Bruno Reikdal reforça que as hipóteses de Guilherme de Carvalho para explicar o conservadorismo evangélico não falham por não serem marxistas, e sim por carecerem de uma metodologia coerente para analisar fenômenos sociais


Antes de começarmos qualquer argumentação, é importante agradecer a oportunidade de debate aberta por Guilherme de Carvalho ao reagir a nosso texto O nome é luta de classes, queridos. É de suma importância o debate crítico — e infelizmente, em geral, “críticas” são recebidas apenas como ataques e não como processo de construção de conhecimento e discussões públicas, nas quais pessoas leitoras também participam e contribuem, seja com comentários, seja com a ampliação do tema para outros âmbitos e círculos. Além disso, no caso, estamos tratando de dois autores com comprometimento político e ideológico diferentes e conflitantes. Quem dera pudéssemos também incentivar de algum modo a mesma prática entre diversos grupos que são, a princípio, aliados.

De todo modo, a resposta de Guilherme foi publicada pela Revista Zelota; quem dera que veículos vinculados às alas mais ortodoxas ou conservadoras também retribuíssem democrática e simetricamente à nossa posição. O artigo em questão é A posição evangélica na nova guerra de classes, e, tendo-o como ponto de partida, escreveremos nossa tréplica. Uma discussão com cada tópico colocado pelo autor exigiria uma longa e ampla argumentação. Assim, furtando-nos de avançar em questões políticas propriamente ditas na medida do possível, poremos nosso foco em uma questão epistemológica que sustenta a posição de Guilherme e sua reação ao primeiro texto a respeito dos evangélicos e da luta de classes. 

Focaremos em uma discussão metodológica e científica no modo de produzir teoria para interpretação da realidade. Claro, à medida em que construirmos nossa crítica, citaremos afirmações do texto do autor e colocaremos em evidência reflexões a respeito do uso das ciências sociais na leitura da realidade (e talvez na própria produção teórica no campo da teologia). Nossa questão é que o modo de trabalho do autor se baseia na elaboração de hipóteses a partir de uma alquimia teórica que pinça conceitos que garantam alguma tangibilidade para a intuição inicial (ou seja, reduz-se à própria hipótese). Com esse procedimento, é possível transformar brita em ouro, classe em valores morais e hipótese e/ou interpretação da realidade.

Sobre ciência social, hipóteses e ideologias

A proposta de Guilherme em seu texto é apresentar de modo mais preciso e amplo sua perspectiva, e, de certa maneira, as bases do que considera ser sua hipótese sobre a natureza da atual guerra cultural brasileira. Indicando sua posição em relação ao texto que originou o debate, escreve:

O intelectual marxista Bruno Reikdal publicou uma crítica respeitosa, ainda que incisiva, à minha hipótese […]. Na crítica ele admite que a hipótese faz algum sentido à superfície, mas falha na medida em que ignora “a dinâmica da produção de riqueza material da sociedade capitalista, assim como seus conflitos”.

Dois pontos importantes a serem destacados: primeiro, quando escrevi o texto não imaginei que se tratava apenas de uma hipótese a ser testada (de alguma maneira) para se converter em instrumento de interpretação da realidade, senão que a discussão já fosse produto de ferramentas de análise e de interpretação da realidade social. Na produção de conhecimento a respeito de nossa sociedade, deve-se ter em conta a necessidade de trabalho metodológico consistente e uso de recursos teóricos disponíveis para verificar nossas intuições, percepções e primeiras concepções a respeito de nosso entorno, assumindo uma posição de “sujeitos” diante de um objeto — ao menos como um passo inicial, necessário, mas jamais suficiente.

Por exemplo: para alguém que tenha observado o grande apoio de evangélicos à candidatura de Jair Bolsonaro durante as eleições de 2022, em um primeiro momento pareceria que a base eleitoral em torno desse candidato seria de pessoas pobres, mulheres e negras, já que essa é a característica da maioria dos evangélicos. Contudo, metodologicamente é preciso olhar não apenas um grupo, senão a relação desse grupo com a sociedade como um todo. Afinal, trata-se de uma análise sobre um fenômeno social. 

Seria preciso, portanto, sair da percepção inicial e constituir um modo de análise mais sofisticado. No caso, nos referimos à observação dos dados gerais de apoio às candidaturas. Se feito isso, por exemplo, é possível visualizar que o apoio à candidatura de Lula tinha sua base entre as pessoas mais pobres, mulheres e negras, ao contrário da base eleitoral do candidato derrotado ao final do pleito. A intuição inicial é derrubada por um novo dado, que é agregado a partir de um método e que exige um novo problema a ser solucionado e/ou compreendido. Deve-se iniciar uma nova etapa de investigação.

As propostas de Guilherme, por sua vez, sempre são apresentadas por ele como “hipóteses”. De acordo com o próprio autor, minha crítica é às inconsistências de sua hipótese. Coerente e adequado para a metodologia empregada: uma teologia especulativa que pinça de acordo com as preferências e interesses do autor referências que possam corroborar, ou melhor, dar alguma autoridade ou “materialidade” para sua intuição inicial. O problema é que o movimento de análise e interpretação para aí — e o que temos como resultado é um processo alquímico de construção de uma hipótese inicial.

Uma hipótese é corroborada à medida em que a colocamos em confrontação com a realidade e a mediamos com os conhecimentos adquiridos e compartilhados no âmbito de ciência social. Para tal, podemos (e talvez devamos) tratar as questões de perspectivas das mais diversas e colocá-las ao teste de “fogo” do debate com pares e outras correntes. Ignorar certo procedimento e mesmo arcabouço geral teórico existente a respeito de determinada área de conhecimento não tira a hipótese de seu lugar abstrato e incerto para torná-la uma tese e um conhecimento consistente para a compreensão da realidade — ou mesmo sua transformação, que imagino ser o objetivo de quem se engaja para solucionar problemas vigentes.

Segundo, a citação de Guilherme do texto anterior foi incompleta, o que atrapalha parte da argumentação que segue para discordar de minha posição crítica à ausência de foco na luta de classes nas análises do fenômeno religioso evangélico (tema do texto “originário” do debate). As posições assumidas por Guilherme de Carvalho, assim como de Gutierres Siqueira e Juliano Spyer, outros dois autores criticados, ignoram a dinâmica da produção e reprodução de riqueza material da sociedade, assim como seus conflitos. O termo “reprodução” foi suprimido — não sei se sem querer, por equívoco ou engano. De todo modo, em todo o texto é exatamente a observação da dinâmica da reprodução social a pedra de toque para demonstrar o descuido com um aspecto fundamental da realidade no momento de analisar os fenômenos sociais — no caso, o religioso.

Veja, no âmbito da reprodução social não é de maneira alguma necessário que se assuma uma posição marxista. A bem da verdade, muitos teóricos “tradicionais” do marxismo não tocavam na temática (apesar de ser fundamental na produção do próprio Marx). A crítica que faço aos autores (entre eles Guilherme) considera propriamente a dinâmica de organização das relações sociais em termos amplos para a manutenção de uma ordem específica que viabilize a possibilidade de permanência de uma determinada sociedade “no dia seguinte”. Por isso “produção” e “reprodução”. Quando aplicamos o conceito de “reprodução social”, efetivamente não estamos falando apenas do processo produtivo, mas incluindo nele toda a ordem necessária para que o processo se mantenha. Uma ideia marxista? Não necessariamente.

Nesse sentido, é importante destacar que indifere se Guilherme compartilha ou não de “pressupostos” marxistas que tenho a respeito “do capitalismo e livre mercado” para estabelecer diálogo com a crítica que fiz à sua abordagem a respeito da realidade social, que ignora o processo de reprodução social e aliena a “guerra de classes”1 em um âmbito cultural descolado dos processos diários em que socialmente organizamos nossas vidas para que possamos, inclusive, ter nossas preferências ideológicas, de crença, de valores, etc. Do ponto de vista de Guilherme, sua hipótese apareceria como uma “inversão da realidade” se assumida a “lente ideológica” marxista — a qual, declarada e explicitamente, assumo. Ou seja: o problema não estaria no processo de análise da realidade social e no processo de construção de conhecimento a respeito dela, mas nas lentes ideológicas de preferência.

Entre preferências e ciências

Se levarmos a sério o que está pressuposto no argumento para não se discutir a questão da reprodução social, veremos que a discussão a respeito do conhecimento sobre a realidade social é transformada em uma questão de preferências, crenças ou idiossincrasias. Nesse sentido, Guilherme comenta que considera “a tese materialista um erro de fundamentos” e que sua “resposta não entrará nesse mérito”. Aceitando que realmente não seria necessário entrar no mérito de demonstrar a falta de fundamentos da “tese materialista” (que, particularmente, não sei a que se refere, a não ser o rechaço a respeito da necessidade de se considerar a produção e reprodução social na análise da própria realidade social), ao menos seria importante, para sairmos do nível da hipótese para a tese, a indicação metodológica de como podemos abrir mão da observação da produção e da reprodução para falarmos sobre evangélicos e luta de classes — nosso objeto comum.

A metodologia que utilizo é relativamente simples: para a observação de fenômenos sociais, não os parcializo ou abstraio em absoluto das dinâmicas que organizam a produção e reprodução social (obviamente, o modo de produção e reprodução das condições necessárias para a manutenção da sociedade, indicada em um dos parágrafos do texto original também como riquezas). Pelo contrário, é importante conhecer sua especificidade e analisar dinâmicas particulares, próprias, mas concebendo que a existência desse fenômeno é necessariamente garantida por uma rede de relações interdependentes e conectadas que o tornam possível.

Desse modo, podemos dizer que são três grandes passos no procedimento da pesquisa: a) o de análise, no qual o observador atua como um sujeito que analisa o objeto abstraído, este aparentemente “separado” de si e à sua mão ou para sua compreensão. No nosso caso, observamos a participação dos evangélicos na política brasileira, o que no nosso debate aparece a partir de discussões em torno de eleições e pesquisas eleitorais.

Como segundo movimento, temos b) o de reflexão, no qual o sujeito percebe que esse objeto não está ali “sem mais”, senão que é mediador entre diferentes sujeitos, ou seja, está ali já com um “passado” preexistente de relações humanas e subjetivas que o tornam possível e com sentido, sendo este passo necessário para a compreensão das relações amplas nas quais um objeto está envolvido (esquematicamente, para além da relação sujeito-objeto, é sujeito-objeto-sujeito). As eleições e as pesquisas eleitorais a partir do recorte evangélico requerem uma análise da história desse movimento e quem são os sujeitos que o constituem (história das igrejas e o perfil de seus componentes).

Como terceira etapa (não final, pois o processo reinicia em seguida), temos c) no qual se reconhece que por trás dos sujeitos há um ponto de partida pressuposto que poderíamos, por exemplo, chamar de “cosmovisão” ou visão de mundo. Seria este último o passo de racionalização, no qual percebemos que sempre existem construções intersubjetivas historicamente construídas, compartilhadas e que constituem um elemento básico para a compreensão da própria realidade.2 Nesse movimento, as ideias e valores que encontrarmos junto ao movimento evangélico são colocados em seu lugar e dialeticamente trabalhados a partir da história reconstituída, dos sujeitos em suas relações e das estruturas institucionais e de poder que viabilizam as realizações coletivas desses sujeitos — às quais, por sua vez, são legitimadas e justificadas por ideias e valores, sempre dinâmicos.

Por sua vez, o reconhecimento desses elementos pressupostos aos sujeitos nos leva para a primeira etapa, pois passamos a desconfiar de nossa própria base de valores, crenças e constructos que formam a base ou o ponto de partida, reorientando e requalificando nosso próprio processo de investigação científica da realidade. No caso, será “descer” esse conteúdo trabalhado a um âmbito mais concreto: como os evangélicos não estão isolados do mundo, “exteriores à realidade brasileira”, mas são participantes dela — e isso que importa, afinal, sua atividade política foi o ponto de partida —, agora conectamos esse fenômeno à reprodução social brasileira e suas estruturas e recomeçamos o processo, aplicando aos dois objetos o processo de análise, reflexão e racionalização articulando um corte maior da totalidade.  E assim poderíamos seguir para compreender novas conexões com as dinâmicas do capitalismo global, do próprio evangelicalismo como movimento internacional e suas relações de influência, conflitos, reciprocidade e retroalimentação, etc.

Contudo, a realização de todo esse processo de pesquisa não é isolada, solitária ou de alquimista. A articulação com uma comunidade científica que critique, verifique e tensione o processo de conhecimento da realidade é fundamental. Aliás, que possa reproduzir a metodologia de trabalho e discutir o passo a passo, assim como as conclusões parciais e finais em cada etapa. Do contrário, realmente estamos reduzidos aos embates de preferências ideológicas e o que nos diferencia é apenas o uso de uma lente ou outra — jogando para o “julgamento de gosto” das pessoas se acham mais interessante ideia a ou b, se é válido não sairmos do âmbito hipotético. 

A menos, claro, que abramos mão por completo da produção científica no âmbito da observação social. É uma saída tão velha quanto a ciência econômica a partir da segunda metade do século 19 — mas essa é outra história. Nesse sentido, talvez seja possível construir compreensões da realidade social do zero, combinando autores e informações a nosso bel-prazer, selecionando os fenômenos que nos interessam, e operar com hipóteses que não precisariam ser necessariamente verificadas ou voltadas para a solução de problemas da realidade social. Podemos, assim, converter a própria discussão sobre o fenômeno evangélico ou sobre qualquer outro elemento da realidade em panfletagem de mobilização de nossas crenças e valores, adequadas ou não a uma determinada ordem social vigente, e que se sustentam, nessa posição, apenas como hipóteses.

E veja: não se trata aqui de ser ingênuo e tratar de modo excludente ciência e política, ou imaginar que existe algum tipo de conhecimento neutro sobre a realidade social. Jamais. O ponto é que mesmo no limite de mobilização e militância existe o âmbito da produção de ciência com o reconhecimento de elementos fundamentais do processo social, e são eles, os objetos, que guiam o processo de produção de conhecimento sobre a realidade, e não as teorias e as preferências dos autores. Estas vêm depois. Por exemplo, no texto de Guilherme, é afirmado que “alguma teoria das elites é necessária em qualquer teoria social; não há como escapar disso”. Ele está absolutamente certo. O ponto é: como (e onde) se verifica o que é uma elite?

Claramente o autor nos adverte que não utilizará uma concepção “marxista tradicional” do tema (seja lá o que isso signifique). Desse alerta, comenta que seu problema não é com a existência de classes, pois classes sempre existirão entre nós e, com isso, aparentemente as elites também. Sua questão, portanto, é compreender como elas se relacionam. Em um mundo “pluralista devidamente oxigenado” (ideal, portanto), as elites poderiam dividir o poder e ser mais cooperativas com as massas — “o melhor que se pode obter no mundo real” (se desejarmos bastante isso e tivermos nossas preces atendidas). A relação entre elites e massas seria de exploração? Ou estamos apenas falando sobre quem tem poder e quem não? O fato de sempre existirem elites nos obrigaria a assumir que essas elites devem necessariamente ser capitalistas ou coordenar a divisão social do trabalho tendo em vista o capital? O que caracterizaria uma elite?

Essas questões são importantes, pois a argumentação de Guilherme girará na sustentação de que valores progressistas são valores de elite. A luta por moradia é um valor de elite? A luta no campo por reforma agrária é de elite? Se encontrarmos movimentos populares nas periferias que defendem pautas “progressistas”, seriam estes cooptados pelas elites progressistas? Mas, ao mesmo tempo, não existiriam elites conservadoras e que propagam valores conservadores? Seriam estas elites “menos elite”? Ou “elites” das massas? A questão é que, em uma sequência de autores que discutem valores abstraídos de uma análise das relações de produção e reprodução social, Guilherme estende um longo varal de ideias que já critiquei no primeiro artigo: valores são tratados como essência de grupos sociais, sem qualquer complexidade, dinamismo, transformação ou atuação histórica, sem instituições que mediam nossas relações, e tudo isso sem conexão com as relações sociais concretas.

Por isso, no texto, fiz referência a alguns textos de Wim Dierckxsens, que apresenta essa “crise” que põe “elite conservadora” e “elite progressista” em disputa pelo protagonismo na manutenção da ordem capitalista e na reprodução das relações sociais capitalistas globais. Isso é importante, porque o conceito de “elite” fica ali claro e explícito a partir de quem tem capital para decidir sobre os rumos da vida das pessoas e da própria sociedade. Em uma sociedade de classes capitalista (existem outras), quem decide sobre a coordenação da divisão social do trabalho são os donos de capital; estas são as elites. Mas sem esse tipo de definição, articulada com a reprodução social, aparentemente elites são essencialmente progressistas e não existem elites conservadoras; as massas são conservadoras e imunes ao “progressismo” (a menos que sejam cooptadas contra seus… interesses?). 

Como não há uma análise da divisão social do trabalho (das classes sociais no capitalismo, portanto) e nem concepção clara a respeito do que é uma elite e o que não é, a “elite cultural” progressista samba entre CEO’s de empresas e estudantes e/ou professores universitários. Classes médias são ignoradas dessa análise e se convertem em elite cultural, sem mais (a alquimia que transforma brita em ouro pode fazer qualquer coisa virar qualquer coisa). Dessa maneira, faz pouquíssima diferença a sociedade e a posição de sujeitos na organização da sociedade, da produção e reprodução social, o que define conexão ou não com uma elite cultural ou um “proletariado cultural” (importante indicar que é saudável o reconhecimento de imprecisão do termo por parte de Guilherme); é a afinidade com valores a ou b, considerados conservadores ou progressistas em abstrato. Como o autor comenta:

Ora, quando falamos sobre elites conservadoras e progressistas, falamos sobre um recorte transversal que pode cobrir vários campos, mas que se caracteriza pelo alinhamento moral com certos valores. Uma elite conservadora pode envolver banqueiros, industriais, cientistas e líderes religiosos, por exemplo, mas o eixo de sua convergência deve ser de natureza ética; seria simplista demais reduzir os motivos e o poder de uma elite conservadora a seu estofo econômico e político.

Ou seja, efetivamente a “guerra de classes cultural” não funciona como um resultado de análise, mas apenas como uma hipótese que não será verificada e, portanto, que pode se distanciar da necessidade de conectar seu problema à reprodução social e às críticas de outras abordagens, pontos de vista ou mesmo questionamentos no âmbito da ciência social. É possível trabalhar com uma alquimia de teóricos e conceitos de interesse próprio sem pôr em teste de fogo as próprias hipóteses, que, desse modo, se convertem em crenças, e, nesse âmbito, não andaríamos muito no caminho da crítica. É uma maneira sofisticada de criar teoria sem precisar trabalhar com a própria teoria ou replicá-la metodologicamente.

A divergência no fundo é metodológica

A estrutura de definição das elites a partir de proximidade com valores é aplicada ao denominado “proletariado cultural”. Ignora-se a reprodução social e, pior, a própria história de nosso país, da modernização capitalista e da própria expansão evangélica guiada por pentecostais. A esse respeito, assim como Guilherme se furta de estender certos temas por ter publicado em outros textos e vídeos, o farei: indicamos uma série de textos já publicados pela Zelota, artigos e livros de diferentes autores e autoras em outros artigos, assim como entrevistas, aulas e cursos que pude realizar tanto no YouTube quanto em outras plataformas.3 

De todo modo, se ignoramos a história, podemos tranquilamente manter a ideia essencialista de separar o mundo entre elite e massa de acordo com valores, descolado da realidade social e da própria reprodução social. Igualmente problemática é a ignorância a respeito da composição de classes dentro das igrejas e como ela está articulada com a reprodução social brasileira como um todo (como discutimos largamente com os três autores no artigo que deflagrou esse debate salutar). A análise da estrutura interna das igrejas, inclusive, nada tem a ver com marxismo. Pelo contrário. Carece à teoria marxista uma análise das relações de poder internas às instituições.

Por isso, é de fundamental importância estudos como de Max Weber e de Pierre Bourdieu. Ao tratarmos da disputa por monopólios, os conflitos de classes ou de grupos, as tensões existentes em diferentes campos, relações de poder e dominação, etc., não são marxistas, e, para analisar as relações sociais e institucionais dentro das denominações, não recorremos à tal preocupação com a “ideologia” marxista, pois no âmbito do marxismo não temos categorias desenvolvidas para esse tipo de objeto, que requer outra abordagem. É produção de ciência e análise do objeto, em primeiro lugar. Em seguida, sim, reflexão sobre as relações com o todo e, por fim, aí sim, a questão da articulação entre diferentes pontos de partida, de recursos que fundamentam nossas posições e sentidos nas dinâmicas de interpretação e também de mobilização social (comprometimento e luta por um tipo de sociedade possível).

A divergência, no fundo, será metodológica e científica, ou da ausência de preocupação metodológica ou científica. O uso selecionado de conceitos de diferentes autores para fazer valer a ideia presente já no ponto inicial é efetivamente hipotética, e, distante de um processo científico de análise da realidade social e das estruturas básicas de qualquer sociedade, torna-se apenas a apologia de uma intuição inicial. Temos um tipo de procedimento alquímico que pode funcionar para reforçar crenças e uma determinada ordem social — ideológica, portanto, como bem explica Franz Hinkelammert em Sobre ideologia. Optamos por apresentar uma metodologia que pode ser testada, repetida e criticada após seu procedimento — como sintetiza muito bem John Dewey.4

A “nova guerra de classes” — reduzida a uma guerra cultural que determina elites e massas ou proletários a partir de afinidades com valores a ou b — só tem sentido se for tratada exclusivamente como hipótese e não avançar para um procedimento detido e metodológico de análise da realidade social. O objeto requer a construção de um tipo de metodologia e de uso de certo arcabouço no processo científico. No apologético, por outro lado, não, pois o objetivo é reforçar a tese inicial. 

É curioso, pois a crítica feita a Guilherme de Carvalho, a Gutierres Siqueira e a Juliano Spyer é de ausência da consideração do papel desempenhado pelos evangélicos na produção e reprodução social, o que implica na observação das classes sociais em suas análises. Demonstrar a falta de necessidade de considerar essas relações para a análise seria central em um procedimento que visa se desdobrar sobre a realidade. Contudo, Guilherme, em sua réplica, optou por rejeitar a questão do procedimento de análise, descartando a crítica como propriamente ideológica e sem mediações para o debate, pois o marxismo não é aceito nas preferências do autor. Mas não estávamos falando sobre marxismo, e sim sobre a análise do fenômeno evangélico descolada das relações sociais vigentes — e o objeto oferece mais do que hipóteses e muito mais do que alquimia teórica como metodologia.

Claro, se não é necessário olhar para essas relações para definirmos o que é uma elite e o que é o resto da sociedade (com ou sem classes intermediárias), podemos escolher o que considerarmos mais interessante para a “taxonomia” das sociedades humanas. Do meu ponto de vista “ideológico”, isso me parece um tanto pós-moderno, mas não creio que seja a intenção do autor, pois imagino que, de um ponto de vista apologético, teológico e político, ele esteja preocupado com certa valoração e com critérios de verdade — mesmo que estes estejam identificados com intuições, valores ou crenças iniciais do autor que possibilitam a construção de suas hipóteses.

Notas:

1. Importante notar que o conceito analítico utilizado por Marx e que também reproduzo no meu trabalho é o de “luta de classes”, cujo sentido indicado pelo próprio intelectual alemão não dizia respeito à “beligerância”, senão à condição conflituosa ou de permanente conflito pela participação na ordem social — em última instância, por condições estáveis de vida na sociedade e maior participação em sua organização. Trata-se das disputas em torno da coordenação da divisão social do trabalho e, por conseguinte, pela manutenção, reforma ou transformação da ordem social vigente e seu modo de produção.

2. Ver Dialéctica del fetichismo de la modernidad (2018) e Qué significa pensar desde América Latina (2014), ambos de Juan José Bautista, nos quais apresenta de maneira sistematizada um modo de operar a racionalidade científica próprio do pensamento crítico latino-americano, mas também em suas heranças do pensamento crítico alemão, trabalhado de maneira consistente por autores como René Zavaleta, Franz Hinkelammert, Enrique Dussel e Katya Colmenares.

3. Dentre os materiais citados, podemos referenciar Fundamentalismo e reprodução social na América Latina,, Fascismo como religião nas eleições em 2022, No vale de lágrimas entre religião e política, Fascismo como religião e eleições em 2018, Contribuição para uma teoria marxista da religião, e no Youtube conteúdos como a entrevista De quem é o voto evangélico?, e como curso, nosso conteúdo em Evangélicos e política no Brasil.

4. Cito John Dewey especialmente em Experiência e Natureza, no qual, ao criticar a filosofia especulativa ou abstrata, apresenta uma metodologia para a filosofia ou um modo de pensar pragmático para a filosofia que apresenta muito bem um procedimento científico não positivista, mas também não alquímico, isto é, sem recorrer a critérios que interrompem qualquer processo de compartilhamento de metodologia e/ou mesmo verificação. No caso da ciência social, é mais notório um elemento que faz parte da busca por solução de problemas que são os conflitos ideológicos e de podar, dado que o trabalho nesse campo toca diretamente nos interesses dos atores envolvidos e nas próprias lutas e mobilizações sociais no curso da história.