que no caso da Esplanada tratou-se do pedido por uma intervenção militar. Com ou sem golpe, a IASD sente-se confortável na posição oficial de neutralidade enquanto, por outro lado, confere espaço para o cumprimento de agendas ideológicas golpistas de extrema direita.
Funcionários e influenciadores
No contexto das eleições brasileiras de 2022, Rodrigo Silva apareceu com atuação política e ideológica mais evidente do que havíamos antes documentado. Sua opção pela agenda bolsonarista, alinhada à extrema direita, não se expressou apenas por meio das palavras, mas por vista de alianças político-partidárias afirmadas e repercutidas materialmente em fotografias postadas e compartilhadas por ele. Rodrigo, mesmo afirmando lealdade às letras oficiais da IASD, e, assim, a isenção de posicionamentos políticos em público, explora a ambiguidade e usa sua influência para afirmar um patriotismo cristão bolsonarista.
Tudo isso está muito bem exposto em uma declaração recente, publicada uma semana antes do primeiro turno das eleições. O vídeo intitulado “Em quem devo votar?”, por si só, já expressa o desejo de oferecer um conjunto de normas como critério para a escolha de um “candidato cristão”. No vídeo, Rodrigo alega estar representando apenas sua opinião pessoal; porque ela, em sua defesa, poderia ser útil aos seus seguidores. Uma realidade inegável, pois o vídeo já alcança 740 mil visualizações; já foi sistematizado pela Pleno News; e, certamente, agregará alguns trocados extras ao bolso do arqueólogo – lucro este indevido a um pastor adventista, e plenamente injustificado até o presente momento.
No vídeo, os critérios expostos para a escolha de um candidato, segundo Rodrigo, têm como base as Escrituras. Nessa ocasião, ele decidiu, em suas palavras, “quebrar os protocolos”, para deixar de lado assuntos bíblico-teológicos e fazer emergir um tema essencial: política. Para tanto, o arqueólogo afirmou ter sido “impressionado por Deus” para compartilhar suas perspectivas, embora isso não seja permitido pela IASD. Escorregando em terminologias, ele explica ser a favor da separação entre Igreja e Estado, mas ser contra a “alienação” destes. Com isso ele quer dizer que existe uma inevitável relação entre religião e política que não pode ser negada; e que neste ambiente de relações está nossa responsabilidade civil, o direito de manifestar nossa religião através do voto.
Mas é a partir dessas ambiguidades introdutórias que Rodrigo passa a apregoar uma agenda bolsonarista mais evidente, revestida especialmente de nacionalismo cristão. Esse sentimento já havia sido elaborado e publicamente apresentado a seus seguidores em postagem sobre o 7 de setembro. No post, Rodrigo entende a possibilidade de viver num ‘paraíso cristão’, antes da chegada das mansões celestiais. Ele tenta aplicar à vida terrena os princípios futuramente exigidos no céu, para defender a necessidade de um país que privilegie as crenças e os princípios morais defendidos por uma maioria cristã.
A necessidade de se aplicar uma moralidade cristã ao Brasil é legítima, para o arqueólogo, porque efetiva a liberdade de expressão em uma democracia que valida a atuação política dos cristãos. Em suas palavras, um cristão deve lutar por condições políticas que favoreçam a sua religião, isto é, a da maioria, e não de outras menos expressivas; afinal, para Rodrigo, “seria insensato colocar no poder (já que tenho o privilégio de votar) em alguém que pode tornar difícil exercer meus valores cristãos no país em que vivo” – conforme lemos em postagem realizada na ocasião do primeiro turno das eleições. Ele também questiona, retoricamente, em post no primeiro turno: “se meu lar deve ser um pedacinho do céu na Terra, minha pátria também não deveria?”
Em resumo, Rodrigo defende – usando, inclusive, o exemplo de pioneiros adventistas – ser essencial o ativismo para influenciar a legislação de um país para o benefício dos cristãos e para o azar dos não cristãos. Ele insiste que não pretende abranger as religiões minoritárias, mas instaurar um Estado ultracristão. Em suas palavras, no vídeo, “se os cristãos são maioria aqui, é a maioria que prevalece. Ou então mude para um país de ateus. Esse é um dos preços da democracia: a maioria decide.” E acrescenta: “se você é minoria, você tem que ter os seus direitos de minoria enquanto minoria. […] as minorias precisam ter direitos de minoria e não imposições de minoria.”
Além dessa ênfase na marginalização dos direitos das minorias religiosas, ele se esforçou para criar uma lista de princípios úteis ao voto cristão, dos quais citamos alguns dos que se alinham à agenda bolsonarista, a nível de exemplo. Rodrigo afirma que (1) um bom governo precisa ser apoiado por “pessoas de bem”. Ele explica: se um governo é apoiado popularmente por bandidos ou traficantes, deve ser descartado. Esse discurso, na agenda bolsonarista, costuma ser usado para associar a candidatura de Lula ao apoio de facções criminosas, a partir do compartilhamento de informações falsas. Rodrigo também ensina que (2) um bom governo é avaliado pela forma que lida com a vida, e portanto deve defender pautas contra o aborto. A mesma pauta também se encontra no ativismo bolsonarista, que promove terror entre os evangélicos com a falsa alegação de que Lula pretende “legalizar” o aborto.
Além disso, defende que (3) o cristão precisa escolher um candidato que saiba lidar com questões relacionadas à família, que possui a noção correta de um “núcleo familiar”. Nesse sentido, a campanha de Bolsonaro se proclama defensora da “família tradicional”, associando lutas contra a discriminação por gênero e orientação sexual a uma suposta “ideologia de gênero”, falsidade já verificada pelo Coletivo Bereia. Ainda no contexto da luta a favor da família tradicional, Rodrigo ensina que o cristão não pode apoiar um governo que promova lutas de “fobia”, ou seja, que defenda pautas contra a homofobia, islamofobia ou xenofobia. Ele ri de tais iniciativas, e afirma: “Tudo é fobia! E daqui a pouco vai ter também Satanofobia” (uma pauta satírica fictícia em que as pessoas defendem os direitos de Satanás).
Para citar mais um exemplo, (4) Rodrigo defende que um bom candidato precisa ser conhecido nas “entrelinhas”, ou seja, a partir de uma investigação dos princípios teóricos e ideológicos que regem seu plano de governo. O eleitor deveria se perguntar, em seus termos, “quais eram os teóricos por detrás daquilo ali”. Com essa afirmação, o influencer sugere retomar a pauta conspiratória do marxismo cultural, defendida por ele como verdadeira, e concordando, inclusive, com o guru do bolsonarismo, Olavo de Carvalho. Em sua palestra na série “Adventismo nos tempos líquidos”, realizada entre novembro e dezembro de 2020, Rodrigo é categórico ao afirmar: “a expressão ‘marxismo cultural’, ela tem fundamentação teórica, sim, senhor!”, e assim, dá a entender que as teorias por detrás de um bom candidato não devem possuir conotações marxistas, isto é, normalmente alinhadas à esquerda.
Mas as evidências não acabam por aqui. Ainda mais impressionante do que publicar vídeos em defesa de uma agenda reacionária, em total desacordo com as diretrizes da IASD, é o fato de publicar fotos ao lado de figurões bolsonaristas de influência. Com essa aproximação, Rodrigo não apenas contribui com os projetos de tais personalidades, mas materializa nas redes sociais o caráter de suas alianças e preferências na política brasileira.
No dia 17 de setembro de 2021, Rodrigo postou em seu instagram uma foto oriunda, provavelmente, de um encontro com Ana Campagnolo, definida como “conversa muito proveitosa”. Campagnolo é conhecida por, entre outros motivos, ser uma das maiores defensoras do Escola sem Partido, movimento promovido por Jair Bolsonaro (PL) e criticado por especialistas devido à censura e ao patrulhamento ideológico que promove nas escolas. O encontro entre Ana e Rodrigo ilustra uma cooperação ainda mais extensa: desde agosto de 2021 a deputada bolsonarista oferece um curso online – “o maior curso antifeminista do Brasil” – com aulas especiais de Rodrigo Silva e Fabiana Bertotti, influencer adventista que também flerta com a extrema direita. Ambas as participações se encontram no módulo 1 sobre Antiguidade, e versam sobre a relação entre feminismo, Bíblia e cristianismo de uma perspectiva reacionária.
Além disso, em foto publicada pela ex-primeira dama, Michelle Bolsonaro, em seu instagram, Rodrigo e sua esposa aparecem em companhia de Damares e Mayara, em maio de 2022. Michelle e Damares estavam na época em uma viagem a Israel, local onde Rodrigo e o Pr. Valandro Junior, ambos marcados na foto, faziam uma “caravana” pela “Terra Santa”. Na publicação de Valandro sobre o encontro, em Jerusalém, o pastor diz ter sido uma honra e uma alegria encontrar a ex-primeira dama. A relação com Michelle Bolsonaro parece ser algo da apreciação de Rodrigo, dada a tentativa de interação entre o arqueólogo e a ex-primeira dama em comentários no Instagram, como ocorreu no dia 5 de outubro.
O Pr. Valandro Junior é conhecido por conta de sua proximidade com a família de Bolsonaro. A Igreja Batista Atitude da Barra da Tijuca, onde congrega, costumava ser frequentada por Michelle Bolsonaro. De acordo com a Agência Pública, no Twitter, Valandro demonstrou apoio aos atentados cometidos no Congresso. Além disso, o pastor também replicou uma postagem pessoal, do dia 26 de dezembro, que atesta sua inimizade contra o presidente Lula: “Pastor preso, índio preso, deputado preso, jornalista preso por ordem do judiciário federal! Mas corrupto comprovado é solto! A inversão de valores.”
Além de Rodrigo Silva – ainda que não represente novidade – mais manifestações políticas foram proferidas por Leandro Quadros. Vinculado à Rede Novo Tempo de Televisão, o apresentador (e atualmente coach financeiro-cristão), já declarou em outras ocasiões apoio a Jair Bolsonaro (um “camarada sério”), e possui uma incansável luta contra “esquerdistas” e “marxistas”, os quais ele define como antibíblicos e diabólicos. De todos os influentes, Quadros é o mais impetuoso, chegando a fazer ataque direto ao Partido dos Trabalhadores (PT) e incentivando seus membros a não apoiarem a ex-presidenta Dilma Rousseff em referência às eleições de 2014.
Antes do primeiro turno das eleições de 2022, no sábado, 1 de outubro, Quadros publicou um tweet convocando seus seguidores a realizarem um “voto cristão”, “para que Deus se agrade de vocês”. Embora o seu posicionamento já seja conhecido, nessa ocasião específica ele agiu nas entrelinhas, e não chegou a citar o seu candidato por nome. Além disso, em companhia de seu ativismo, Quadros utiliza um discurso punitivo contra aqueles que agem de forma contrária ao seu posicionamento: caso não obedeçam ao que a Bíblia prega e votem em um candidato de esquerda, Deus deverá pedir contas.
Como não é categórico, no máximo, em alguns comentários, Quadros cita uma pequena lista de pautas que vão contra a “vontade de Deus”, normalmente relacionadas à esquerda política. Para sumarizar, um cristão deve escolher um candidato que: (1) condena a legalização das drogas; (2) não é a favor do aborto; (3) é contra a ideologia de gênero; (4) discorda de linguagens neutras; (5) não apoia “ideologias ateístas” (lê-se, “marxistas”); e, por fim, (6) protege a propriedade privada.
Vez ou outra, quando ataques são dirigidos a Jair Bolsonaro, Quadros vai em defesa do seu candidato: Na ocasião em que o ex-presidente é chamado de “déspota”, o influencer dá a entender que apenas países associados à esquerda possuem tal governança, citando Venezuela, Cuba e Nicarágua. Quando são relembradas as atrocidades de Bolsonaro, Quadros afirma não ser possível saber “no íntimo” se alguém segue ou não pautas cristãs; que nenhum ser humano é perfeito; e que as intenções visíveis do candidato devem ser utilizadas como norte para o voto.
Naturalmente, assim como Rodrigo, ao afirmar uma agenda de extrema direita, Quadros entende ser norteado pela Bíblia; e, neste caso, acredita estar em conformidade com as orientações da IASD. Ele também se utiliza da ambiguidade e da superficialidade dos documentos adventistas para declarar sua agenda bolsonarista e utilizar as redes sociais como veículo para ativismo político.
Recentemente, um dia depois da invasão e ataque fascista ao Congresso Nacional brasileiro, Leandro Quadros postou um tweet (posteriormente apagado) interpretado por muitos de seus seguidores como apologia ao golpismo e à violência. No texto, ele afirma que ser um mártir, isto é, morrer pela fé, é mais honroso do que ser um “herói vivo”. Dessa forma, ele compartilha o texto de Josué 1.9 como conselho divino, dando a entender que o sacrifício da própria vida em nome de Deus é preferível a uma vida cristã heroica. Tal manifestação foi imediatamente associada à violência cometida contra o patrimônio cultural brasileiro no Congresso, de forma a justificá-la como ato heroico.
Nessa mesma ocasião, a IASD se manifestou publicamente em repúdio aos ataques fascistas perpetrados pela multidão bolsonarista. Tal atitude coloca em prática a filosofia da não violência defendida historicamente pelos adventistas, assim como qualquer incentivo que possa ocasioná-la, como o porte de armas. Leandro Quadros, no entanto, já afirmou ser a favor do armamento cristão, caso o Estado estenda esta permissão ao cidadão. Embora defenda o “pacifismo”, Quadros imagina que existem situações específicas para usar armas, e afirma que Deus estabelece limites para o uso da violência com armas de fogo.
Ainda na contramão do posicionamento institucional, e contra suas diretrizes oficiais, dois professores do Centro Universitário Adentista de São Paulo (UNASP), campus Engenheiro Coelho, se manifestaram a favor do ato golpista. O professor de Engenharia Civil, Artur Lenz Sartorti, em resposta ao atual governador de São Paulo, Tarcisio Gomes de Freitas (Republicanos), no Instagram, afirmou que, às vezes, quando as exigências do povo não são atendidas, “quem sabe quebrando resolve”.
Outra funcionária do UNASP, a professora de música na Escola de Artes e vereadora de Engenheiro Coelho, SP, Flávia Guimarães Lima (PRTB), na ocasião em que o Congresso era invadido pelos manifestantes bolsonaristas, expressou no Facebook apoio ao ocorrido. Ela se coloca como parte do ativismo político, no plural: “Esperamos que os três poderes saiam do palco político, em especial o poder judiciário, e criem formas pacíficas de solução.” Posteriormente, Flávia publicou uma nota de esclarecimento em que condena atitudes de vandalismo e agressividade.
Por fim, no dia 17 de setembro de 2022, foi realizada, nas proximidades do Centro Universitário Adventista de São Paulo, campus Hortolândia (UNASP-HT), uma “festa capira”, idealizada com o apoio de José Carlos Costa, esposo da cantora adventista Tatiana Costa. O evento contou com a presença de, em média, 3 mil pessoas, das quais estava presente Carla Zambelli (PL) – que nas vésperas do segundo turno correu atrás de um homem negro com uma arma em punho, na região dos Jardins, São Paulo; assim como a de Marcos Ponte – ex-ministro de Jair Bolsonaro. Junto a Zambelli e Marcos estiveram presentes também outras figuras políticas, todas apoiadoras de Bolsonaro. Comentando o ocorrido, uma das pessoas presentes no evento, em conversa com a Zelota, definiu a ocasião como um “comício disfarçado de festa”.
Após o evento, o casal adventista José e Tatiana, em suas redes sociais, compartilharam fotos e vídeos em companhia dos figurões políticos bolsonaristas, incluindo Carla Zambelli. Em vídeo, José se dirige às autoridades com elogios, e afirma estar “seguro de que eles nos representam”. As fotos foram também compartilhadas nos stories do perfil de Tatiana. Não obstante a isso, seu esposo não poupa expressões de afirmação bolsonarista em suas redes sociais, especialmente no Facebook. Além da festa caipira, o casal chegou a convidar os políticos bolsonaristas para uma confraternização em casa.
Manifestação de Pastores
Ainda que de maneira tímida, o pastor influencer Michelson Borges também fez questão de manifestar-se a respeito das eleições, especificamente no dia 1 de janeiro, ocasião da posse presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em sua conta do Twitter (e em prints do seu Instagram), Michelson compartilhou dois textos bíblicos: Eclesiastes 3.16, que lamenta a corrupção existente nos “tribunais”; e Salmo 12.8, que menciona a liberdade dos ímpios quando a corrupção é exaltada entre os homens. Embora o influencer se aproveite da interpretação relativa de seus seguidores, e se sinta à vontade para publicar textos soltos e despretensiosos, o contexto de sua publicação esclarece suas intenções, percebidas e imediatamente denunciadas em comentários ao tweet.
Como já comentamos em outras ocasiões, Michelson Borges, desde os anos 2000, é conhecido por suas elucubrações profético-conspiratórias, e possui um discurso político antimarxista. Em nome de uma pretensa “neutralidade”, defende pautas da agenda ideológica da extrema direita: recentemente ele confabulou uma possível perseguição contra os guardadores do sábado, utilizado a “perseguição contra não vacinados” como exemplo; em comentário, o Pr. Apolo Streicher Abrascio relaciona o assunto do tweet de Michelson às ditaduras, que segundo o ministro, impõem padrões e limitam a liberdade.
Ainda que não muito expressiva, mas seguindo uma linha antilulista e pró-bolsonarista muito semelhante à de Leandro Quadros, está a manifestação pública do pastor Elmar Borges, também no Twitter. Mas o caso aqui é ainda mais problemático, pois o ativismo é realizado pelo departamental de jovens da União Sul Brasileira (USB), um ministro adventista ordenado, para os quais manifestações políticas são expressamente proibidas.
Na sua postagem, Elmar também se utiliza de ambiguidades, neste caso, de uma parábola a respeito de um amigo metafórico que, mesmo assaltado por um bandido, deseja conviver com ele. O “amigo de Elmar”, mesmo informado de que irá ser assaltado novamente, se apega ao bandido, porque ele “fala coisas fofas”. Na ocasião do primeiro turno, o pastor bolsonarista pretende provocar suas ovelhas com tal lição, e lança o desafio: “O crime compensa? Hoje vamos descobrir.”
No mesmo fio, Elmar Borges deixa esclarecido ser contra qualquer regime socialista, afirmando não ser uma questão de “gosto”, mas um assunto puramente ideológico. Em outras palavras, ele afirma defender uma ideologia que vai contra a apregoada pela esquerda política, e, portanto, assume, como pastor adventista, perpetuar ideologias reacionárias. Nessa ocasião, dois tweets foram provavelmente deletados por conta da quantidade de comentários de membros que questionaram seu ativismo à luz das proibições eclesiástico-administrativas.
Outra manifestação tímida, porém esclarecedora, foi expressa pelo Pr. Eleazar Domini, pastor de duas igrejas brasileiras nos EUA, em sua conta do Twitter “Fala sério, pastor”. Em seu conteúdo, Eleazar desfere uma crítica ao comentário de Alexandre de Moraes, Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), que alegava serem as redes sociais como “terra sem lei”. Em seu tweet, Eleazar compartilha a fala do ministro, ironizando: “O BRASIL é terra sem lei. Pronto, falei!”. Sabe-se de longa data, especialmente durante o governo Bolsonaro, que as críticas a Alexandre de Moraes tomaram proporções apocalípticas entre bolsonaristas, que em diversas situações aplicam ao ministro e ao Supremo a responsabilidade por ações de ilegalidade contra o ex-presidente Bolsonaro. Assim, como outros exemplos já citados, Eleazar também assume posições políticas antimarxistas em suas redes sociais, antes e depois de mudar-se para o EUA.
Uma pastora adventista brasileira, atualmente servindo na Espanha, também se viu à vontade para expressar suas convicções político-ideológicas nas redes sociais. No período das eleições, Suzanne Portela postou no seu carrossel de stories do Facebook, uma montagem junto ao ex-presidente Jair Bolsonaro, com a frase “Eu Suzanne estou com Bolsonaro 22”. Com a vitória e a posse do petista, no dia 1 de janeiro de 2023, Suzanne postou uma foto no mesmo perfil em forma de “luto”. Embora não atue no Brasil e, dessa forma, seja beneficiada com liberdade para expressar suas preferências reacionárias, Suzanne é mencionada como uma das idealizadoras do “Ministério Amizades Verdadeiras” (MAV), uma iniciativa adventista brasileira para aconselhamento e “reversão” da homossexualidade.
Uma novidade para este dossiê é Daniel Lüdtke. Em stories publicados na sua conta do instagram, Daniel explica ter recebido um “convite inusitado” para participar de um evento, em Nova Iorque, Nova Jersey, com “líderes brasileiros” na presença de Jair Bolsonaro. Em seus comentários, Daniel diz que o convite foi “interessante”, e que não está acostumado a participar de encontros com “pessoas famosas”. Segundo o pastor, o momento foi útil para conversar e trocar contatos; e, dada à expressão de sua surpresa após o evento, Daniel demonstra-se positivamente impressionado com a reação dos convidados à chegada do presidente ao recinto, entulhado de aplausos, assovios e outras demonstrações de apoio e admiração a Jair Bolsonaro.
Outro pastor flagrado foi Welton Silva, da Associação Paulistana (AP), que em reação ao ato golpista, em comentário a uma reportagem da Revista Oeste, afirma que “a Globo agora virou imobiliária”. O comentário diz respeito à ocasião em que a primeira-dama, Janja, convidou jornalistas da Globo para vistoriar e denunciar o ataque contra o Alvorada. O ativismo do pastor, no entanto, não se resumiu a essa ocasião. Em seu perfil no twitter, Welton chega a expressar opiniões anti-vacina; associar o presidente Lula ao Primeiro Comando da Capital (PCC); críticas ao STF; anseio por um golpe militar realizado pelas Forças Armadas; discurso anticomunista; e, por fim, declaração aberta de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro, em suas palavras, “um verdadeiro líder”, ou o “melhor presidente que o Brasil já teve”.
É possível ainda citar o caso do Pr. Luiz Penteado, e sua esposa Tatiana Santos Rodrigues Penteado, ambos servindo na União Leste Brasileira (ULB). Após os resultados do segundo turno de 2022, o casal publicou em suas respectivas contas do Instagram manifestações de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro. O pastor, em seu feed e carrossel de stories, comentou, de forma irônica, que o fato de Bolsonaro gerar empregos na Bahia teria “assustado o povo”, por conta de a Bahia ter computado 71% de seus votos em Lula. Sua esposa Tatiana, contudo, foi ainda mais expressiva, ao postar fotos de Jair Bolsonaro em seu perfil, em agradecimento, afirmando sua fidelidade ao ex-presidente e cumprimento de seus deveres civis. O perfil de Tatiana (que não existe mais), na época, estava repleto de críticas e caricaturas de Lula e outras manifestações de apoio a Bolsonaro. Após receberem críticas, o casal pediu perdão pela manifestação pública.
Dos casos pastorais citados, no entanto, a manifestação do Pr. Célio Longo, pastor distrital afastado, em Cuiabá, MT, foi a mais preocupante, chegando a tomar grande proporção midiática. Nas redes sociais, Célio costumava postar declarações de cunho político e ideológico, por exemplo, de forte conotação antimarxista; material antilulista, como o vídeo de Silas Malafaia “Lula presidente! E agora Brasil?”, e outro intitulado “Carlos Sampaio Deputado Federal detona o Ex-presidente Lula”; entre apoios ou manifestações de apreço ao ex-presidente Jair Bolsonaro.
A situação para Célio tornou-se polêmica na ocasião em que um vídeo seu, de 2021, foi vastamente compartilhado nas redes sociais em janeiro deste ano. Durante uma campanha de Natal para arrecadação de alimentos, enquanto um dos membros da igreja realizava um apelo para a doações, Célio afirmou: “Nem Hitler em toda a sua Glória” e, em seguida, levanta o braço esquerdo para uma saudação nazista, aos risos. Com a viralização do vídeo, o ato foi recebido pelo público com indignação, chegando imediatamente na grande mídia, como Yahoo Noticias, Olhar Direto, Gazeta Digital, Metrópolis entre outros.
A polêmica também foi repercutida pelo G1, que averiguou o caso e informou que, segundo a polícia civil, não houve qualquer boletim registrado na época, embora a apologia ao nazismo seja crime pela lei 7.716/1989. Ao ser procurado pela mídia, Célio recusou se manifestar sobre o caso. Em nota pública, a União Centro-Oeste Brasileira (UCOB) afirmou não compactuar com palavras e atos que expressam violência ou agressão contra as pessoas, e notificou ter tomado medidas pertinentes, em conformidade com seus regulamentos, para lidar com a situação. Posteriormente (segunda-feira, 23), o G1 noticia o afastamento, por tempo indeterminado, de Célio do cargo de pastor, que deverá ser assumido pelo pastor auxiliar.
Em reação ao afastamento do pastor, foi publicado um abaixo-assinado em nome dos membros da IASD de Cuiabá afirmando apoio incondicional a Célio. Na manifestação, o texto afirma que o pastor era dedicado à congregação, fiel às doutrinas adventistas, defensor da fé e exemplo de condução familiar. Ele também explica que o pastor não manifestava ódio a nenhum grupo, que o vídeo compartilhado estava fora de contexto e que a fala, à ocasião, não causou nenhum estranhamento dos ouvintes por não conter conotação elogiosa a Hitler ou ao nazismo.
Iniciativas institucionais
As experiências acima, basicamente, partem da subjetividade dos indivíduos envolvidos para um público mais amplo. Tratam-se de iniciativas pessoais, que muito provavelmente não expressam uma iniciativa oficializada pela igreja. Mesmo assim, não é novidade que a IASD também se articula politicamente de uma perspectiva institucional – como já evidenciamos em outros momentos – para a realização de suas perspectivas ideológicas, como a publicação de conteúdo reacionário em seus periódicos oficiais, organização de eventos em universidades para propagação de sentimentos antimarxistas, e, principalmente, descaso às normas eclesiástico-administrativas para a punição das lideranças que usam sua influência para a propagação de agendas da extrema direita.
Antes do segundo turno das eleições de 2022, a grande mídia flagrou, por exemplo, a ocasião em que a direção do Colégio Adventista de Varginha, no sul de Minas Gerais, distribuiu camisetas verde e amarela com o número 22 para alunos e funcionários. De acordo com O Globo, a ação resultou na apresentação de mais de 70 denúncias ao cartório eleitoral da região. Em sua defesa, o colégio esclareceu em nota que a distribuição das camisetas teria como objetivo a Copa do Mundo, “um evento que faz parte da cultura brasileira”, e deveria ser utilizada na ocasião dos jogos.
Apesar das explicações, as intenções da direção ficaram evidentes por, ao menos, dois motivos: em primeiro lugar, o apelo simbólico da ação no contexto de uma eleição polarizada dificilmente não passaria por ativismo político; em segundo lugar, o caso se configurou como assédio eleitoral, já que os funcionários foram obrigados a utilizar a camisa. Por conta disso, a presidenta do Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais (Sinpro Minas), Valéria Morato, denunciou o caso ao Ministério do Trabalho e da Previdência; e no dia 19, a Superintendência Regional do Trabalho, em Minas, por meio do gerente Regional do Trabalho em Varginha, Túlio Borges Duarte, marcou uma reunião para a mediação do problema.
Como resultado do encontro, no dia 21, o Sinpro Minas noticiou que o colégio suspendeu a utilização da camisa, liberando sua utilização apenas após o dia 11 de novembro – início da Copa do Mundo, sem relações com o período eleitoral. A Justiça Eleitoral, portanto, deu por encerrada a denúncia encaminhada por Valéria Morato. Ficou também decidido que os funcionários poderiam devolver a camisa no Sinpro Minas, com direito à restituição do valor de compra, mantendo seus nomes sob sigilo.
Além das camisas, outras obrigações impostas aos funcionários foram questionadas: a Sinpro Minas criticou a participação dos funcionários em cultos, antes da jornada de trabalho, observando ser obrigatória a remuneração dos participantes. Ela também questionou a participação de funcionários na entrega de premiações aos alunos que renovam sua matrícula, já que a prática causa constrangimento entre os alunos que não a realizam. Em ambos os casos, a escola tinha até o dia 4 de novembro para explicar seu proceder. O site da Sinpro Minas não publicou outras atualizações sobre o ocorrido.
A IASD, institucionalmente, também reconhece e privilegia seus candidatos. Um caso notório ocorreu na 61ª Assembleia Geral dos Adventistas do Sétimo Dia, em St. Louis, EUA – evento inteiramente coberto pela revista Zelota –, em que a Deputada Estadual Damaris Moura (PSDB) atuou como delegada pela União Central Brasileira (UCB), representando os adventistas de São Paulo. Nas redes sociais, participando da conferência, Damaris é vista ao lado do Pr. Ted Wilson (presidente da AG), do Pr. Stanley Arco (presidente da DSA), do Pr. Mauricio Lima (líder na UCB), entre outras figuras de representatividade administrativa.
Na ocasião, ela foi homenageada pelas instâncias superiores da IASD por conta de sua atuação em prol da Liberdade Religiosa, especialmente em virtude de uma lei sancionada, de sua autoria, no Estado de São Paulo (Lei 17.346/21), que pretende regulamentar o princípio constitucional do livre exercício do direito à crença em território paulista. Tal parabenização ocorreu, muito possivelmente, pela preferência dada à IASD por agendas e pautas políticas preocupadas com o tema da liberdade religiosa, por conta dos privilégios e exceções que a denominação precisa reclamar ao governo, dado seu status de minoria.
Para cada ano em que se realiza a assembleia dos adventistas, mudam os critérios para a eleição de delegados ou delegadas como representantes de seus campos. Para o ano de 2022, segundo líder presente em comissões diretivas na região de São Paulo, para o voto de escolha, os critérios incluíam a necessidade de ser membro influente na igreja local, falante de inglês, com conhecimentos da dinâmica administrativa da instituição. Portanto, para que Damaris fosse eleita como delegada, a liderança deveria julgá-la com tais competências, a fim de que seu nome pudesse ser votado na Comissão Diretiva da Associação com recomendação da União.
A deputada estadual adventista não parece possuir, como prevê o documento sobre política da IASD, histórico de propaganda partidária nos púlpitos da denominação. No entanto, sua atuação política é razoavelmente conhecida pelos adventistas, especialmente na UCB, dada sua participação em eventos, programas ou cerimônias da instituição, em que costuma ser apresentada como “deputada adventista”. Numa sexta-feira, por exemplo, poucos dias antes do primeiro turno das eleições de 2022, Damaris é vista por muitas testemunhas na porta do UNASP-EC, em companhia do pastor adventista jubilado Domingos José de Sousa, ex-Assistente Especial Parlamentar e ex-presidente da UCB, entregando santinhos para agregar votos à sua candidatura.
Conforme já relatado pela Zelota, a relação da IASD com Damaris Moura evidencia um compromisso histórico entre a liderança adventista e políticos PSDBistas, em São Paulo, como Geraldo Alckmin, José Serra e João Doria. Em parceria com a Federação dos Advogados Adventistas do Brasil (FAAB), ela chegou a participar como palestrante do 1º Encontro Nacional da FAAB, em 2019, juntamente com o presidente da ANAJURE, Dr. Uziel Santana, e a Dra. Janaína Paschoal (PSL), uma das autoras do pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT).
Por último, e não menos importante no contexto de iniciativas institucionais, foi o conteúdo ideológico vinculado na “Agenda de 2022”, editada pela Área Feminina da Associação Ministerial (AFAM), e entregue às esposas de pastor pelo menos na Associação Paulistana (AP). Uma das leituras indicadas às mulheres foi o material antifeminista Feminismo: Perversão e Subversão, da autoria de Ana Campagnolo, militante bolsonarista já mencionada neste texto ao lado do Pr. Rodrigo Silva. Embora não possua informações editoriais específicas, a agenda carrega uma mensagem de Jeanete Lima, líder da AFAM para a DSA. Nela, alega-se que o material foi organizado para o aprimoramento familiar, profissional e igrejeiro das esposas de pastores.
Análise e perspectiva
Para os leitores da Zelota, seria redundante tocar a mesma música, e descrever o quanto a IASD é ambígua ao tratar de temas com conotação política e, ao mesmo tempo, conferir palanque, púlpito e privilégios para ideologias de extrema direita. Seria redundante voltar à mesma canção e relembrar aos leitores que tal preferência reflete uma cultura lobista e oportunista, que defende a relação pacífica com os seus governantes para desfrutar de benefícios econômicos e status para seus administradores.
Na estreia de nossa revista, há dois anos, publicamos uma matéria que denunciava a relação entre a liderança adventista e as ideologias de extrema direita. De lá pra cá, inúmeros casos novos foram vislumbrados, e incontáveis mensagens foram enviadas à revista, fortalecendo ainda mais a nossa tese, corroborada pelo sociólogo adventista australiano Roland Lawson, de que a IASD possui um fetiche por ditadores, e fará o possível para conquistá-los e desfrutar de benefícios para a instituição. Esta tendência pôde ser observada até mesmo na Alemanha nazista, episódio pelo qual a IASD só se desculpou formalmente cerca de 60 anos depois. Pois bem, esse relacionamento ficou ainda mais evidente nas eleições de 2022, e em outros acontecimentos mais recentes, como a invasão golpista ao Congresso Nacional.
Diante do exposto, poderíamos imaginar que o problema está no não cumprimento das orientações da igreja ou mesmo na ambiguidade de seu conteúdo, que possibilita uma margem elástica para ações e interpretações. De fato, já detalhamos quais seriam os processos disciplinares que não foram tomados contra estes líderes de acordo com os regulamentos da IASD, tanto no caso de pastores distritais quanto de administradores. Mas caso nos ativéssemos a essa discussão, não superaríamos a posição punitivista ou de vigilância de discursos e manifestações de lideranças. Todo o problema seria discutido puramente no âmbito da formalidade, sem considerar as relações sociais e de poder efetivamente existentes.
Todas as grandes denominações cristãs emitiram nos últimos anos documentos e notas sobre relações entre política e religião. Em geral, sempre esteve presente o esforço em garantir uma adequação às bases de uma sociedade moderna, democrática e liberal. Assim, as recomendações institucionais prezaram por deixar clara a defesa das liberdades individuais e imparcialidade das igrejas, indicando (ao menos formalmente) que havia um esforço para evitar o chamado “voto de cajado” – ou o controle sobre a posição política da membresia, especialmente em relação à participação nas eleições. No mesmo sentido, sempre há indicação de apartidarismo e separação da política e da religião, da igreja e do Estado, frequentemente expresso como ausência de ideologia na mensagem religiosa.
Ao mesmo tempo, contudo, há um esforço constante para aumentar o bloco de cristãos e mesmo a influência da chamada “bancada da Bíblia” nas Casas Legislativas em todo o país. Por outro lado, ainda temos dentro das comunidades a dinâmica já destacada de uso de uma legitimação do verdadeiro “voto cristão” ou “voto bíblico”, que se identifica com determinados grupos e programas políticos, sem mais. Ou seja, se formalmente há uma adequação às regras democráticas da sociedade moderna, na prática são realizados movimentos que se sobrepõem a essas mesmas regras.
Desse ponto de vista, a ambiguidade das orientações das igrejas condiz com a atuação efetiva das instituições e lideranças religiosas sob a formalidade política de um Estado laico moderno. A crítica, portanto, precisa superar o âmbito formal (sem perdê-lo de vista) e ir à raiz: ver as contradições entre a adequação da igreja à reprodução social e sua inadequação, ou melhor, o seu esforço de se manter como agente ativo que determina aspectos da ordem social.
As igrejas evangélicas no Brasil evoluíram dentro do processo de modernização capitalista durante o século 20 – como discutimos em Fascismo como religião nas eleições de 2022. Inicialmente localizadas em sua maioria nas áreas urbanas que se expandiam, as igrejas aos poucos se tornaram centros de laços sociais e garantias de segurança e apoio às massas de trabalhadores e trabalhadoras forçadas a sair do campo. A religiosidade e a organização das igrejas foram evoluindo junto às novas dinâmicas sociais e atreladas a elas. Suas lideranças, compostas majoritariamente por pessoas de classe média, com acesso a graus cada vez mais qualificados de escolarização, vão compondo grupos de elite religiosa e grandes convenções e associações que uniformizam aos poucos os usos, costumes, valores e mesmo critérios para participação no culto, na membresia, etc. Essa dinâmica aos poucos sedimenta as estruturas comuns às igrejas e suas relações de poder.
O papel da igreja e de suas lideranças, portanto, fica vinculado (mesmo que involuntariamente) ao processo de modernização capitalista e à defesa da ordem social vigente. A “sobrevivência” das classes religiosas privilegiadas e das próprias instituições já consolidadas requer a manutenção das relações sociais e de produção que as trouxeram “até aqui”. Nesse sentido, precisam se adequar e defender ao menos formalmente as diretrizes básicas da ordem social vigente e, explicitamente, as relações de produção. Por outro lado, para manter alguma relevância dentro do processo de reprodução social, a instituição religiosa precisa encontrar espaços de atuação em que desempenhe uma função que não pode ser descartada ou que ofereça algum benefício para os grupos dirigentes da sociedade brasileira. Daí seu ativismo religioso no âmbito público e militância ideológica de manutenção da ordem junto aos fiéis.
Assim, sem descartar a necessária crítica ao descumprimento de orientações formais das igrejas para a atuação de lideranças em relação a eleições, é preciso dar um passo além para compreender a base das contradições – e o motivo de não haver vigilância institucional para ideólogos conservadores e reacionários. Ao contrário, há proteção, dado que estes identificam sua posição política com a autoridade espiritual e mesmo divina, salvaguardando-a em sua atuação efetiva em torno do poder. O tal do “voto cristão” ou “voto bíblico”, na verdade, esconde o projeto de sociedade com o qual as igrejas estão comprometidas e seus objetivos privados de expansão e influência no espaço público.
Em última instância, fica estabelecida a identificação do projeto da igreja para seu crescimento dentro da ordem social, sob o modo de produção capitalista, com o projeto de Deus para a humanidade. Essa passagem de uma para a outra é puramente ideológica – como indicamos no artigo Bíblia e ideologia. Junto a isso, também ficam escondidos os interesses e a luta pela manutenção de privilégios da própria classe eclesiástica, que, para manter seu padrão de consumo e sua própria posição, adere aos valores do modo de produção capitalista e os defende. Como comentou José Comblin, o clero também é composto por agentes consumidores que, mesmo que inconscientemente:
“[…] sofrem o efeito da propaganda. Informam-se e aprendem quais são todos os produtos das novas tecnologias que estão à sua disposição. Mas sem dinheiro não se pode consumir. A pastoral precisa de muita tecnologia para atuar? Qual será a mensagem contida nesse consumo? A Igreja continuará sendo vista como rica? O clero será visto como membro da classe integrada, da classe que entrou na civilização tecnológica plena? Quem pagará o consumo pastoral? Terá de ser a classe média. Isso não está criando uma dependência? Como o clero vai poder criticar a nova civilização tecnológica e rica nessa situação de dependência? Não vai se assimilar a essa classe? […] Uma palavra dependente nunca será uma palavra profética. O clero pode se tornar prisioneiro dos donos da riqueza – como outrora, nos tempos da cristandade.”1
Nota:
1. ↑ COMBLIN, José. A profecia na Igreja. Ed. Paulus: São Paulo -SP, 2008 p. 259.